Quarto secreto

Final de semana agitado. Sua filha resolveu convidar duas amigas para passarem o sábado e o domingo com ela. Duas filhas, duas amigas, um filho e uma gata – Apartamento lotado.

Com todos os problemas que surgiram, de repente, na sexta- feira negra, ela não deixa a peteca cair. 
Acostumada a disfarçar os problemas diante da cria – desde o tempo de casada, tirou de letra aquela situação inusitada e constrangedora.

Dias nublados e garoados. Nada de passeio, nada praia, nada de shopping. Pipoca, computador, vídeo game e Tv, ou seja, final de semana desarmada e sequestrada.

De quando em quando um recado no email de seu amado secreto. Vinte e quatro horas sem teclar, quarenta e oito horas sem ouvir a voz de quem lhe quer bem.

O telefone toca – sobressalta-se, morre de medo que seja ele e, um de seus filhos atenda-o, ainda não pode revelar para ninguém seus sentimentos; ainda não pode dizer com todas as letras: Este é o meu homem..

Agita-se na cozinha, café da manhã, almoço, lanche. Tudo para agradar as suas jóias raras. Orgulha-se em vê-los às gargalhadas, tenta ficar distante para não atrapalhar o movimento deles, mas é impossível. Eles a chamam. Ela é importante.

Seus pensamentos estão a quilômetros de distância, ultrapassa a barreira do estado. Ultrapassa a barreira de seu estado – de angústia e felicidade; de revolta e compaixão.

Noite de domingo. Tudo se acalma. Vai para o quarto, cansada, toma um banho quente e relaxante. Pensa: ¨ Amanhã é segunda-feira, poderei falar com ele tranquilamente ¨

Mas antes que isto aconteça, ela sonha secretamente.

Impossível ficar sem ele mais uma noite.

Paulo Francisco

Furta cor


Tudo pronto. Mochila arrumada. Feriado prolongado na Serra. Era tudo que precisava depois de um mês intenso de trabalho. Poderia viajar para qualquer lugar, mas, cansada de praia, preferiu ficar cinco dias no sítio da família.

Já na estrada, com seu carrinho 1.0, dirige calmamente ouvindo seus cantores preferidos. Magrelinha de Luiz Melodia no som do carro e pé na estrada. Dirige sem o stress do trânsito absurdo da Cidade.

Chegando à raiz da Serra percebe a diferença na temperatura – esfria bruscamente. O verde do lugar lhe encanta. Sempre que pode sobe a Serra. Adora a tranqüilidade do lugar.

Caetano acabara de cantar Cajuína quando decide parar para um cafezinho e esticar as pernas.

Desce do carro e alonga-se. Segue até o balcão da loja, pede um copo de água mineral e o café. Olha as gôndolas repletas de biscoitos amanteigados e compotas artesanais. Pega um cesto de vime e enche-o com as guloseimas locais e pensa: ¨Vou ficar gorda!" Dá de ombros. Apanha um queijo do tipo curado. Paga tudo com cartão de crédito.

Entra no carro e segue seu caminho, ouve Amor de Índio de Milton. Cantarola junto. A música lembra o seu primeiro namorado. Milton cantando e ela lembrando dele, o responsável por seu primeiro beijo - Rafael.
Começa a se perguntar: ¨ Como ele deve estar?¨ ¨Casou-se?¨¨Tem filhos? ¨ ¨ Será que ainda mora no mesmo lugar?¨

A voz de Bebel Gilberto tira-a de seu pseudotranse. Canta junto com ela.

¨ Ufa!¨- Exclama - Estava quase chegando a estrada de terra que ainda tinha que enfrentar até o sitio.

Lembra-se de como era difícil chegar ou sair do sitio quando chovia. Mas ela, quando menina, se divertia com tudo e não estava nem aí para dia lamacento, empoeirado ou qualquer outro transtorno, o que queria mesmo era andar a cavalo, charrete, mergulhar na cachoeira, subir nas árvores e curtir ao máximo seus momentos campestres - chamava assim seus dias no sitio.

Chega a entrada da propriedade. Para, sai do carro, abre a porteira, entra de novo no carro, passa pela porteira, para de novo, sai, fecha a porteira, entra no carro e segue até a casa.

A caseira deixara tudo pronto – comida na geladeira e casa arrumada.

Olha a sua volta e, percebe que nada mudou. Tudo se mantém na mais perfeita ordem.

Levanta e vai direto para seu quarto. Cada quarto tinha uma cor. O dela era o verde. Sempre gostara desta cor. Até mesmo o seu apartamento era pintado num tom de verde claro.

Gira a maçaneta de louça e empurra a porta pesada de madeira maciça. A luz do sol atravessa a janela e a deixa cega por alguns segundos. Já acostumada com a claridade invasora, nota que tudo permanece igual.

Olha para os porta-retratos na cômoda e, descobre o quanto foi feliz naquele lugar!

Deita, aperta a tecla do pequeno aparelho de som. Adormece ouvindo sua seleção de músicas do Frejat.

Ela acordou e tudo amareleceu. Não estava mais em seu quarto verde. Confusa, porque nada estava como antes. "Onde estou? – pergunta-se. Percebe que ainda era seu quarto e tudo que ali estava lhe pertencia, mas estava velho, amarelecido.

Correu para a porta e ao tocar na maçaneta viu sua mão velha e enrugada. Corre para o espelho e não acredita no que vê – envelhecera, era uma mulher velha e manchada. Desesperada, com as mãos em sua face envelhecida, sente tudo rodar e como um objeto pesado cai no assoalho escuro de madeira.

Ouve vozes. Acorda e vê duas caras enrugadas a sua frente. Ela reconhece aqueles rostos. Uma era de sua amiga de infância e o outro, daquele que tanto queria rever e não sabia onde estava. Muda, olhando para aqueles rostos tão castigados, pensa no que estaria acontecendo com ela.

Pacientemente, o casal de velhos carrega seu corpo leve e ossudo para a cama. Sem dizer uma única palavra, aterroriza-se e, de maneira lenta, se encolhe como uma criança assustada.

Sente uma picada em seu braço direito e, ao abrir os olhos, depara-se com uma outra mulher de rosto arredondado e com um sorriso angelical. Jovem, bonita, tem traços conhecidos e pode ouvi-la bem baixinho algo parecido como: ¨Ela vai ficar boa, papai... ¨ Olha em direção a porta e vê, novamente, o rosto masculino com quem tanto sonhara.

A injeção a fez dormir.

Não sabia por quanto tempo dormira. Acordada, pôde perceber que seu quarto continuava num tom de amarelo - quase palha. Levanta e segue para o corredor – era a sua casa mesmo - pensa. Não tinha sido transportada para um mundo irreal e ao caminhar naquele imenso corredor, encontra a porta de um dos quartos pintada de verde.

Não resiste e entra sem bater. Lá encontra uma decoração moderna, jovial contrária do quarto em que estava.. Sem saber o que realmente está acontecendo com ela, percebe que na cômoda existem vários porta-retratos e em todos eles seu rosto! Sem querer acreditar, pôde ver cada fase de sua vida – ela era mãe daquela mulher que há pouco aplicara-lhe uma injeção e aquele homem era seu marido – concluiu espantada.

Na sala todos reunidos. Ela chega, olha para aquelas caras sorridentes e, com uma voz fraquinha diz: ¨Hoje tive um sonho daqueles, sonhei que era jovem e estava ocupando o quarto verde de Laurinha e que de repente tudo se transformava em amarelo. Uma voz rouca lhe responde: Amarelo ouro minha flor!

E todos sorriem: o marido, a filha, a amiga e os três netos com as suas respectivas esposas.

Todos lá estavam para comemorar seus setenta anos de vida.


Paulo Francisco

Duas faces

Faça um circulo de fogo em volta de um escorpião que de imediato ele se suicida. Mentira! Este artrópode não tem esse sentimento guardado em seus instintos. Ele morre pelo calor do fogo, ele se desidrata e, automaticamente, seu aguilhão se curva como se estivesse sendo encravado em sua própria carapaça. Mas bem que a ideia de que o escorpião se suicida é bem interessante, é quase filosófico, guerreiro, poético ou qualquer coisa dessas inventadas pelo bicho-homem.

Quando a pessoa diz: sou um escorpião! Ela quer dizer o quê? Sou um suicida? Um ser peçonhento e vingativo? Uma pessoa que não leva pra casa desaforo, que não aceita perder?

Então vamos conhecer o outro lado deste grupo de aracnídeo: Ele é um dos mais românticos na hora de se acasalar. Depositam seus espermatozoides (guardados numa caixinha) num substrato limpo e numa corte nupcial ele dança pra fêmea, até hipnotizá-la por completo com o seu bailado sedutor, aí segura-a pelas pinças e a traz até a sua caixinha de amor que é sugada por ela. O escorpião é um cavalheiro que dança para a sua noiva.

Então, eu entendo, que quando se diz ser um escorpião, talvez seja pela fragilidade do ser, pela maneira de se defender e pelo amor que tem pela fêmea. Não vou entrar, neste texto, no mérito da partenogênese - deixo pra outro dia.

Faça um circulo de fogo da paixão em volta de mim, que de imediato, eu danço a dança do amor. Neste caso sou um escorpionídeo.



