A lua de Tossan












A noite chegou nua de estrelas. O vento trouxe consigo um frio inesperado. A lua cobria timidamente sua outra metade com nuvens chumbadas e agitadas. E eu, ainda esquecido do tempo, gozava da companhia de um livro e um bom vinho tinto português. O silêncio daquele ambiente somente era interrompido, pelo som das folhas passadas de quando em quando pelos meus dedos úmidos e tingidos.

A noite chegou cobrindo meu corpo com seu manto negro. Minha alma, acanhada, não queria ser refletida pelos aços polidos das peças expostas - fechei meus olhos para sentir-me verdadeiro. Tentei, mas não consegui escrever uma linha sequer - nada de poema, crônica e conto. Minhas mãos estavam mudas. Meus olhos não alcançavam além da vidraça da porta-corrida.  Restavam-me então o livro e o vinho.

Tudo estava calmo demais.  A monotonia surgida obrigou-me a querer barulho. O silêncio estava insuportavelmente irritante. Espalhei por toda casa, blues, jazz e outros sons que pudessem expulsar o medo invadido, que pudesse transformar o cinza em cores vivas.

Quando garoto eu cantava para espantar o medo. Ouvir a minha voz era escape pra disfarçar o meu coração acelerado e aflito.  Ainda canto, e cantarei sempre – mesmo que em silêncio – para disfarçar os terrores ainda existentes.

Voltei pra casa com a música de despedida nos meus ouvidos. Sabia que aprontaria assim que eu me afastasse de seu cenário inventado. Dito e certo.  Caminhou pelo lado obscuro do pântano tramado.  Gargalhei ao ouvir a música fúnebre que tocou por alguns dias em sua cabeça de anuro. Gargalhei por não ter sido agarrado por suas ventosas e cantei em sua homenagem um partido-alto – ela mereceu o samba rasgado.

Quando Björk invadiu minha sala, sorri um sorriso largo. Eu gosto de sua voz e o que canta. A música Moom me fez sair pra varanda à procura da lua. Não a encontrei, mas sabia que estava lá, envergonhada, escondida atrás das nuvens densas e escuras.

Gosto de ficar olhando a lua. Às vezes me pego parado, no meio do caminho, olhando pra ela como se nunca a tivesse visto. Talvez eu fique parado olhando pra ela quando a encontrar pela primeira vez. Talvez ela seja a minha lua, além de ser a minha flor.

Um dia desses uma amiga me perguntou se ainda tenho a lua pra admirar de minha cama. Claro que sim! Exclamei pra ela. Tenho a lua nos quatro cantos de minha casa. Tenho sim.

BjörK já não estava mais em minha sala. Outra cantora já ocupava o seu lugar. Mas a lua não saía de minha cabeça. Voltei à varanda a sua procura, mas ela continuava a esconder-se de mim. Promessas não cumpridas – algumas são assim: taciturnas, quase tristes.

A lua é o ponto que uni nossos pensamentos noturnos. Sim, a lua é o ponto de união entre nós dois; sim, a lua é testemunha de nossas vontades, é cúmplice de nossos anseios. Lua amiga que nos guia em vontades e caricias.

Minhas mãos continuavam mudas e cegas. Não sabia como jogar pra tela do computador os sentimentos represados daquela noite  - Eu estava travado, totalmente inibido. Estava como a lua: coberto, pela metade, por um manto cinza.

Mas de repente lembrei-me de um presente que ganhara há poucos dias – eu ganhara de um fotógrafo e poeta que lera um de meus textos, e num gesto único, complementou o seu comentário presenteando-me com uma de suas fotografias: uma lua majestosamente cheia. Abri a pasta e lá estava a lua de Tossan. Uma lua cheia, uma lua grávida de amor.

Olhei além da vidraça e percebi que estava começando a chover. O céu chorava suavemente molhando o outro lado da vida. Eu estava protegido das lágrimas celestes; eu estava protegido pela cortina molhada que descia do céu; eu estava abrigado pelo silêncio invasor.

Gosto dessas madrugadas molhadas que me obrigam a pensar.

Hoje, a lua não quis ficar comigo e minhas mãos se negaram a teclar qualquer coisa.

Hoje, eu me inventei em lembranças, músicas e vinho.

Hoje, eu queria tê-la, com ou sem a lua, como testemunha.

Hoje, eu queria tocar a sua pele com meus lábios apaixonados.

Gosto desses momentos não premeditados em que meu coração aflora este amor guardado.

