Ato falho

A mesa estava posta. Chamei-o como sempre: ¨John- John!¨. De repente percebi que estava chamando o João, que tinha preparado o café da manhã como se ele estivesse ali.
Mas ele estava ou não? Eu estava sonhando ou delirando? Ele estava deitado em minha cama, numa preguiça danada ou simplesmente não estava?
Encostei meu corpo na pedra da pia e exclamei: ¨ Meu deus!¨
Claro que ele não estava em casa; claro que ele não iria me responder.
Olhei para a mesa posta e percebi que estava acordado, não estava sonhando; não estava delirando.
Estava acordado, mas não estava em mim. Estava muito distante. Tinha regredido, voltado no tempo.
Às vezes eu atravesso a rua e só depois que estou do outro lado, me pergunto como cheguei ali. Atravessei de forma automática. Não prestei atenção. Viajei.
E é nestas viagens que eu acabo não vendo alguns amigos.
Um dos meus compadres e xará – o Paulo Henrique - já me confessou que me viu varias vezes na rua, no mundo da lua, totalmente aéreo. Juro que não me lembro.
Lapsos de memória? Tenho e não vou negar, já passei por maus bocados por causa disso. Mas isto é uma outra história.
Eu não pesquisei, mas tenho uma memória seletiva excelente. Jogo fora o que não presta rapidinho. Esqueço de rostos e nomes em segundos.
Arrumo minha gaveta interna de quando em quando. Não deixo acumular. Aprendi aos trancos e barrancos que quanto mais acumulamos lixos, mais difícil fica pra arrumar depois. Raramente eu reciclo. Às vezes, uma garrafa de vinho, um ou outro email acabam sendo reavaliados.
Mas, mesmo com todo o cuidado em não deixar a gaveta cheia, acabo me descuidando e deixando resíduos. Talvez, seja proposital; talvez, não queira ser injusto.
Ah! João, antes que eu me esqueça, é o meu filho.



Paulo Francisco






Dia Feliz


Domingo nublado. Não gosto de domingo nublado. Ele reforça a minha preguiça. Fico mais lento, mais melancólico.
Quando menino, não via a hora de chegar o domingo; de chegar às tardes de domingo. Era o meu dia predileto - tinha cinema e parque de diversão.
Não percebia se o dia estava nublado ou não, não me importava se estava chuvoso ou com ventania. Era domingo – o meu dia.
Melhor que o domingo, era a segunda-feira de novidades, gabava-me ao contar para os colegas os filmes vistos (eram sempre dois, com o canal Cem e vários trailers) recheados de guloseimas.
Ao contrário de hoje, domingo era o dia em que acordava mais cedo para aproveitar o máximo. Eu não tinha tempo a perder.
Fico tentando buscar na memória, qual motivo me levou a não mais gostar do domingo. Será que foi no mesmo momento em que acabou a sessão com dois títulos de filmes? Ou quando os parques se tornaram temáticos? Não sei.
Hoje, recebo o domingo com desconfiança. Ele é véspera da segunda. Talvez, seja porque nunca estou recuperado pra mais uma semana de brabeza. Ou simplesmente porque não tenho muita coisa para me gabar.
Acho que o domingo foi feito para as crianças. E, nós, os adultos, meros coadjuvantes deste dia encantado.


Paulo Francisco

Delírios


Lá estava ela sorrindo. Sorria pra mim, pra mais ninguém. Eu era um homem de sorte, aquela boca e aquele olhar exclusivamente meus. Andamos de mãos dadas, caminhamos de pés descalços na areia da praia – ela tem uns pés lindos.
Afaguei seus cabelos, madeixas aveludadas que acariciavam as minhas mãos. Ganhei na loteria e não sabia.
O céu era mais azul, a tarde era mais sedutora. Fogueira na praia ao anoitecer, estrelas desenhando figuras exclusivamente nossas!. Batizamos cada uma delas.
Tudo perfeito. A brisa, suave, batia em sua pele fazendo-a sentir um pouco de frio. Cedi-lhe a minha jaqueta – eu era forte.
Tudo perfeito. Cenário perfeito. Mulher perfeita. Casal perfeito. Olhava para os lados e não conseguia ver ninguém conhecido, como poderia ser tão perfeito e nenhum conhecido, nenhuma câmera e nenhum celular para registrarem este momento único.
Vejo um vulto e vou até ele. Quem sabe não tem uma câmera? Nada. Ilusão de ótica.
Ela se afasta. Vai se afastando. Cada vez mais longe. Tento correr mais a areia molhada impede os meus movimentos. Caio, me arrasto, engulo a água salgada... tento me levantar e, quando consigo não mais a vejo. Ela some na neblina densa. Fico louco, grito: Juliaaaaaaaaa!!! Juliaaaaaaaa!!!! Silêncio. Ela não mais está em meu sonho. Acordo assustado e vejo a televisão ligada e os créditos finais de Sleeping with the Enemy
Eu já tinha visto este filme antes.