Paulo Francisco

Sobras




Ele estava totalmente perdido, perdido em seus pensamentos. Viajava pra mundos distantes, talvez para um único mundo – o dela.

Entre a realidade e o sonho; entre o vento e o sol; entre a sombra e a chuva, lá estava ela, sempre ela.
E num destes dias de outono, entre folhas amareladas e patativas insistentes em galhos adormecidos, ele escuta um cantar fino e melancólico. Não, não era uma das patativastristes, era um cantar feminino; era uma voz quase infantil de tão doce.

Admirado com a presença da mulher cantando e tocando violão, no gramado daquele parque, ele se perde em lembranças e sonhos.

Uma, duas, três músicas e, seu encantamento é desfeito, por um borrão contra o sol. Era o par da moça com sorriso de menina.

Enquanto o casal se beija, ele levanta daquele banco de madeira, assustando os pássaros por ali pousados.
O sonhador caminha em passos curtos em direção ao seu carro e, já dentro do veiculo, abre sua pasta e tira um aparelho e, em pouco tempo, lá estava ele de novo a sonhar, ouvindo a única coisa que restou dela – uma canção.

Constatação


Semana passada, saí de casa, decidido a comprar um par de tênis. Andei por várias lojas, namorando as vitrines. Confesso que gostei de vários modelos, mas tinha decidido o que eu queria. O calçado teria que ser igual à minha última aquisição há um ano.

Os vendedores, ávidos por uma venda, tentavam me empurrar outros modelos, mas eu já tinha registrado em minha mente e coração o que eu queria.

Por mais que eles explicassem que o modelo desejado não fazia mais parte do catálogo deste ano, eu, teimosamente, recusava os outros.

Não conseguia entender, como um produto tão bom, que se encaixou perfeitamente nas minhas necessidades, me suportou por um ano inteirinho, não era mais fabricado, era um modelo ultrapassado.
Voltei para casa com as mãos leves e as pernas cansadas. Fui direto para o meu quarto. Peguei o meu cansado e amigo tênis que, aparentemente, estava com o couro perfeito, mas, decerto, sua sola não agüentaria o tranco de minhas pisadas fortes e tortas, e guardei-os na esperança de recuperá-los.

No outro dia, acordei decidido a comprar um outro par de tênis – não podia ficar sem nenhum – entrei numa daquelas lojas que a gente pergunta sempre quando passa por elas, como sobrevivem, pois nunca tem ninguém comprando e a vendedora, coitada, quase um manequim, olha para os transeuntes com aquele olhar de promessa.

Assim que entrei, os olhos da coitada brilharam, um sorriso estudado brotou em sua face e antes que ela pudesse vir com a frase pronta, fui logo dizendo o que queria. A pobre moça se desmontou toda e repetiu o que os seus colegas me disseram no dia anterior.

Mas como eu já estava na loja e precisava de um tênis, recuperei o sorriso da moça e deixei que trouxesse vários modelos. Experimentei alguns - gostei de poucos.

Mas não querendo repetir o incômodo de ficar calçando sapatos por aí, resolvi sair dali com alguma coisa e acabei comprando três pares, para a alegria da pálida vendedora.

Chegando em casa, percebi que não adianta substituir o que a gente ama. O certo é conservá-lo, pisando leve e menos torto possível.






Paulo Francisco

Exagerado



Eu exagero em muitas coisas. Coloco mais açúcar que deveria no café, por exemplo, e aí, me obrigo a bebê-lo sem mexê-lo com a colher. Quando chego ao último gole, sinto-o mais denso e doce. Olho para o fundo da xícara e vejo que desperdicei uma quantidade razoável daquela substância tão gratificante.

Eu não consigo dosar - ou muito doce ou muito amargo. Eu sei que a quantidade de açúcar na xícara é maior que o café colocado nela, mas eu sou assim mesmo, prefiro o excesso à falta.

Nos últimos tempos, mudei o ritual do café - não começo mais pelo açúcar - coloco primeiro o líquido. Não encho até a borda da louça, tenho medo de entornar e manchar ao redor. Cuidadosamente, vou colocando o pó brilhante e aos poucos vou mexendo. Verdadeiramente, antes mesmo de colocar o açúcar, eu provo um pouco do líquido quente e amargo. Sorvo-o lentamente, sentindo-o entre meus lábios, para depois com cuidado, derramar o açúcar.

Agora, quando chego ao final da bebida, olho para o fundo da xícara e vejo uma leve mancha misturada ao pouco açúcar que restou no fundo. Percebo, então, que cheguei ao fim na medida certa, sem exagero ou falta. Sinto que o liquido que tanto gosto não foi desperdiçado. Às vezes, fica tão bom que peço uma outra dose, só para fazer o ritual todo de novo.

Claro que às vezes passo dos limites e deixo transbordar o café. Outras, a dose de açúcar é mais que necessária. Algumas, por mais açúcar que coloque estará sempre amargo.

Eu exagero em muita coisa, mas esse negócio de açúcar e afeto estou aprendendo a dosar.



Paulo Francisco



Refeição





E na hora do almoço...Pronto!
- Não quero!
- Quer sim.
- Não gosto!
- Gosta sim.
- Não!
- Sim.
- Então, experimente você.
- Eu!?
- Sim.
- Mas.... tá bom! Não precisa comer.
- Ok! Posso brincar?
- Não.
-Por quê?
- Você não comeu.
- Mas você disse que eu não precisava comer.
- Sim, disse...
- Então...
-  Mas não disse que podia sair para brincar.
- Então vou fazer o quê?
- Experimente um pouquinho da comida e aí...
- Mas eu não gosto de...
-Só umas garfadas...
- Eu vou passar mal.
- Vai não.
- Vou sim.
- Ok! Pode sair. Vou preparar um sanduíche.
- Oba!
O marido chega na cozinha e se depara com aquele prato de comida à mesa e diz:
- Bom dia, amor! Prepara um sanduíche para mim também?
A mulher olha para o marido e pergunta furiosa:
- Vai me dizer que você também não gosta do meu picadinho!?







Paulo Francisco

A moça da janela



A janela estava sempre escancarada, nunca fechara. Mesmo em grandes tempestades, sempre deixara uma fresta. Jamais a trancaria por completo.
A certeza da entrada de seu príncipe – mais que perfeito – pela abertura, fazia com que tomasse o cuidado em não fechá-la nunca.
Enquanto o príncipe não surge, os verdes sapos vão se aventurando em pular para dentro do quarto da sonhadora. Depois de um tempinho, ela, sempre, os expulsava.
Numa certa noite, entra em seu quarto, o que pensara ser seu príncipe e, mais que depressa, fecha sua janela, prendendo-o para sempre.
Mas depois de algum tempo, pela ironia do destino, descobrira que se enganara, aquele não era o seu Encantado tão esperado. Era, simplesmente, o mensageiro daquele, que por tanto tempo, sonhara.
Com a janela trancada, não tinha como mandá-lo embora, pois prendera para sempre o equívoco em seu aposento. A sua única alternativa era mandar o pseudopríncipe sair pela porta da frente e, assim o fez, mesmo sabendo do risco em ficar sozinha, para sempre.
Agora, a moça fica olhando pela vidraça, rezando, para que alguém a quebre com uma pedra. E tanto faz, se será um príncipe ou um sapo o seu bem feitor.



Paulo Francisco

Azul-de-metileno



Era inverno. O dia estava nublado e frio. Resolve, então, acender a lareira. Silêncio absoluto na casa – era tudo de que precisava: o calor do fogo, o vinho tinto e uma boa leitura.
Sentado em sua poltrona preferida, volta a ler o livro que encontrara em sua estante – não lembrava em que época o tinha comprado - era um livro antigo pela data de edição, mas novo por nunca ter sido aberto. Um livro de Clarice Lispector. Ele pouco leu a autora – não era o tipo de leitura de que gostava. Mas, sem saber o porquê se interessara por aquela em especial.
Olha para a lareira e fica hipnotizado pelo bailar das chamas e o estalar da madeira.
Batem na porta – uma batida forte e rápida - ao abri-la, depara-se com um sonho: O que estaria ela fazendo ali parada à sua frente? "Estou sonhando!" "Será que aconteceu alguma coisa?" – pensa atônito.
Sem dizer-lhe qualquer coisa, a linda mulher atira-se em seus braços e o beija ardentemente. Ele sorri. Sem nenhuma palavra, retribui aquele desejo com mais desejo ainda - Eles se amavam e ali, na sala, diante da lareira acesa se amaram como nunca fizeram antes.
As chamas do fogo denunciam seus corpos aquecidos e nus projetados em silhuetas gigantes na parede branca da sala – uma imagem em preto e branco. Amaram-se como dois adolescentes. Tudo era permitido no isolamento daquela casa.
Risos... juras de amor... e silêncios telepáticos – eles se amam – Nada mais importa..
Conversam baixinho, em sussurros:
- O que deu em você? Não era pra está em sua casa de campo?
- Sim... mas tivemos uma discussão e..
- Resolveu voltar sozinha..
- Sim... não iria ficar naquela casa fingindo ser um casal exemplar.
- Mas e agora?
- Bem... eu não vou voltar nem para a casa de campo e nem para o apartamento..
- Como?
_ Resolvi me separar e ficar aqui com você.
- Mas você sabe que não pode... e seus filhos
- Eles entenderão.
- Será?
Neste exato momento, um estrondo e uma corrente de ar invadem aquele espaço, trazendo frio e medo. Os dois, nus, se assustam. A porta bate fortemente contra a parede. Ele corre imediatamente para fechá-la e sente o vento envolvendo todo o seu corpo. Era um ar gelado – prenúncio de uma grande tempestade. Quando se volta, ela sumira...
O homem sai de seu transe e percebe que sonhara. Sonhara com seu amor proibido; sonhara com quem está distante de sua vida.
Tudo continua igual, nada mudou, a sala permanecia como antes, acesa e quente.
Levanta e nota que o seu livro caíra no tapete. Ao pegá-lo, percebe que a taça de vinho também fora derrubada manchando a capa. O liquido derramado, tingiu num tom róseo o seu titulo: ¨ Felicidade clandestina¨.
Sorri – a porta abriu com a força do vento. Antes de fechá-la, para por alguns segundos e, vê que há lá fora uma cortina de fumaça impedindo sua visão." Está tudo nublado..."
Já é noite.
Não há lua nem estrelas no céu.
O céu fora coberto pelo cinza de um inverno solitário e sombrio.
Dentro daquela sala tudo estava em preto e branco, como uma fotografia antiga e desbotada. As chamas já não aqueciam mais aquele ambiente.
De repente, lá fora, o som de um carro chegando. Ele abre a porta e percebe que já não há mais neblina e o céu voltou com a sua cor azul de metileno e a lua que há pouco não se via, apareceu inteira e prateada...