A noite está indo embora como chegara – nua de estrelas. Mas deixou a certeza que a senhora prateada é minha amiga.

 Hoje o céu tentou escondê-la. Mas não adiantou. Recorri a minha gaveta e a resgatei através da fotografia presenteada pelo amigo Tossan.

Agora é sabido: Tenho-a no céu; tenho-a aqui na fotografia de Tossan.

Agora é sabido: Tenho você em meu coração.


Paulo Francisco

A visita

E esta chuva que não passa! Quem não já usou esta frase, pelo menos uma vez na vida.

Quando criança a primeira chuva do ano era sagrada – todos no quintal pulando de alegria – dizia minha mãe que dava sorte. Quando a chuva demorava a chegar, eu ficava olhando pro céu procurando uma nuvenzinha de esperança.

Brincar nas poças, fazer guerra de quem molha mais o outro – tudo vira brincadeira, quando se é criança.

Quando via que estava chovendo granizo, corria para o meu filho e gritava: ¨ Olha João,que lindo!¨ 

Tornava-me mais criança que ele. Granizo tem forma de infância; granizo é a prova que podia, também, chover canivetes. Você duvida? Eu não duvidava – acreditava. Acreditava que naquele momento de sol e chuva, uma viúva estava se casando. E como seria o casamento de viúva? me perguntava – ela usaria branco ou preto? Danava-me a rir.

Preto e branco. Até muito tempo a chuva para mim era branca. Mas, com o tempo, percebi que pra muitos a chuva era de cor escura, cinzenta, de cor preta. Mas não era aqui em nosso país - dizia para os amigos da escola – É lá ¨no¨ Estados Unidos, vocês nunca viram nos filmes que quando morre alguém por lá, logo chove?. E eles: ¨ehhhhhhh!¨

A chuva sempre foi mágica. Só consegui ver o filme que todos comentavam , quando criança, do ator dançando na chuva, depois de muito tempo. Fiquei na expectativa da chegada do ponto alto do filme - a dança. Confesso que fiquei frustrado e pensei: ¨ Poxa! É porque ainda não viram a gente aqui da rua dançando na chuva ¨

E esta chuva que não passa! Quem já não usou esta frase, pelo menos uma vez na vida. Eu mesmo, hoje, já a usei, impacientemente, umas três vezes. Já olhei para o relógio uma dezena de vezes; para o telefone umas tantas. É que hoje, já não danço; não faço barquinhos e sei que canivetes não caem do céu. É que hoje, sei que as viúvas não se casam – namoram e, que no final do arco íris não tem um pote de ouro. É porque hoje tenho pressa.

Mas como nem todo mundo se deixa contaminar, lá estava ela, ensopada, tocando a campainha.



Paulo Francisco


à moda antiga

Acordei com uma vontade enorme de escrever algo neste blog que fosse a cara dela, que a deixasse totalmente de pernas bambas, que fosse mais que uma crônica; fosse, então, uma carta de amor. Carta..., pois é, quando eu fiz um texto falando de cartas de amor um tempo atrás, recebi o comentário de uma senhorinha, de seus setenta anos, dizendo-me que o texto estava lindo, mas o escrever carta, estava em desuso, se tinha outros meios de comunicação mais rápidos. Ri, simplesmente ri. A metáfora era verdadeira.

Escrevia bilhetes amorosos antes mesmo de ser alfabetizado. Não aprendi a frase que dizia a vovó viu a uva, aprendi que ela É uma uva – não a vovó é claro. Eu escrevia cartas de amor. Eu ainda escrevo cartas de amor, mesmo que depois eu as guarde na gaveta.

Voltando ao assunto que me faz escrever esta crônica

Eu queria, verdadeiramente, dizer algo que a fizesse feliz ou que mostrasse todo o amor que tenho por ela. Mas como dizer-lhe coisas ao pé do ouvido com todo mundo lendo? Como acariciar seus cabelos com todo mundo vendo? Sou tímido e as minhas metáforas já estão batidas e repetitivas. Agora, eu fico aqui com mais de 180 palavras escritas e ainda não disse nada que a deixasse de pernas bambas, que sentisse vontade de sair de onde estivesse pra abraçar-me e me encher de beijinhos, mesmo que telepaticamente.

Acho que vou escrever uma canção de amor. Não, melhor não. Já sei! Um poema! Não, não seria uma coisa inédita e, ainda, corro o risco de ela achar que foi feito pra outra pessoa. Não vou me arriscar.