Paulo Francisco


Eu sempre falei palavrão

Eu sempre falei palavrão. Quando criança, criança mesmo, com uns sete anos de idade, mais ou menos, já sabia todos os palavrões existentes. Eles ficavam na minha cabeça, nos meus pensamentos, na minha vontade.
Nunca escutei um palavrão saindo da boca de minha mãe e nunca ouvi um palavrão dito pelo meu pai. Então, como tão pequeno sabia tantos palavrões e seus significados? Simples: eu era moleque-de-rua. E continuei sendo moleque de rua por muito tempo. E era na rua que sentia as asas da liberdade. Voava alto em vocabulários chulos e poderosos.
Mas este fato de não ouvir e não poder falar nenhum tipo de palavra chula em casa me deu o equilíbrio em vocalizar de acordo com o ambiente em que eu estava ou estou, não porque eu ache que palavrão seja uma coisa feia, muito pelo contrário, às vezes, o palavrão pode vir carregado de emoção, seja na amizade ou no amor.
Não dá pra ser politicamente correto, por exemplo numa transa, aliás, ser politicamente correto numa transa é rechear entre beijos e mordidas, palavras, palavrinhas obscenas e, usando o jargão de uma amiga blogueira – a Margoh, digo: Adooooooooro!.
Quer saber!? Desonesto é transar no silêncio e virar de lado depois do ato.
Falar a mulher amada, ou ouvir dela, palavras um tanto quanto misturadas às palavras de amor é como pimenta numa peixada; é a cereja da torta - dá sabor e cor.
Hoje, eu ouço palavrão em qualquer lugar, usam o palavrão como vírgula, reticência – perdeu a graça infanto-juvenil da minha época de rebelde sem causa. Não que eu não os diga mais, ao contrário, faço uso deles em diversas ocasiões. Mas me incomoda quando ouço, por exemplo, um palavrão fora do contexto, dito simplesmente por dizer, sem nenhuma necessidade. Neste caso ele deixa de ser uma obra de arte num canto especial da sala para ser uma peça de louça comprada numa loja de produtos chineses.
Sinto muito... Falo obscenidades, concretizo em palavras os meus pensamentos e desejos. E daí? Dizem que a feiúra está na cabeça de quem escuta.


Paulo Francisco

Bailado

A dor já morava em seu corpo. Ela se contorcia; se esticava languidamente. Ninguém percebia seu sofrimento, a sua dor. Nada poderia dar errado! Cabisbaixa, em passos lentos e longos, desfilava naquele piso de madeira. Era única na arte do silêncio. De repente uma corrida em circulo, seus braços abertos pediam socorro, mas nenhum ruído além de uma suave música imaginária. Ela estava só. Só com seus pensamentos e desejos; só com sua técnica de pular, rodar, correr e sofrer sozinha. Um pulo e um susto - ela caíra desfalecida naquele negro piso. E depois de alguns segundos movimentava-se suavemente, esticava-se num espreguiçar gostoso de quem acordara de um lindo sonho e começava a rolar, a rolar, a rolar... cada vez mais rápido. A coreografia frenética se transformara num desesperado ataque de ombros e pernas – uma convulsão. Um total silêncio se fazia naquele ambiente tão hostil. Ela parara, ficara imóvel. Morrera!Tudo se tornara negro.
E quando a branca luz retornava, centenas de expectadores aplaudiam de pé a bailarina contemporânea.





Paulo Fancisco

Lágrimas


Quando olhei pra fora da janela, percebi uma cortina fina e silenciosa de chuva. Um choro miudinho escorrendo do véu da noiva – Pensei."Casamento de viúva!" Exclamei quando vi o sol rasgando a cortina de lágrimas. Mas, subitamente, o sol se foi e o choro miúdo se transformou em berros e soluços. "O noivo não compareceu!" disse rindo da frase inesperada.
É sempre assim, chove e eu me encolho, não de medo, mas para observar o seu bailado. Adoro ficar olhando para ela. Imagino-a bailarina.
Bailarina que me hipnotiza, bailarina que me fascina; Carmem e seus amores.
Como era de se esperar, choro exagerado, alívio imediato.
O sol novamente desponta. Seus raios refletidos nas poças criam manchas coloridas, manchas que aos poucos desaparecem; machas surgidas nas poças de lágrimas da noiva

