Um dia após o outro



Nada melhor que um dia após o outro. E depois de uma semana aguada, de cárcere privado, de apertos no coração, o sol chegou clareando as montanhas, esquentando a pele, pintando a alma, banhando de azul a prata esquecida num dos cantos da vida.

Tudo era tão inocente, tão infante, tão absolutamente doce, que eu não podia imaginar a minha vida de outra forma que não fosse de sol intenso e luas vermelhas, vermelhas como as frutas doces roubadas das feiras-livres por onde passei. Ah, eu fui ladrão de ilusões, roubei estrelas de céus alheios, enganei o sol ao meio dia, distraí a lua em canções doces e infantis. Fui sim, fui moleque arteiro de pular muros e correr o dia inteiro, como se o mundo só pudesse girar com as forças dos meus pés ligeiros.

Eu era vento que corria pelos terreiros de chão batido assustando as aves e manchando os lençóis brancos pendurados no varal de corda.  Não gostava da chuva, não gostava de lugares fechados. A madrugada ainda não tinha se apresentado em minha vida.  Não sabia o que era solidão até então.

Levantei com o sol sorrindo. Depois de uma semana de dias escuros, de ventos molhados, de noites sem lua, de frios inesperados, de janelas encostadas e de ruas vazias, o sol chegou pra restaurar a paz.  Não gosto de dias nublados, chuvosos, e principalmente de noites sem lua.

E depois da solidão insistente, do sofrimento masoquista, da palidez fria, das lágrimas ácidas, da boca rachada, das mãos acinzentadas, do crime frustrado, do suicídio incompetente... ela chegou trazendo cheiro de flor, a brisa trouxe consigo o aroma da vida, a certeza que nada é pra sempre e  que dias melhores sempre estarão por vir.

Nada melhor que um dia após o outro.  Lá estavam as casas de olhos abertos espiando tudo; a moça debruçada na janela, a velha sentada na cadeira, o gato deitado no muro, as crianças indo para a escola e o cachorro latindo para o mundo.

E como amanhã é outro dia, caminho cantando as cores da vida, porque ela certamente continua.

Paulo Francisco


2 comentários:

  1. Com certeza Paulo,nada melhor que um dia após o outro.Adorei beijinhos.

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  2. Belo texto! Pude sentir a doçura da criança e angustia do homem. Pude ver o menino agarrando o mundo com as mãos e o homem conhecendo a solidão. Tantas vezes são-nos únicas as facetas das nossas vidas. A roda gira...
    Tenhas uma iluminada semana! Grande beijo

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