Paulo Franciso

Branco



- Não quero mais...
- Eu quero você PORRA!!
- Mas eu não quero mais viver assim...
- Você não entende! Eu quero você...
- Eu preciso viver! Quero ter a minha própria vida...
- Mas você tem... eu quero ...MERDA! você sabe que eu gosto de você. Eu vou melhorar...
- Não! Estou cheia de promessas... vai embora! Por favor... me deixe..
- Não posso! Eu sei que você me quer
- Eu te quero sim! Mas não assim!
- Mas eu vou mudar
- Não muda NUNCA!
- Mudo sim
- Então prove!
- Como assim?
- Jogue fora o que você tem no bolso.
- Eu não tenho NADA no bolso!
- Tá vendo, cê não quer outra vida
- Quero sim..
- Me deixe... me largue... quero minha vida de volta
- Mas eu juro que não tem nada no meu bolso
- Então prove
- Acredite... vai... acredite em mim...
- NÃO!!!!
Ela corre desesperada sem olhar para trás.
Ele permanece parado, olhando ela seguir.
Ela corre. Corre para um futuro branco, claro como o algodão
Ele permanece ali, parado, paralisado com seu presente negro como o asfalto em seus pés e branco como o da morte em seu bolso.



Paulo Francisco

Sentido V (Proteção)




Tão ásperas estão as suas mãos. Calejadas pelo tempo e não pelo esforço. Ao olhá-las, pensa que deveriam ter ficado mais tempo no barro, onde bolinhas de diversos tamanhos eram feitas para a diversão do pequeno escultor e suas criações. Cerra os olhos e passa as mãos em seu rosto e sente o ondular da pele fabricada pelo tempo. Foram com elas, as mãos, que pôde perceber a maciez da pele da mulher amada.

São as mãos, através de seus dígitos, que mandam para o cérebro as informações adquiridas e, assim, o cuidado com o quente, a percepção do liso e do áspero, o temor do pontiagudo. Descobre-se, com elas, a infinita escala de textura; Qual a criança que nunca andou na calçada com seus dedos alisando e identificando as diferentes texturas dos muros alheios? É com o toque que a criança começa a conhecer seu corpo, entender a existência dos seus órgãos genitais. São as mãos as substitutas dos olhos. Sãos as mãos o veredicto final na incerteza do olhar. Tatear no escuro à procura do interruptor; afagar, acariciar... como é importante esse sentido, como é importante tocar e, na maioria das vezes, não damos importância a ele.

Quem já não dormiu com as mãos de alguém afagando seus cabelos? Quem não se arrepiou com o toque suave de alguém em sua pele?

Corpúsculos, discos, tudo interligado em seu corpo, onde a dor, o frio, o calor, a pressão, são percebidos de imediato. Tato - o protetor do corpo. Irracional, puramente instintivo. Mas sem ele, literalmente, não poderíamos existir.

Paulo Francisco

Sentido IV (O cheiro guardado)





Todas as vezes que chove, no final de tarde, fico esperando sentir o cheiro de terra molhada, o cheiro da infância de um moleque travesso, que andava descalço e, não muito raro, chegava com cara de choro, com o pé levantado com algum objeto perfurante preso a ele. Todas as vezes que chove fico à espera de um odor que não mais sentirei. Tem certos cheiros que só sentimos na infância. O cheiro peculiar da tia velha por causa do excesso de pó de arroz é um exemplo.

Quem não tem um cheiro especial, guardado em sua mente, que lembra a sua infância? O cheiro do livro novinho comprado, com certo sacrifício, pelos meus pais, jamais esquecerei. Da mesma forma o cheiro de anil no lençol branco ao dormir. Como era gostoso o cheiro da galinhada com macarrão aos domingos.

Talvez aquele cheiro estivesse relacionado com a bagunça de todos os adultos reunidos à mesa e, nós – os moleques, sentados no sofá e poltronas com a televisão ligada numa algazarra só.

O cheiro da minha infância é especial: tem cheiro de goiaba no pé, manga espada derrubada, jamelão e graviola roubados. O cheiro da minha infância é especial: têm brincadeiras, batata doce assada na fogueira.

O cheiro de minha infância é especial: tem a Aninha e um beijo roubado de um moleque travesso.

Está guardado, em minha mente, todo o cheiro da minha existência e lá no fundinho dela tem guardado, especialmente, o cheiro de um moleque que adorava sonhar.


Paulo Francisco

Sentido III (Sabores)




Como seria chato se não tivéssemos esse sentido ou simplesmente se não fosse tão apurado. Sentir o gosto das coisas é no mínimo fantástico. É através dele que podemos distinguir o doce do salgado, o amargo do azedo. Não vou aqui enumerar os vários exemplos da vida animal em que esse sentido é de extrema importância. O sabor agradável de alguma coisa jamais é esquecido. Os desagradáveis também. Quantas vezes pegamos uma criança com algo estranho na boca? Talvez, a gustação, seja o primeiro sentido, de verdade, que uma criança tenta explorar. “Tira isso da boca menino!” A mãe grita. “Se falar nome feio de novo, coloco pimenta em sua boca, viu!” A criança nem precisa saber qual o gosto da pimenta, mas sabe, se sua mãe aterroriza com aquele fruto, certamente, deve ter um gosto terrível.

Eu só o comi uma única vez, num único dia, e nunca mais esqueci aquele sabor na minha vida: o sabor do sanduíche feito pela minha mãe, num dia todo especial – o dia em que fui para o zoológico, na Quinta da Boa Vista em São Cristóvão, numa excursão da escola, com o dinheiro do refrigerante no bolso da bermuda e dois sanduíches de linguiça de porco enrolados num guardanapo de pano. Agradeço a Deus por não existir, naquela época sanduíches de carne prensada ou qualquer coisa parecida. Aquele sanduíche, não ficou guardado somente em minha mente, ele ficou guardado em meu coração. Acredito que tal sabor ficou tão marcado em minhas lembranças, por um único motivo: ele foi feito por mãos mágicas, num dia especial. 

Era a primeira vez que saía sem a companhia de um dos meus pais ou de algum adulto conhecido. Jamais esqueci o gosto daquele pão desmanchando em minha boca misturado a uma linguiça tenra e saborosa. Até hoje ao comer um pão com linguiça, procuro o tal sabor em vão.

Às vezes, fico a buscar sabores infantis e confesso, que alguns me são estranhos. Não achei ruim quando mastiguei, fazendo o mesmo ritual infantil, trevos encontrados em meu bairro, por outro lado, não tive coragem de mastigar umas formiguinhas que na época de infância tinha um gosto ácido. Achei terrivelmente repugnante. Alguns sabores se tornam diferentes com o decorrer do tempo e o melhor que temos que fazer é deixá-los somente em nossas lembranças.


Paulo Francisco

Sentido II (Eu adoro cinema)



Sempre fui, hoje um pouco menos, rato de cinema. Quando criança, a minha melhor diversão nos finais de semana era assistir a um filme; nem mesmo os parques de diversão e ocasionalmente uma lona de circo, tiravam de mim, o ritual domingueiro. Era batata. Não queria saber o que estava passando, se era um épico, um faroeste, um romance, uma comédia ou um suspense. O que importava mesmo era estar lá, sentado naquela poltrona de madeira, com o colo cheio de guloseimas. Não piscava, não olhava para os lados.