Paulo Francisco

Pé-de-moleque

Pé-de-moleque. Foi assim que chamei uma mangueira repleta de meninos e meninas uniformizados perto de uma escola.
Lembrei-me, também, de minha infância, quando subíamos nas árvores frutíferas e fazíamos uma farra danada. Ficávamos pulando de galho em galho à procura das frutas mais maduras. Poderia ser uma caramboleira, uma cajamangueira, um jamelão, uma mangueira de carlotinha ou espada. As goiabas e os jambos eram roubados silenciosamente da vizinha rabugenta.
Hoje minhas reuniões não são mais em árvores frutíferas, mas em lugares mais apropriados para homens de minha idade - nos reunimos em bares. A algazarra é quase a mesma, principalmente em dias de futebol. As frutas foram substituídas por cervejas, vinhos e outras etílicas.
Os galhos que são pulados agora, são os empregos, sempre à procura de um mais resistente, que não quebre com tanta facilidade. E as frutas roubadas foram substituídas por cargos de chefia cobiçados.
Quando olho para trás, vejo tantos futuros perdidos, tantos futuros em lápides prematuras.
Quando olho para trás vejo meu futuro se construindo através de livros, castigos e sonhos.
Hoje, não reclamo do pouco que tenho, porque sei que é muito diante de tantos moleques perdidos entre armas e drogas.
Quando olho para a mangueira que mais parece um pé-de-moleque, penso qual deles sobreviverá para relembrar das frutas furtadas.





Paulo Francisco

Companheiros

Não faço nada quando chego em casa enquanto não encontro os meus amigos. Eu sou assim. Dano a procurá-los. Não tiro a mochila das costas nem os sapatos, vou direto ao encontro deles. Olho para um, flerto com outro - volúvel? Eu sei. Fico sempre indeciso, mas acabo escolhendo o mais próximo da minha necessidade momentânea - certo egoísmo? Com certeza. Geralmente, o escolhido é aquele que vai me dizer o que eu quero ouvir – unilateral? Também. Depois da escolha, aí sim, coloco a bolsa no lugar, tiro os sapatos, afrouxo o cinto e ali, naquele sofá vermelho, converso com eles ou simplesmente os ouço. Eles são ótimos.
Hoje, quero agradecer a esses companheiros invisíveis que estão sempre à minha espera. Obrigado: Chico, Caetano, Paulinho, Gil , Oswaldo, Edu, Tom, João,Vinicius, Ney, Zeca, Djavan, Jorge, Luis, Martinho, Nora, Maysa, Bethânia, Nana, Gal, Simone, Adriana, Zélia, Rita, Ivone, Elis, Maria, Leci, Ana e tantos outros, obrigado... obrigado por existirem.

Adoro os meus discos!


Paulo Francisco

Elas

Tenho que ir ver a minha comadre da cidade. Sim, tenho duas, uma é urbana e a outra é rural.
Amo-as de forma diferente. A da cidade é um amor a luz neon – brilhamos quando estamos juntos. A da área rural é um amor de cheiro – cheiramos a ervas medicinais.
Não é mesmo Márcia e Mônica?


Paulo Francisco

Elas

Conceição  era a mais famosa das quatro irmãs. Famosa por ser a única com faculdade, por ter namorado muito e se casado cinco vezes. As outras três vivem a falar que Conceição fez o que elas não conseguiram, exceto por uma coisa, todas têm netos, Conceição, coitada, não. Só esqueceram-se de dizer que é por opção e não por rejeição. Conceição anda por aí, desfilando em seu carro importado com sua nova namorada e feliz.  

Vilma gostava de seus cabelos negros e compridos, passava horas diante do espelho escovando-os.  Certo dia, num lampejo de loucura, cortou-os sem pestanejar.  Hoje, livre, leve e solta, anda por aí, esbanjando sensualidade com seus cabelos curtos e ruivos. Agora o espelho é ela.

Vanessa adorava curtir a noite.  Não, ela não era baladeira. Era sonhadora. Conversava com as estrelas. 

Tiana, abreviatura carinhosa de Sebastiana, ficara acamada por dias. Sozinha no mundo por opção, ela precisou, por necessidade, pedir a sua irmã um prato de sopa, pois estava fraca. Quando recebeu o recado que não teria o que comer, Tiana disse com toda força que ainda lhe restava: ¨ Eu morro de fome, por não ter como fazer, ela, morrerá por ter e não poder comer. ¨ Tiana morreu semanas depois.