Acordei com essa vontade enorme de escrever pra ela e, agora, não consigo dizer tudo que sinto. Às vezes, eu sou assim: um tanto quanto atrapalhado, perco-me diante das palavras.

Acho que vou mudar o ritmo dessa prosa e dizer o seguinte: Acordei com uma vontade enorme de gritar o seu nome e dizer o que eu sinto por você para o mundo inteiro ouvir. Fica mais fácil de executar, não terei nenhuma crítica escrita, estarei sozinho com a natureza e continuaremos guardando segredo de nosso amor secreto.

Com licença, vou colocar o meu tênis e ir ao lugar mais alto desta cidade pra fazer a minha declaração de amor a ela. Só espero que a senhorinha não venha dizer-me que é bobagem tudo isto, porque  hoje se tem o celular. Aí eu morro, morro pelo o amor que ainda me faz ser romântico, morro ipsis-verbis. Ah, morro sim!.


Paulo Francisco

Outubro

Cadê o Paulo? Adorava ficar escondido e ouvindo as pessoas me procurando. Quase sempre estava em lugares impossíveis de me encontrarem. Por que as crianças gostam de se esconder? Lembrei desta passagem em minha vida, quando vi um menino tentando se esconder de sua mãe no supermercado. Ele não estava escondido, ele simplesmente a evitava, rindo do ar de desespero da pobre mulher. A cada virada de trezentos e sessenta graus sua, um risinho contido do moleque. Parei a certa distância e fiquei a observar a arte versus o desespero em plena multidão frenética e alheia ao fato.

A mulher começa, repetidamente, dizer baixinho o nome do arteiro: Filipe, Filipinho, Filipe, filipinho. O nome escoava entre carrinhos e cestos de compras. De quando em quando alguém parava com a mão no ar, antes ou depois de pegar um produto e ficava olhando pra aquela mulher que não parava de dizer o nome do menino e ao mesmo tempo andava sem direção. Resolvi acompanhá-la imitando o menino.

O garoto era travesso. Ele sabia que aquele desespero podia chegar a histeria e chegou. Além de gritar o nome do capetinha, ela perguntava por ele para os alienados compradores de supérfluos, mas não obtinha nenhuma resposta.

Depois de algumas confusões, o arteiro chega com um pacote de biscoito na mão e com cara de choro dizendo: Por que você me abandonou? A mulher olha pro dissimulado e o abraça apertado dizendo: perdão meu filho! Mamãe está aqui.

No começo achei a cena hilária, mas no final ela se tornou assustadora.

Até hoje me escondo. Mas não fico à espreita observando. Escondo-me de maneira clara. Retiro-me de cena sim, mas deixando recado. Não quero ninguém desesperado a minha procura. Às vezes me escondo em minha própria casa. É necessário um balanço de quando em quando.

Aprendi, a duras penas, que desaparecer é preciso, mas avisar é obrigação. Lá pelos meus dezenove anos, numa plena sexta-feira saí com uns amigos (a minha turma da escola não estava, eram amigos paralelos) e fomos cair numa festa num dos morros da cidade e por lá ficamos bebendo -namorando, namorando - bebendo, bebendo – dormindo - namorando, namorando e dormindo.

Perdemos a noção do tempo. Quando me vi estava diante de minha mãe no portão desesperada em plena tarde de domingo. Nunca mais me escondi; nunca mais deixei de avisar que estava bem.

Aquele moleque do supermercado tem certa inclinação para o desaparecimento temporário.

Então, antes de desaparecer, deixo o seguinte aviso:

Se perguntarem por mim, diga que só volto semana que vem. Que fui namorar a lua, contar estrelas e molhar os pés no mar. Se insistirem em saber o endereço, diga que basta olhar para cima que verão no céu mais duas estrelas. Mas se estiver de dia, corram para o mar, quem sabe terão a sorte de me ver mergulhar até os corais.

Gosto desta coisa do sem destino. Muitas vezes, não sei ao certo pra onde vou. Mudo de itinerário no meio do caminho. Viajo à mercê do vento.

Mas desta vez sei o caminho a seguir e o endereço onde vou cair. Não seguirei o amigo vento. Não usarei mapas. Não baterei na porta. Não serei visita. Não serei turista acidental. Cavalgarei em terras prometidas. Explorarei trilhas cobiçadas.

Vou ao encontro da lua; Pisarei em estrelas; transformarei o céu em mantô e, em penumbras adquiridas, sentirei o odor da primavera, beberei o néctar da flor. Sentirei a brisa lua; molharei meus pés em águas marinhas.