Aquela tela branca a minha frente, em poucos minutos, se transformaria num outro mundo e eu não podia perder nem mesmo os riscos, as ranhuras do desenrolar da fita no começo de tudo; Aquela tela branca se transformaria, em pouco tempo, num túnel mágico. Um mundo totalmente desconhecido eu conhecera a cada domingo; lugares inalcançáveis, para um guri cheio de imaginação, estavam ali, bem a frente. Foi com os filmes que conheci lugares fantásticos, pude ir ao deserto e sofrer junto com o caubói enterrado na escaldante areia desértica; transportei-me a Roma, à Grécia. Vesti um pesado elmo, arrotei com os musculosos bárbaros depois de devorar uma ave assada no meio da floresta, após uma sangrenta batalha; andei a cavalo, dirigi os carros mais incríveis. Pulei na cadeira de madeira no mesmo ritmo do cavalgar dos camelos, com meu turbante branco. Fui à China e lá me tornei um espadachim, conheci um foguete por dentro, pude pisar em planetas sombrios. Conseguia todas as belas mulheres que cruzavam o meu caminho e o caminho dos agentes secretos, companheiros daquelas tardes cheias de suspenses. Quantas mulheres lindas me hipnotizaram em closes criados exclusivamente para mim. Eu jurava que aquela piscada de olhos, aquele inclinar de cabeça num ângulo perfeito, era só para certificar que eu estava ali, parado, paralisado com a pipoca congelada em minhas mãos próxima a boca aberta e certamente salivando. Eram, exclusivamente, pra mim! Eram verdadeiras deusas da beleza e da sensualidade. Também sofria com alma feminina, quando abandonadas, por algum mau caráter. Invejava todos aqueles que as podiam beijar.

Coração disparado, respiração presa, olhos cerrados, mãos nas bochechas à espera de um susto quando o homem fosse sair da cortina para estrangular a bela moça, ou simplesmente, ficava à espreita num beco ao fog londrino, ouvindo o toc-toc de seus saltos, num ritmo cadenciado. Gargalhadas incansáveis com o meu magro e o meu gordo preferidos, numa imagem acinzentada que até hoje aparecem em meus pensamentos malucos. Poderia ficar aqui citando vários momentos adoráveis, naqueles verdadeiros teatros de projeção.

Poderia detalhar, passo a passo, cenas perfeitas, lugares fantásticos, uns alegres e quentes, outros, sombrios e frios, mas o que importa mesmo, foi que o cinema me deu emoções, que o mundo real jamais me proporcionaria. Eu adoro cinema.

Paulo Francisco

Sentido I (Qual a sua trilha sonora?)



Deitado em minha cama, naqueles dias que não quero sair dela, fiquei pensando quais seriam as minhas canções. Quais as canções que poderiam fazer parte da trilha sonora da minha vida. Tentei escolher algumas, dentre milhares que conheço. Difícil enumerá-las. Em minha infância, por exemplo, certamente, eram as canções de roda e possivelmente uma canção de ninar. É! Uma canção de ninar. Não consigo lembrar qual a melodia que saía da boca de minha mãe, mas lembro-me de que ela me ninava com uma canção de melodia triste. Lembro-me de vários cantores, mas um, jamais esquecerei, não por achá-lo o melhor cantor, o melhor intérprete, nada disso, não tinha, pela idade, esse senso crítico, mas o dono de um boteco na esquina onde morava, era indubitavelmente, fã ardoroso do cantor. Em seu estabelecimento, tinha aquelas máquinas de músicas, cheia de luzes e ele escolhia várias de Roberto Carlos. Na época, as minhas favoritas eram a Garota papo firme e Jesus Cristo, talvez por serem as mais tocadas e a todo volume.

A imagem de Elis Regina na televisão me fascinava, da mesma forma, fascinou-me um camarada de cabelos grandes, armados, usando uma bata e pulando corda num palco, o camarada era nada mais, nada menos, que Caetano Veloso. Dele sou apaixonado por tudo que faz. Mas voltando às canções, posso dizer que a música Olha, de Roberto, tem um significado especial, já não mais com sentimentos infantis, pois, pude escutar a tal canção de uma quase namorada que a cantarolou em meu ouvido numa mesa de bar. Pena ela já ter namorado e só podermos namorar às quartas-feiras, noite de somente duas aulas no Visconde de Cairu. Nunca mais esqueci da música...

Quando o meu filho nasceu, a de Guilherme Arantes – amanhã, foi a música de nós dois. A Canção da América de Milton Nascimento, sempre me lembrou e sempre me lembrará de um amigo. Mas, qual seria a minha canção? A dos Bee Gees ouvida num rádio ruidoso, onde uma menina tentava me ensinar a dançar? Maninha cantada por Marina e Caetano, dita por uma outra menina que todas as vezes que ouvia a canção lembrava de mim? Fica difícil, realmente, escolher uma única, diante de tantas fantásticas. Mas na trilha sonora de minha vida, não poderiam faltar o Nelson Gonçalves com aquele vozeirão contrastando com as vozes da galera da bossa nova. Da mesma forma que a Ave Maria às seis horas da tarde era sagrada em várias casas, inclusive na minha, o cantor Altemar Dutra, invadia o corredor cumprido da Vila onde morava com sua voz peculiar cantando lindas canções.

Eu não sou flamenguista e muito menos tinha uma nega chamada Tereza, mas era impossível deixar de cantar junto com o Simonal.

Foi em 72 no apartamento de uma moça, em Teresópolis, que vi e ouvi o LP de capa branca, escrito Caetano Veloso. Na época, fiquei ligado naquelas canções e adorando saber que Caetano e Gil, segundo ela, estavam bêbados (verdade ou não, adorei saber) e por isso erraram a melodia de Irene. Neste mesmo disco, ouvi pela primeira vez a frase: ¨Navegar é preciso, viver não é preciso¨ Adorava a Banda de Chico, mas Construção era diferente, era mais que uma música, pensava ainda moleque, era uma história com começo, meio e fim. Todos falam do disco Drama de Bethânia, mas eu adorava Pássaro da manhã, depois quase furei o LP Álibi da mesma cantora. Aliás, em meados dos anos setenta, curtia Simone, adorava a Gal, a capa do disco Índia era muito, muito sensual. Rio antigo de Chico Anísio cantada pela Alcione era lindo! Em 1976, consegui ouvir pela primeira vez - Pra dizer que não falei das flores.

Certamente, não vou conseguir montar uma trilha sonora que represente a minha vida, sem mencionar, Paulinho da Viola, Martinho da Vila, Dona Ivone Lara, Clementina de Jesus, Clara Nunes, Alceu, Belchior, Fagner e suas proibidas, Morais Moreira, Milton Nascimento, Djavan! Mais tarde, Nana Caymi, Vinicius de Moraes, Tom e outros.

No RioCentro, o da bomba, vi Gonzagão e Gonzaguinha, João Bosco, Roupa Nova, Chico que não cantou (fiquei frustrado) e vários outros já citados neste texto e muito mais. Lembro-me nitidamente daquela noite. O banho que Caubi deu na galera com a sua Conceição foi inesquecível. Percebe-se o ecletismo? Nunca fui de uma única tribo. Sempre gostei de vários estilos, sempre ouvia de tudo. Jamais recusei qualquer canção e, foi assim que construí uma imensa trilha sonora à minha vida. Ah! Como posso deixar de mencionar a Nara Leão, o Luis Melodia, João do Vale, Cazuza, Renato Russo, Lenine, Céu, Tim Maia, Zizi, Cláudia, Ângela Ro rô, Raul Seixas, Elvis, Beatles...

Qual a trilha sonora de sua vida?

Paulo Francisco

Reduza a velocidade, estrada com neblina...




A neblina se dissiparia a qualquer momento e ele sabia disso. Então, calmamente espera o inevitável. O homem não se arriscaria numa estrada que pouco conhecia e espera para seguir viagem quando tiver certeza de sua visibilidade.

Conhecedor de várias outras estradas, observa os afoitos que acabam ficando no meio do caminho; os arrependidos, que voltam de marcha-ré para o ponto de partida – é divertido.

Em seu confortável carro, ri do desespero de uns e da raiva de outros. O homem parece não ter pressa, sabe que o nevoeiro é momentâneo – então pra que a pressa?

A sua calma poderia ser confundida com medo e era possível que estivesse com um pouco de medo – era macaco velho.

Acomodado em seu veiculo, acaba cochilando.

Ao acordar, nota que a névoa densa se dissipara. Tranquilo, sai de seu carro, olha para o horizonte e, pode ver claramente as curvas sinuosas daquela a ser percorrida – sorri de satisfação.

Já seguindo viagem, encontra uma lombada aqui, um quebra-mola ali, buraquinhos traiçoeiros, inesperados. Assim ele segue, desviando de cada obstáculo encontrado – não são muitos, a estrada foi reformada.


Quanto mais prossegue em seu caminho, mais o dia se transforma num azul brilhante e agradável.
No final do percurso, o homem pôde ver o pôr-do-sol prenunciando uma linda noite lua!


Com os seus pés molhados pelas ondas do mar, sente o frescor da brisa em seu rosto e sorri. Conheceu pontos fantásticos da nova estrada, locais perfeitos para longas paradas, outros onde bastava seguir devagarzinho para apreciar o que ela tinha de melhor. Deu um berro, imitando um selvagem, sinalizando com sua voz o território conquistado.