Sua irmã morreu mais tarde, bem mais tarde. Não é preciso dizer como.


Paulo Francisco

Elas

Quando pegou um novelo de lã para fazer um cachecol, os  filhos estranharam aquela atitude, afinal, tinha em seus conceitos uma mãe moderna, possuidora de facebook, blogue e que curtia relações virtuais.  Vânia respirou e pensou. ¨ Deixe-me fazer este presente pra ele. ¨ Ele? Bem.., ele era o novo namorado encontrado por fios invisíveis que ela sonha em tê-lo por fios tecidos.

Léia, secretária poliglota de uma empresa nacional, era a ponte entre os importadores e seu patrão. Este, de pouco estudo, conseguira vencer na vida, com muito trabalho e arrojo – nunca tivera medo de arriscar, contrário de Léia, que por medo de perdê-lo, permaneceu secretaria e morrerá secretária, poliglota e suspirosa.

Laura, Esse será o seu nome!. Exclamou a avó quando a menina nasceu. Todos acharam que era um nome fora de moda, duro e sem brilho. Todos, exceto a avó, estavam errados.

Paulo Francisco

Elas

Abigail sempre soube que seria Arquiteta. Passou no primeiro vestibular que fez. Nunca perdera um projeto, mesmo que a margem de lucro fosse diminuída. Seu sucesso dependia, também, dos outros sócios minoritários. Trabalha com mão de ferro. Todos a tratam com certa cautela face o seu temperamento bipolar.
Abigail nunca se casou, já até pensou, mas, ela não sabe como arquitetar um bom plano para esse lar. Tem medo de não conseguir.
Nara era uma menina sapeca. Tornou-se uma adolescente linda e problemática. Não gostava de estudar, mas adorava namorar. Sorria, com os elogios recebidos.  Ela não terminou o ensino médio – não conseguia se concentrar. Hoje, com dezenove anos, trabalha numa confeitaria,  e, de quando em vez, faz uns voos até a Capital para o seu namorado. Nara se transformou num verdadeiro avião.  Todos dizem.
Zara sempre estava pronta para ouvir os amigos. Eles sempre recorriam a ela para as suas lamentações – ela sempre tinha uma palavra de confiança. Zara, todas as noites, ajoelhada em seu quarto, conversa baixinho com quem pode ouvi-la de verdade. Zara carrega consigo uma luz própria. Todos dizem que ela é iluminada.


Paulo Francisco

Elas

Claudia é uma mulher alta, loira de olhos claros. Executiva e ativa. Certo dia chegou ao escritório com os olhos vermelhos, cabelos presos, com a roupa desalinhada, todos queriam saber o que tinha acontecido com ela, mas poucos tinham essa liberdade. Uma colega, mais próxima, chegou com a seguinte observação:  ¨ Todos estão  achando que algo de muito ruim aconteceu pra você chegar assim.¨ Claudia sorriu e disse: ¨ Claro que aconteceu, tive que vim trabalhar.
Ela era assim: obrigação em primeiro lugar, a diversão podia continuar depois.


Wanda escolhia em seu porta-jóias uma pulseira para a ocasião, quando de repente exclamou: algema não! Wanda estava se preparando para ir ao seu terceiro casamento. Preferiu se adornar somente com os brincos. Nada de argolas que pudessem lembrá-la o que queria esquecer.


Ao olhar para o céu, Marli cerrou os olhos por causa da claridade. Ao voltar os olhos para ele, seu companheiro, viu uma imagem desfocada, cinza, a sua volta. Marli interpretara que com ele, ela jamais teria outra cor. Preferiu, então, o arco-íris.

Paulo Francisco

Elas

Quando ela o percebia em sua íris, seus olhos lhe banhavam com a mais pura das águas. Clarisse, que sempre fora sonhadora, tem cheiro de flor e chora de amor.

Aida tem mais de quarenta, não parece, mas tem. Quando perguntam a sua idade, adora que as pessoas tentem adivinhar, pois tem certeza de que vão errar para baixo pelo menos uns cinco anos. Ontem, Aida correu para o seu médico - alguém chegou muito próximo de sua real/ idade. O que será dela, quando errarem pra mais?

Orgulhosa de ter educados três filhos e todos eles terem seguido uma carreira. Florinda senta em sua cadeira de balanço na sala e sorri ao ver os netos brincando. Florinda pensa: Agora é com vocês, já fiz a minha parte.