Sim, não estarei escondido. Estarei exposto.

A gosto.


Paulo Francisco

Por e pra ela

Por que você é assim? Depois de uma maratona de descidas e subidas à Bienal, fechei a minha sexta-feira com uma quantidade boa de livros comprados e um tempo record de engarrafamentos acumulados. Estava cansado, a semana foi prazerosa e estafante ao mesmo tempo. Saí de minha rotina – coisa que me dá prazer - mas estava muito cansado – coisa que me angustia. Cheguei à minha cidade com lua e estrelas, e não fui direto pra casa – coisa que deveria ter feito – mas acompanhei Lúcia até o mercado, ela fora comprar cervejas. Disse-me ela, que estava com vontade de ficar em casa de pernas pro ar – coisa de que eu duvidava -. Ela tem dois filhos pequenos. Compramos o seu líquido sagrado e nos despedimos. Ela foi para um lado e eu para o outro. Resolvi, então, parar no João (meu botequim preferido). chegando, encontrei o Valmir e o Wanderlei numa prosa animada. Cumprimentei-os, sentei numa mesinha perto da porta, pedi uma cerveja e senti um prazer enorme de missão cumprida: Os meninos se comportaram como gente grande. Brincaram sadiamente – coisa que na minha época de moleque não acontecia - éramos levados demais para fazermos uma viagem tranquila – zoávamos com todos e com tudo.

Mostrei o que comprara naquele dia para o Wanderlei e discutimos alguns autores.

O bar estava vazio, somente a gente. Percebo o João e o Valmir parados nos olhando... ouvindo.

De repente o Valmir me sai com a seguinte frase: ¨ Paulo, por que você é assim?¨ Cai na gargalhada. Valmir é um farmacêutico dos bons. Minhas conversas sérias com ele rendem aprendizados na área de bioquímica que não tive na faculdade. Antes de ir ao médico converso sempre com ele e o camarada nunca errou um diagnóstico. Mas ele não é das letras, não lê, não gosta e, possivelmente, só lê livros técnicos e certamente no jornal, a página dos esportes. Fazer o quê? Nada.

João, velhinho esperto, carrega consigo a malandragem dos tempos áureos e a aspereza dos tempos duros. Mas é um coroa que gosta de música e consegue lê as entrelinhas de uma letra de música, mesmo tendo pouco estudo.

Já o Wanderlei, é um camarada que passou várias vezes para as faculdades públicas e não cursou nenhuma. Motivo: medo de sair e enfrentar o desconhecido. Ele é daqueles que a cada ano tenta quebrar algo que o prende ao chão. Tem medo de voar.

Talvez, eu seja o estranho no ninho daquele lugar.

Mesmo sendo um local de total descontração, temos um dia para transformá-lo praticamente em nosso – a segunda sem-lei quando pode sair uma bacalhoada, um pato ao tucupi, por exemplo. Neste dia, discutimos sempre assuntos sérios, ou simplesmente nos tornamos pessoas alienadas e bebemos e gargalhamos sem o menor constrangimento.

Pois bem, saí daquela sexta-feira com a frase do Valmir em minha cabeça: Por que você é assim? Sei que ele sempre a usa, quando não consegue se vê na pele do outro.

Por que me lembrei deste dia justamente agora, algumas semanas depois? Simples, ontem ela bateu com o telefone em minha cara por duas vezes. Estava irritada comigo, estava irritada com o meu comportamento, estava irritada com o mundo.

Não sei o que acontece comigo. Há momentos que eu deveria ficar com a boca fechada; deveria ficar somente ouvindo e de quando em quando sair com um ¨hum - hum¨ou ¨Ok¨. Mas não! cismo em abrir a boca pra contradizer. Sei que vai dar problema, mas não tomo jeito, vou e digo o que penso. Pronto, cara amarrada, silêncios eternos, telefone batido na cara, ou um tempo enorme pra me explicar, esclarecer o que eu disse.

Mas como o Valmir mesmo perguntou: Paulo, por que você é assim? Respondo: Não sei.

Gosto dela. Pra ela, sei pedir perdão, mesmo não sendo eu o culpado.

Gosto dela. Pra ela, sei refazer um sorriso, mesmo triste.

Gosto dela. Pra ela, sei onde está o tesouro, mesmo não tendo o mapa.

Gosto dela. Pra ela, sei ser paciente, mesmo não tendo paz

Gosto dela. Pra ela, sei ter certeza, mesmo na mais clara incerteza.