Agora, quem disse que ele quer ir embora? A estrada é perfeita em dias ensolarados. Ele olha para cima e não percebe uma nuvenzinha cor de chumbo se formando. Certamente, prenúncio de uma forte tempestade - Ciclo natural em qualquer lugar do mundo.

Somente um tolo pensaria o contrário...

Paulo Francisco

Flash






Chove lá fora. Sentado na poltrona do ônibus a caminho do trabalho, disperso em seus pensamentos, o homem olha as paisagens repetidas de todos os dias, quando uma figura intrusa, aparece como um flash prateado a sua frente.
A imagem leva-o para um tempo lírico; um tempo em que a inocência fazia parte de sua vida.
Vê seus verdes anos, quando as pernas tremiam na presença de uma figura feminina; vê um garoto que adorava escrever sobre um amor que ainda não experimentara; vê o amor não concretizado, a paixão solitária como uma folha ao vento sem direção.
Quando volta daquele transe, percebe que não crescera tanto assim, pois seu coração bombeia jatos fortes de sangue para todos os órgãos vitais de seu corpo. Está fervendo. Coloca a mão disfarçadamente no rosto - como se não quisesse ser flagrado naquele estado febril.
Disperso, não mais pela paisagem da janela, mas pelo sentimento invasor. Seu corpo dói, suas mãos tremem e um clarão cor de prata surge diante de seus olhos. Uma imagem feminina aparece, as mãos dela afagam seu rosto e os seus lábios se movimentam, mas não consegue ouvi-la, não consegue tocá-la. Seu corpo está pesado, paralisado, indefeso diante da imagem da mulher. Ela segura suas mãos e como um passo de mágica, passa-lhe uma energia, deixando-o novamente em transe.
O homem é transportado para um tempo impreciso.
Ainda zonzo, tenta reconhecer o lugar inutilmente.
Surge um novo clarão. Um clarão amarelo, cor de ouro e como se tivesse saído de dentro da cor, um homem lhe sorri. A imagem masculina estica suas mãos e as coloca em sua testa. Ele, sem poder se movimentar, percebe as mãos ásperas, calejadas como as de um trabalhador braçal.
Confuso, tenta falar, mas sua voz não sai. O homem, percebendo sua aflição, coloca as pontas dos dedos em seus lábios impedindo-lhe de tal esforço e em seguida pressiona-lhe o peito e ele, sem poder fazer nenhum movimento, recebe daquelas mãos ásperas um calor nada igual. Não queima, não arde, é um calor agradável um pouco mais que o calor de seu próprio corpo. Em seguida, a imagem some junto com a cor.
Por alguns segundos, tudo fica calmo. Nenhum som, nenhuma imagem. Tudo a sua volta está incolor.
Fumaças, de todas as cores, preenchem aquele ambiente. Todos os tons de azul, vermelho e amarelo. Ao ver a fumaça de cores dançando a sua frente, ele tem uma sensação agradável e surgem entre as cores, crianças: meninos e meninas, de todos os tamanhos, de todas as raças. Olha espantado para aquela miragem e percebe que elas, estão distantes – são lembranças de seu passado.
Depois de certo tempo, a fumaça colorida evapora e tudo fica como antes – silencioso e incolor.
Olhos fechados. Ele quer sair daquela situação de delírio. Pensa em gritar, mas não consegue. Pensa em correr, mas não consegue.
Abre os olhos e o que era incolor, agora é negro. Sente-se como num quarto escuro. Uma luz leitosa aparece ao longe. Duas garras abrem-lhe as pálpebras. Ouve vozes.
Tudo volta ficar branco e naquela cama de hospital percebe que sofrera um acidente. Seu ônibus batera num poste.


Paulo Francisco

Cinza



Ele acordou. Num espreguiçar lento como o de um felino, esticou-se e permaneceu paralisado, por alguns segundos na cama olhando fixo o teto que lhe cobria a cabeça. Como num passo de mágica, notou uma mancha intrusa a desenhar algo na cobertura de madeira e, que aos poucos, fora criando forma.

A simples mancha, transformara-se numa imagem feminina; a nitidez da imagem lembrava-lhe uma tela pintada por um artista apaixonado. Aquela linda figura de mulher parecia-lhe sorrir e, confuso, retribui o sorriso, como se ela fosse esperada por ele.

O homem naquela cama, numa posição quase fetal, deixara-se levar pela mancha mágica e, sem o menor receio, estudou cada milímetro daquele rosto sedutor que o transportou, por alguns instantes, para um tempo desconhecido.

Já sentado numa posição infantil, com as pernas entrelaçadas, percebera que ela já não mais lhe sorria, porém permanecia com um rosto angelical. Ele passou as mãos em seu rosto, como se quisesse ter a certeza de estar acordado e, de olhos bem abertos, presenciou a transformação das cores vivas daquela imagem por uma cor acinzentada e, num impulso, ficara de joelhos na cama bagunçada e pôde notar, com mais clareza, que a cor sombria vista antes, era na verdade, o cinza-prateado de seus cabelos cobrindo parcialmente o rosto daquela mulher.

Ela que antes sorria, agora, passava uma certa angústia num olhar sofrido e esse sentimento impregnou o corpo daquele observador. De pé, sobre os lençóis brancos e amarrotados, que antes lhe cobriam o corpo, tentava de maneira vã, alcançar o inalcançável com suas mãos estendidas como se estivessem a implorar, inutilmente, ao desconhecido que o deixasse tocá-la por um instante.

Permanecera ali, paralisado, vendo de forma mágica aquela figura desaparecer da mesma forma que surgira: lenta, suave e silenciosamente.

A angústia deixada por ela se transformara num sentimento tão conhecido por ele – a saudade – e, ainda em pé sobre os brancos lençóis, o homem sentira que não estava sozinho e ao virar-se depara-se com um corpo enrugado, cinza, ocupando o seu lugar.

Paulo Francisco

Azul



O despertador toca. Só consegue acordar no susto e, aquele som metálico desperta ou assusta, até mesmo, os vizinhos ao lado de seu apartamento. Levanta e vai direto ligar a cafeteira. Não acorda por completo sem um gole de café. Banho tomado, barba feita, roupa escolhida e, em dez minutos estará pronto para mais um dia de trabalho. Abre a cortina do quarto e se depara com um céu límpido, um céu azul sem nenhuma mancha branca. Pensa: ¨Será um dia daqueles. Um dia que dá vontade de desviar o caminho e passar todo ele numa praia calma, tomando água de coco, sem pensar em mais nada. ¨ ¨Mas como? Ainda estamos no meio da semana, tenho que me conformar com o ar condicionado do escritório. ¨ - Completa o seu pensamento.

Entra no carro e parte para uma viagem, se o trânsito permitir, de trinta minutos.

Mas não consegue deixar de pensar na possibilidade de não ir ao escritório naquele dia, ou pelo menos, por aquela manhã. Estranha o seu comportamento, já que não falta nem mesmo quando está doente. Ri sozinho, achando que está ficando maluco.

Ele tem dois trajetos para chegar até o trabalho: seguir pela Serra, caminho curto de trinta minutos, mais ou menos ou ir pela orla, percurso maior, uma viagem de uma hora sem engarrafamento – Fora de cogitação. Está sempre sem tempo.

Sorri, quando pensa na possibilidade de tal travessura. Pronto. Resolve seguir pela orla e, grita sorrindo: ¨ Dane-se!¨ ¨ Dane-se! Sente-se como um adolescente matando aula.

Dirige no mínimo permitido para poder observar, em detalhes, o mar azul riscado por espumas brancas. O céu reflete um azul que só os desocupados, daquele dia, podem usufruir- ¨Que mundo ingrato!¨ - Pensou.
Não querendo filosofar e sim aproveitar a paisagem, estaciona o carro para melhor sentir o ar e o frescor marinho. Caminha em direção ao calçadão. Com o pé apoiado no banco de concreto, admira o mar e, inveja, por alguns segundos, aquelas pessoas deitadas na areia.

Totalmente desalinhado, gravata no bolso da calça, camisa desabotoada, sapatos nas mãos, decide molhar os seus pés naquela água salgada, quando toda aquela imagem some de seus olhos e uma barreira escura lhe cega por alguns segundos. É um lenço que fugiu das mãos de sua dona e foi parar em sua face. Assustado, com a presença repentina daquele objeto leve e perfumado, tira-o imediatamente de seu rosto e ao olhá-lo, pode perceber a delicadeza daquele pano e como é delicada a fragrância exalada por ele.

Olha para o lado de onde vem o vento e vê uma linda mulher andando depressa sobre a areia fofa. Sorrir ao perceber o andar desajeitado dela, querendo andar rápido, mas sem perder o ar feminino no andar.
Ele a ajuda subir o degrau e com um sorriso lhe entrega o lenço. Ela ainda recuperando o fôlego, tenta explicar como o objeto fugiu de suas mãos.

O homem, admirado com a beleza daquela mulher, quase esquece o próprio nome (está tonto diante de tão bela imagem). Após se apresentarem, ele a convida para tomar água de coco no quiosque ao lado. Ela aceita e, ao sentar, amarra o lenço no espaldar da cadeira. Conversam sobre a paisagem, descobrem onde moram, onde trabalham e, depois de uns quinze minutos de conversa agradável, são interrompidos por uma buzina frenética de um carro preto parado próximo aos dois – é o motorista dela. A bela mulher se levanta e se despede rapidamente. Corre para o carro e sem olhar para trás entra no veículo. O motorista – um homem moreno, relativamente jovem, abaixa os óculos escuros com o indicador e mira-o da cabeça aos pés, como se tivesse estudando-o.