Janira recebeu a visita dos filhos que moram em outro país. Ela se esqueceu do mundo. Chorou ao recebê-los, passou a sorrir o tempo inteiro. Janira palpitava de felicidade. Mas, na hora da volta, ela chorou ao vê-los, novamente, partirem. Janira voltou a sua vida de antes: Ela sorri para o mundo e chora silenciosamente todos os dias de saudade.


Paulo Francisco

Elas

Katarina chorou na festa de seu primeiro aniversário – teve medo do palhaço. Ela chorou em sua festa de doze anos – teve medo de ser mocinha.  Também chorou quando debutou – teve medo de não ter um príncipe. Chorou, copiosamente, em seu casamento - teve medo de tanta felicidade. Katarina ainda chora – chora pra regar a alma. Ela tem medo de secar.

Margareth, sempre fora atirada pra vida. Nunca teve medo de nada. Enfrentava tudo a unha. Mas quando Margareth deu a luz, ela chorou e teve medo do mundo.

Mônica, mulher negra, alta e esportiva. Gosta de vôlei e sexo. Não necessariamente nessa ordem. Casou-se algumas vezes e perdera a conta dos namorados que já teve. Mônica, uma negra alta que chega às alturas por uma bola e por um beijo.

Verônica, mulher miúda e intrépida. Cresceu quase dois metros pra dizer cara-a-cara ao homem que mexeu com ela na rua. Verônica cresce diante do atrevimento alheio.


Paulo Francisco

Mudança de tempo




Cinco dias de chuva. Não aguentando mais tanta água caindo do céu, tira a roupa e nu em plena sala, dança chamando o sol. Não é que dá certo. No outro dia, um sol lindo surge no céu. Levanta-se, veste um calção de banho e fica o dia todo na praia, mais propriamente dentro d água para refrescar-se do calor. Vai entender.


Paulo Francisco

De volta ao passado

Caminhando pelas calçadas de Teresópolis, onde vivo, acabei entrando numa importadora antiga   –  a importadora Ingá.  Atraído por algo mágico,  deparei-me com uma fileira de perfumes e li: 4711. Sorri, pois lembrei-me de que um dia roubei na cara dura este perfume de minha namorada (hoje minha amiga). Na época, não tinha graça comprá-lo. Foi gostoso usar gotinhas diárias de minha infância.
Estou pensando se compro ou peço que ela compre. Só para sentir o gostinho de roubá-la novamente.



Paulo Francisco

Questão

Não consigo me inventar. E ela queria que eu fosse de outro jeito. Até tentei, juro que tentei, mas como se transforma um bicho solto num bicho manso?


Paulo Francisco

Lembranças

Hoje, não sei o porquê, lembrei-me de alguns colegas de minha infância. Eles me ensinaram como eu deveria ver o mundo. Sim, os meus amigos, ensinaram-me a traduzir o mundo. Por exemplo, o Adilson e sua irmã Preta, dois irmãos de uma ninhada de seis (eu acho). Eles eram os únicos daquela trupe que tinham algo a mais para nos oferecer. Eram os mais inteligentes, os mais criativos, os mais felizes. Quem disse que pelo fato de não poderem andar deixaram de correr o mundo?.


Paulo Francisco

Aquatrela

No trem da vida, todas as cores. Passagem livre para o amor. Não permitida a dor. No trem das cores, o azul, a cor de minha vida. E nesta viagem de cores, me diga: Qual seria a sua cor preferida?


Paulo Francisco

O homem

Saiu de cena à francesa.  Ele era mestre em desaparecer no melhor da festa.  Sempre fora assim. Nunca gostou de multidão; nunca soube lidar com o excesso. Seu amor era miúdo, calado, nada de explosões em noites sem lua.  Homem de poucas falas, ouvia com os olhos e respondia sempre com um sorriso nos lábios. Seria um debochado, se não fosse tímido. Ninguém mais o viu. Dizem que viajou – foi para o interior, construiu uma casinha no mato e lá permanece a conversar com os pássaros, enquanto espera o resultado do cruzamento de flores exóticas. Outros já acham que ele nunca mais saiu de casa – continua no mesmo lugar, confinado por causa de um amor perdido. Os exagerados afirmam que ele ganhou na loteria e se escafedeu, caiu no mundo em cruzeiros e jogatinas. Os tenebrosos acreditam que o desaparecido aderiu a uma seita clandestina e está se preparando para destruir com o Opus Dei.
Há quem diga que ele simplesmente morreu.
Há quem diga que ele nunca existiu.
E nesta confusão criada eu pergunto:
 - Quem é esse que eu inventei?
Eu mesmo respondo:
 - Não sei.


Paulo Francisco