O carro sai de maneira brusca, cantando o pneu. Quando ele se volta para o lugar onde ela estava, vê o lenço amarrado a cadeira, tenta tirar rapidamente, pensa em entrar no carro para alcançá-los, mas desiste de tal ação. Pega o delicado lenço, leva-o ao seu rosto e sente o cheiro suave daquele perfume.
Depois de um tempo parado olhando o mar, entra no carro e dirige em direção ao escritório. Chega mais leve, mais bem humorado e, com o lenço azul nas mãos, pede a sua secretaria que entre em contato com a Diretora financeira de uma determinada Empresa.

Ele pensa: ¨ benditos quinze minutos... bendito esquecimento... bendito lenço azul.¨

o telefone toca .

- Alô! Júlia?
- Sim, é ela...
- Carlos, falando... você esqueceu o seu lenço na praia...
- Estou muito distraída...

Sorrisos de ambos.

Os sorrisos continuaram à noite num belo jantar ao lado de um imenso aquário marinho.


Paulo Francisco

Vermelho




Sempre gostara de ir ao Centro do Rio. Sempre achara mágico, único, aquele aglomerado de gente. Adorava aquela confusão organizada. Passos apressados, gente em todas as direções. Tinha um hábito estranho de se encostar na parede de um daqueles espigões só para ficar observando aquelas pessoas fascinantes – homens e mulheres vestidos elegantemente, misturados às pessoas simples de uniformes ou não.

Mas não eram somente as pessoas que as fascinavam. Os prédios modernos engolindo os escassos prédios antigos, estátuas nas praças, adornos de séculos passados, ignorados pelas pessoas sem tempo daquele lugar, também, lhe deixavam com a sensação de estar num ambiente ímpar.

Fazia questão de chegar ao Centro de ônibus. Sentada do lado da janela, observava as portas envidraçadas dos prédios, as bancas de jornal, alguns poucos camelôs. Nunca entendera porque sempre existiam pessoas paradas olhando aquelas bugigangas.

Jamais deixara de visitar as poucas galerias de arte.

Um pulinho no Museu histórico na Praça quinze era de praxe.

Lembrava dos tempos de Universidade que junto com alguns amigos penetravam em inaugurações de exposições, somente para filar o vinho branco e aqueles canapés sempre iguais.Sentia-se importante assinando o livro de visitantes. Mas foi com as travessuras daquela época que aprendera a amar as artes.
Já no término de sua observação, depara-se com uma exposição de quadros numa pequena galeria. Não se contém, entra para saber de quem são aqueles quadros de cores tão fortes. Já na porta o livro de presença – assina-o sem mais aquele sentimento juvenil. Começa a caminhar lentamente entre aquelas telas tão vigorosas. Para numa pintura, em que o azul é a cor predominante. Percebe que as variações de azuis predominam naquela série de quadros. Absorta em seus pensamentos, através daquelas telas vivas, quando percebe no final da galeria uma tela desgarrada das outras - uma tela onde o vermelho predomina . Guiada pelo intenso colorido vai até a peça e fica paralisada, olhando-a sem entender porque tanto fascínio.

De repente um susto. Sai de seu transe, ouvindo, próxima a sua nuca, uma voz grave e macia:

- Combina com seus lábios.

Ela se vira e vê um rosto que não lhe é estranho. O homem sorrir e, aquele sorriso, também lhe é familiar. Zonza, sem saber o que dizer, olha para aquela figura elegante a sua frente e com um leve sorriso no rosto tenta se afastar vagarosamente. Quando já estava pronta para desaparecer daquela cena patética, ouve mais uma vez aquela voz dizer-lhe seu nome:

- Márcia!

Ela se vira e pergunta espantada:

- Como?

E a partir daí dá-se o começa um longo dialogo.

- Sou eu, Márcia, O Renato!

- Renato...

Sim, o Renato da faculdade, lembra?

- Renato! Nato! Natinho!

- Sim! Como você está?

- Eu estou bem... você está ótimo!

E naquele momento, naquela galeria, de frente para aquele quadro de vermelho intenso, recomeça uma amizade que mais tarde, não muito mais tarde, o quadro e o dono – o Renato -, vão morar com ela numa linda casa na Serra. E todas as vezes que lhe perguntam sobre aquele quadro na parede de sua sala, ela responde:

Este quadro foi pintado pelo Renato, quando ele foi fazer estágio no nordeste. Depois nunca mais nos vimos. O nome da tela é paixão.

Mas o que ela não sabe é que o quadro foi feito por ele no momento que descobrira que a amava e que o verdadeiro nome do quadro é Márcia.

Duvidas? Quando você for visitá-los, olhe atrás da tela, bem próximo à moldura do lado inferior, o nome dela pintado de vermelho.

Paulo Francisco

A primeira ceia





Tudo pronto. Mesa posta. Não se esquecera de nenhum detalhe. Era a mesma composição do primeiro encontro - um jantar leve e romântico. "Agora é só esperar a campainha" – pensou. Verificou mais uma vez aquela mesa tão rica em detalhes. Antes de sentar-se, apanhou o controle remoto do som, apagou a luz central, deixando as arandelas acesas iluminando os quadros que compunham a parede branca da sala. Sentou-se em sua poltrona de couro próximo à janela e, ali de frente para a porta, permanecera com olhos fixos naquele objeto inanimado.

O tempo não passa – angústia. A hora não chega - nervosismo. Vai até a cozinha e enche uma taça de vinho, preferiu aquele já aberto, pois ficaria deselegante abrir o que estava à mesa.

Não queria, mas era impossível não pensar por que chegara àquela situação. Sempre vivera sozinho, nunca gostou de dividir o seu espaço por muito tempo. Não tinha empregada, para não esbarrar com a mesma pessoa todos os dias. Sempre trocara de diaristas pelo mesmo motivo. Impossível não pensar no que estava por acontecer. Fazia perguntas como se esperasse respostas vindas do além: ¨Tá arrependido?¨ ¨Quer desistir?¨ ¨¨Será que vale a pena? Mas as respostas não chegavam, o silêncio daquele ambiente só era quebrado com passos e barulhos de chaves abrindo portas dos outros apartamentos.

Oito horas! Inicio de uma espera verdadeira, os segundos, os minuto seriam contabilizados, agora, como atraso. Dez minutos de aflição e um sobressalto – assusta-se com o toque suave da campainha desvirginando o silêncio estabelecido na sala.

Levanta, olha ao seu redor, esquece-se de acionar o aparelho de som e com o controle remoto em sua mão abre a porta. Uma silhueta feminina surge à sua frente. Seu corpo gelado pelo nervosismo é aquecido pelo calor transmitido pelo beijo ardente daquela que tanto esperava.

Surpresa pelo ambiente acolhedor, não pergunta para ele o motivo daquele jantar no meio da semana, fugindo à rotina de ambos. Entre conversas e sorrisos seus olhos se encontram revelando um amor verdadeiro; uma cumplicidade nunca vista.

No meio daquela cena perfeita, surge entre um arranjo de flores do campo um brilho. Os olhos dela estão tão brilhantes quanto o anel encontrado, diz sim para o pedido daquele que sempre pensara que era feliz vivendo isolado.

E, ele, nunca mais ficará sozinho.


Paulo Francisco

De novo o gato!



As minhas experiências com gatos nunca foram agradáveis. Eu tento, juro que tento ser amigável com os bichanos. Mas há uma incompatibilidade enorme entre nós dois. Eu não sei precisar o início dessa ojeriza, mas quando criança, lá pelos oito anos de idade, assisti ao atropelamento de uma gata prenha – era uma felina linda. Até então, não me importava com a espécie.

Naquela tarde, estava na calçada, próximo à minha casa e, de repente, vejo a pobre da gata colada no pneu de um fusca. O carrinho, pelo menos, girou duas vezes, para não dizer três, antes de cuspi-la longe de sua roda assassina.

Lembro-me, com exatidão, de que saí correndo para o colo de minha mãe. Jurava que a infeliz foi morrer longe dali, pois não tinha dono, era uma inquilina adotada por todos da Vila onde morávamos. Depois de ter sido afagado pelas mãos maternas, esqueci o acontecido e como qualquer criança, fui brincar com os amigos, pois eram mais importantes as brincadeiras, que ficar lembrando de tal episódio.

Após uma semana, já tinha apagado de minha memória recente o atropelamento. Mas, numa certa manhã, notei um alvoroço danado no final da Vila, quase todos os adultos estavam lá formando um circulo, contemplando algo.

Ouvia nitidamente um grito e, a cada grito, o desespero dos adultos que corriam de um lado para outro. Uma senhora com panos nas mãos, forrava o fundo de uma caixa de madeira, transformando-a numa espécie de cama - não entendia o porquê de tanto agito.

Curioso, muito curioso, fui chegando cada vez mais perto e, quanto mais me aproximava, reconhecia que o som que ouvia era de um gato. Abri caminho entre aquela barreira humana e deparei-me com a cena mais grotesca da minha vida: era a atropelada dando cria. A gata tinha parte do corpo sem pêlo, estava, como se dizia naquela época, em carne viva.

Saí correndo em desespero para casa e, foi ali que acreditei, piamente, que esses seres tinham sete vidas. Nunca mais consegui chegar perto daquele animal.

Outros episódios aconteceram comigo e os felinos, mas foi na minha adolescência que descobri que tinha pavor deles. Não entrava em casa de jeito nenhum se não chegasse alguém até o portão, para proteger-me de, pelo menos, uns dezenove gatos sentados no muro do corredor da Vila onde uma tia morava – nesta época, eu morava com ela

Quanto mais olhava para aquele ¨corredor-gatês¨, imaginava todos me atacando, numa revolta felina. Não conseguia dar um passo a frente. Ficava, ali, paralisado, esperando um bem feitor, ou quando muito, conseguia gritar o nome de alguém para vir ao meu encontro. Só passava quando não existisse mais nenhum deles trepados na muralha da morte. Nunca entendi por que aquele casal precisava ter tantos desses animais. Vai entender!

Pois bem, uma semana atrás, tive um outro episódio desagradável com um bichano - o mais desagradável de minha vida. Saí do trabalho às dez da noite e, como de costume, dei uma passadinha num bar para conversar com os amigos. Geralmente, vou pra casa no ultimo ônibus, chego em casa menos pilhado, pois sou professor e lidar com adolescentes não é nada fácil. Neste dia, ou melhor, nesta noite, cheguei em casa e fui direto para o meu quarto, liguei a TV, tirei o notebook da bolsa, despi-me e resolvi ir até a cozinha preparar um café - não pretendia dormir de imediato - precisava arrumar algumas pastas no computador.

Chegando à cozinha, ao acender a luz, percebo um vulto de um lado para o outro numa velocidade incrível na área de serviço, pensei logo num animal silvestre, um gambá, por exemplo. Mas o receio (medo mesmo) me fez ser cauteloso e, sorrateiramente, fui me aproximando do local. Chegando , só consegui ver uma cauda peluda, num movimento espetacular. Imediatamente, dei alguns passos para trás, fechando, mais do que depressa a porta da cozinha. Pronto! Prendi o invasor naqueles dois cômodos. Dei a volta pela casa e abri uma das portas da área e tentei com auxilio de uma cadeira visualizá-lo através de uma das janelas da cozinha. Mas não consegui. Voltei para dentro da casa, abri todas as janelas, deixei a porta da sala escancarada e armado com um cabo de vassoura fui ao encontro do animal, na esperança dele ter fugido pela porta da área de serviço ou pela mesma abertura por onde entrou.

Confiante, numa lógica racional, tomei-me de coragem e, com a ponta da madeira batendo ao chão, fui entrando, fazendo o máximo de barulho possível. Certamente, eu estava sem cor. Minhas pernas tremiam como bambuzal em tempo de ventania.

Pronto. Estava na área, consegui acender a luz e certifiquei-me de que o animal não estava mais lá. Pensei: ¨Será que o danado fugiu? Mas se foi embora, saiu por onde? Pela abertura ou pela porta?¨ Voltei para a cozinha e senti a necessidade de olhar a despensa, mas como enfiar a cara naquele espaço de um metro e trinta por dois metros, mais ou menos e com uma única porta?. E se o bicho estivesse acuado ali? O que eu faria? Tinha que me certificar de que o visitante tinha realmente ido embora. Enchi-me de coragem, auxiliado pelo meu grande cabo de vassoura, e comecei a cutucar em todos os lugares. Alivio, lá, ele não estava - pensei. Quando já estava resolvido a acreditar que o sacana já tinha ido embora, resolvo voltar e cutucar um saco de carvão encostado a parede embaixo da prateleira e nada aconteceu.... Mas quando dei um passo para trás, vi, numa fração de segundo, um vulto com as quatro patas abertas voando em meu peito. Com a rapidez de um relâmpago, apoiou-se em minha perna dando um salto em direção à porta da cozinha, ali tive a certeza de que era um gato. O danado resolvera invadir o meu espaço. Fiquei gelado, branco, paralisado.

Aquele ataque era tudo que eu não queria que acontecesse. Sabia que eu era um ser inferior... Corri para o meu quarto, vasculhei cada canto, fechei a porta e esperei até o outro dia, certo de que o felino iria embora, pois a casa permanecera com janelas e portas abertas por toda noite.

Decididamente não há conversa entre mim e um gato.


Paulo Francisco

Bota justa





Estava chovendo. A noite chegara fria e molhada em Friburgo. Mesmo assim, três amigos confabulavam num canto do auditório, como sairiam daquele ambiente de estudo para visitar uma feira de promoções, que acontecia naquela cidade. Uma das participantes, moradora local, ouvindo a conversa do trio se ofereceu, de imediato, a levá-los de carro. Uma maneira, também, de sair daquele hotel por algumas horas.

A feira tinha de tudo, desde carros fantásticos a cabelos sintéticos para aplique – um horror. A moça sempre passou uma certa tranquilidade. Ser calma é uma de suas características, talvez a principal. Como uma boa anfitriã, segue os colegas indecisos e duros. Até que, de repente, depara-se com uma peça de vestuário num dos stands e esquece, por completo, os seus visitantes. Paralisada, hipnotizada pela peça, não consegue dar mais um passo.

Percebendo o tal fascínio da moça, os três resolvem visitar a feira separados, deixando-a em companhia de seu objeto de desejo – uma bota de couro. Combinaram o local e a hora que se encontrariam e partiram para a peregrinação promocional.

De stand em stand, os três chegaram ao local do encontro e perceberam que a gata–da-bota não se encontrava. Resolveram, então, depois de um certo tempo de espera, voltar a tal loja do objeto de desejo da felina. Chegando lá, uma cena chamou atenção dos três: um certo tumulto ao redor. da moça... mas, puderam perceber, também, que ela estava a sorrir; era um sorriso seco; um sorriso baixinho; um sorriso como a dona - Calmo. Os colegas, curiosos, sem entender o que estava acontecendo, aproximam-se e veem uma cena inusitada - A bota estava entalada em sua perna.

O vendedor de branco estava rosa. A perna dela entre as suas que, dependendo do ângulo, dava margem para interpretações diversas e o homem, coitado, numa força descomunal, tentando a qualquer custo arrancar aquela peça do corpo da moça. O pobre coitado puxava daqui, puxava dali e nada - a bota continuava lá, presa, fixa em sua perna. O homem de rosa já estava vermelho e, não demorou em ficar num bordô tricolor.

A moça continuava calma, com seu sorriso tranquilo à espera de uma solução. Olhava para os amigos e sorria. A sua calma chegava a ser irritante.

A gerente, já nervosa com o que estava acontecendo, não somente dentro da loja, mas também com o que estava acontecendo fora dela – um verdadeiro alvoroço. Decide, então, acabar com aquela cena constrangedora, e, com uma imensa tesoura, resolve num impulso, tirar o calçado daquela perna de qualquer maneira.

Enquanto isso, os clientes que ali chegavam, esqueciam-se de suas compras e engrossavam o coro: “Tira! tira! tira!” que se instalou em frente à loja. A atração da feira não era mais o Professor de dança de salão, pois todos que ali estavam se exibindo foram parar do outro lado, confirmando ao dançarino que ele fora derrotado por uma bota. Já não se ouvia a voz do locutor no alto-falante, tamanha algazarra.

Aquele que tentava de uma forma ou de outra saber o que realmente estava acontecendo, ouvia respostas das mais desencontradas: ¨Uma mulher resolveu tirar a roupa no meio da loja¨; ¨Duas mulheres estão brigando por causa de único par de botas de um determinado modelo¨... a pobre moça, foi chamada de louca, bêbada, amante e vários outros adjetivos que não seria de bom tom expressar.

De dentro da loja, ouvia-se, além da palavra de ordem, Tira! outras tão engraçadas como:

_ Coitada! Tá desmaiada. É?

_ Amante! Tem mais é que levar porrada mesmo! Essa frase foi de uma senhora baixinha e gordinha, quase uma caricatura da vovó do desenho animado.

O bêbado tentou falar:

- Eu também quero... se... se..va .iii.. ti ti rarrrr... a ro (u) pa... eu...quero ver.

Com a tesoura na mão, a gerente, já espumando de raiva, resolve cortar a bota para salvaguardar a integridade da perna da cliente. E com um corte próximo ao zíper, pronto, a linda perna ficara livre daquele objeto de couro e, como num final de um show de Rock, todos, ali presente, aplaudem, gritam, assoviam e da mesma forma que apareceram, desapareceram.

A moça, calmamente, escolhe um outro par de botas e, sem calçá-lo paga e sai sorrindo como se nada tivesse acontecido.


Paulo Francisco

A capa de chuva



Ao entrar na sala vê a capa de chuva próxima à porta. Já tinha chegado. Pegou a chuva pesada que caíra há pouco – pensou.

Sem saber o que fazer, totalmente perdida, caminha até o bar. Fala baixinho: ¨ Não queria que fosse assim...¨. O copo nas mãos, sem ainda tocar na bebida, decide deixá-lo à mesa de vidro no centro da sala.

Ao se virar, pega-se olhando no espelho. Percebe o desespero em seu rosto. Sabia que seria difícil enfrentar aquele momento que adiara por tantas vezes; quando se volta, dá de frente com sua cara-metade parada, no meio da sala, muito próximo dela. Sem dizerem nada e, por longos segundos de silêncio se encaram. Silêncio, somente quebrado, por um adeus baixinho de quem partiria.

A porta bate e, os passos de quem saíra, vão diminuindo, até desaparecer por completo, para o desespero de quem ficara.

A angústia permaneceu naquela linda sala e, sem querer acreditar na partida, fixa-se na capa de chuva esquecida próxima à porta; em passos curtos, vai até ela; ao tocá-la, nota que está quase seca e a água que há pouco existira, fora parar no assoalho, formando uma poça na qual a imagem, de quem partira, ocupara toda a lâmina d´água.


Paulo Francisco

O gato




Tenho uma amiga de décadas, somos quase irmãos. Ontem, resolvi ir até sua casa. Queria conversar, jogar conversa fora, mas queria também levar alguns textos para ela dá uma olhada.

Chegando lá, encontrei-a em seu quarto conversando ao telefone com uma amiga (que não conheço) de Vila Velha. Voltei para a sala. Sentado num velho puff marrom, ao lado do som, coloco um cd que fizera para ela e fico me deliciando, com a voz da cantora.

Depois, abrimos uma garrafa de vinho e os nossos corações, falando dos anseios de cada um. Mais tarde, ela leu uns dois textos meus e finalizamos aquela noite com ela lendo alguns contos de uma autora que me apresentara há duas semanas pelo telefone. Fiquei apaixonado pelo que ouvira e, ontem não foi diferente, ao ler vários contos da autora, um me chamou atenção. Terminada a leitura parecia-me que tinha levado uma porrada na boca do estômago, o nome do conto era o gato luz.

Fui para casa e não conseguia deixar de pensar no que ouvira e percebi que não sabia nada sobre os gatos.
Ora! Se não sabia nada sobre esses felinos, por que então, dizia que não gostava deles. O que eles fizeram para eu me distanciar deles? Ou o que eu fizera a esses bichanos para que não permitissem a minha aproximação?

Refletindo sobre isso, cheguei à conclusão da minha intolerância com relação aos gatos - Somos parecidos em muitos aspectos: a individualidade; presentear somente a quem se ama; ficar à espreita, à espera de sua caça; não ter medo de mostrar seus sentimentos quando não gosta de uma situação; abandonar seu lar sem deixar recado e voltar dias depois como se nada tivesse acontecido; não tá nem aí quando se faz amor e, principalmente, nunca marcar território em círculo. O que mais me chamou atenção foi dos gatos marcarem seus territórios numa linha reta, sempre seguindo em frente e, ai daquele que cruzar o seu caminho! Então, possivelmente, eu não tenho ou não quero ter nenhuma afinidade com esse animal, por está sempre marcando o meu território em linha reta também e, ai de mim, ser derrotado por um bichano.

Paulo Francisco

À luz de vela




A mesa, coberta por uma toalha branca de algodão, realçava o colorido das louças ali postas. Um pequeno vaso de flores no centro da mesa indica que ali acontecerá um encontro. Tudo fora preparado para duas pessoas. O romantismo do lugar se completa com as velas acesas, transformando o ambiente numa pintura.
Um pouco afastada, num sofá branco, no canto da sala, a pessoa, que arrumara o lugar, com a delicadeza de quem se ama, escuta de olhos fechados, uma música extremamente suave, enquanto espera sua visita. Está adiantada.

A campainha toca e a porta se abre, os olhos se encaram, as bocas sorriem, os rostos se encostam, os corpos se grudam, os braços se fecham e, ali mesmo, no tapete da sala, dois corpos se fundem.
O jantar acontecera mais tarde, em um prato feito numa bandeja à cama e, por motivos óbvios, fora parar no chão ao lado dela. As velas acabaram, mas a chama da paixão ilumina, por muito tempo, seus corpos aquecidos. Nesse exato momento a campainha toca e, do sofá, levanta quem sonhara. As velas continuavam acesas, nada saíra do lugar, percebendo que tudo não passou de um sonho, ajeita-se e vai atender a porta e, ao abri-la, eles se olham, sorriem, se abraçam e o resto você já sabe.

Paulo Francisco

Máscaras




Quando eu era criança os meus heróis usavam máscaras. Eles ficavam mais intrigantes com aquela peça, geralmente, negra. Mas os seus inimigos, também usavam um artefato parecido. A máscara está em muitas paisagens de minha vida. Na minha apressada infância morria de medo de certos mascarados no carnaval - ficava aflito - sabia que aqueles homens que escondiam os seus rostos não eram os meus heróis e, se não eram os mocinhos, poderiam ser, então, os temíveis bandidos da minha fértil imaginação.

Fui crescendo e algumas máscaras caíram. Mas várias outras surgiram e muitas rodeiam-me até hoje. Já sabia que não existiam heróis de verdade, mas que os mascarados-bandidos eram em muitos e reais.
Com o tempo fui descobrindo vários tipos de máscaras. Elas podiam está bem próximas da gente, disfarçando-se em amigo, em patrão. Algumas máscaras são tão sofisticadas que podem ser interpretadas com uma sigla qualquer: Dr., Sr., Ilmo... O disfarce é tão perfeito que chamamos alguns mascarados-bandidos de Vossa excelência, excelentíssimo. São excelentes...

Fui percebendo que, para muitos era inevitável, era utensílio. Sem ela não viveriam, não alcançariam seus objetivos.

Portanto, como já disse, somente os bandidos mascarados são reais. Não temos, na verdade, um morcego no céu, um homem voador; nem avistamos no alto dos prédios um homenzinho pendurado em fios. Lamentavelmente, não temos heróis, que possam combater esses bandidos sofisticados – pelo menos por enquanto.

Pois bem, cresci, conheci várias outras máscaras. Confesso que em algumas situações necessitei usá-las – por uma questão de sobrevivência.

O que está me irritando, ultimamente, é a máscara de palhaço que colaram em minha cara. _ Pô! E nem é Carnaval.

Paulo Francisco

Esquisitices




Ele era franzino. Vivia num ambiente que fugia a sua compreensão. Não sabia se estava além ou aquém daquelas pessoas. Era um observador. Aprendia com facilidade tudo o que ouvia; tudo que lia. Tinha um mundo só dele – adorava inventar histórias - vivia no mundo da lua, sua mãe sempre o repreendia, não conseguia entender porque ele estava sempre aéreo.

Descobrira, ainda na infância, que podia deixar todos de sua casa preocupados, pois quando não fazia uma das refeições a família voltava toda a atenção pra ele. Então, o espírito de porco, resolveu fazer greve de fome por qualquer coisa. Bastava alguém daquela casa aborrecê-lo, pronto, decretava uma greve de fome, fazia questão de ficar o dia todo deitado no sofá da sala sem colocar um grão sequer na boca.

Bebia água em quantidade para disfarçar a fome que corroía seu estômago.

A sua pirraça era a sua bandeira.

Ver todos preocupados com a sua ¨depressão¨ era o máximo, sentia-se forte, querido, importante – deixava de ser o garoto esquisito que adorava sonhar, para ser o garoto esquisito triste de fome.

Sabia que não ficaria por muito tempo naquela condição – a fome falaria mais alto - , mas sabia, também, que enquanto estivesse naquele flagelo, a pessoa que o fizera começar a sua particular greve de fome, sentir-se-ia culpada e teria, mais tarde, toda a compreensão e carinho dela.

O tempo foi passando e suas greves de fome foram ficando maiores, até que um dia, descobrira que não valia a pena tal façanha. Resolveu substituí-la por uma atitude mais agressiva, própria da sua adolescência – deixava de falar com quem o contrariava.

O silêncio era o pior castigo, sabia que ignorar uma pessoa, na maioria das vezes, era terrível – ninguém gosta de ser ignorado.

Mas o silêncio era um risco enorme, pois, poderia perder o controle e, ele não teria como voltar atrás. Então, silêncio, somente para as pessoas que não valiam à pena.

Ele foi crescendo e sempre com atitudes extremadas. Era o rei do constrangimento. Adorava deixar as pessoas vermelhas de raiva.

Num certo momento de sua vida, usou o deboche como arma. Sabia que a ironia é a pior das atitudes, sabia que um bom deboche tirava qualquer um do sério. Fora irônico por muito tempo - Desequilibrava seu oponente com um bom sorriso irônico, por exemplo. Agradava-lhe saber que podia ser amado e odiado por muitos.

Mais tarde, já adulto, muito adulto, percebera que atitudes extremas não levam nem ele e nem ninguém a lugar nenhum. Cresceu.

Então, uma boa discussão dentro da razão era o melhor meio de atingir seu oponente, ficava horas debatendo com os amigos - defendendo seu ponto de vista. Certamente daria um bom advogado.

Hoje, cansado de tudo e de todos, tem uma nova estratégia para enfrentar os absurdos de seus oponentes – ele escreve.

Talvez seja sua melhor arma para discutir, silenciar e desconsertar seus adversários.

Pena que nem todos saibam ler.

Paulo Francisco