Gosto dela. Pra ela, sei me fazer silêncio, mesmo com o coração gritando.

Gosto dela. Pra ela, sei dizer com o olhar, mesmo não querendo dizer.

Gosto dela. E isto me basta.



Paulo Francisco

Perfume de flor

O vento trouxe um cheiro novo. A porta da sacada estava aberta e o seu quarto foi invadido por um delicado aroma. Era uma mistura de vários cheiros - alguns reconhecíveis, outros não. Ora pétalas de rosas, ora uma fraca alfazema. Jasmim? Lavanda? Almíscar ou Patchouli? - Ele começou a se perguntar, intrigado com tanto cheiro de felicidade.

Junto com os cheiros adocicados, vieram as lembranças. Imagens de uma época quando a fragrância entranhava em sua pele

Adorava ser lambuzado pelas peles macias e aromáticas daquelas com quem jurava amor. A lembrança do cheiro feminino em sua mente era mais forte que as suas próprias imagens.

Maníaco!? Quem poderia dizer? Ele não guardava fotografias, ou nenhum tipo de souvenir de seus antigos amores. Ele preferia ficar com a lembrança do cheiro de cada uma delas. Fotografia envelhece, souvenires se perdem, mas o cheiro, guardado em frascos memoriais, não se perderia nunca.

O quarto cada vez mais invadido pelo frescor dos aromas do passado. E ele, cada vez mais rejuvenescido.

Um nome, uma flor. Uma flor, um cheiro.

E quando seu jardim já estava completo por flores e anjos; por deusas e aromas, ele agradeceu a Deus com um silencioso sorriso pálido e dormiu.

Foi coberto por cravos brancos e amarelos



Paulo Francisco


- Bota outra!!!!!

Começo do fim. Sempre acreditei na possibilidade de um novo amanhecer. Nunca durmi achando que lá fora está negro. Pra mim estaria sempre azul. Mesmo com minhas manias exageradas em alguns aspectos, sempre dormia pensando que teria bons ventos e dia claro ao amanhecer. Acordava e a primeira coisa que olhava era pro céu. Verificava sempre se o céu estrelado de ontem correspondia a certeza do prenuncio de um dia bom do hoje. Era batata, dia bom. Tomava o meu café rapidinho. Trocava de roupa e pegava os meus apetrechos: linha enrolada numa lata de leite em pó e duas pipas por garantia. Esquecia-me da vida olhando pro alto. Ficava ali horas com a pipa no ar. Comunicávamo-nos através de fios e imagens.

Guerreávamos através de linha, bambu e seda. O importante era eliminar o outro, pegar o seu espaço, tornarmo-nos donos do pedaço. Ou você elimina o outro e deixa seguir perdida no ar, onde sempre terá um observador à espreita que fará de tudo para conquistá-la, ou você vence e traz pra si a sua presa totalmente dominada – neste caso, você é obrigado a deixar o espaço para admirar o seu troféu e uma outra ocupará o vazio.

Pipa voada é de qualquer um. Ganha quem é mais rápido nas pernas e braços. Mas nem toda pipa voada chega ao chão. Algumas ficam a vagar por aí, umas ficam presas em galhos altos, fios e telhados alheios, outras passam de mão em mão.

Dificilmente saía de casa desprevenido. Muito raramente carregava somente minha lata de linha, tinha sempre comigo, pelo menos, uma pipa confeccionada por mim. Não gostava de nada pronto, fascinava-me fazê-las – tinha tempo pra perder. Construir uma pipa é imaginar seu tamanho, suas cores e suas possibilidades. Pipa pronta, geralmente tem defeito, foi passada por outras mãos em sua construção – tem vícios e sempre é uma surpresa. Bom pra quem só quer se divertir sem maiores objetivos – não se importa em perdê-la.

Uma no ar e outra no chão. Estratégia de não ficar com a mão abanando. Se a minha saísse voando por aí, aparecia com outra no ar rapidinho, para que ninguém pegasse o meu espaço – não chorava pelo leite derramado, a que voou estava livre pra fazer o que quiser: cair onde quiser, ficar presa em algum galho de árvore ou vagando em outros céus.

O bom daquilo tudo era a surpresa de cada dia. Nunca sabíamos como seria o nosso céu. No final da tarde, poderíamos estar com uma coleção de pipas ou somente com a que levantamos voo no começo do dia ou simplesmente com a lata de linha na mão. Qualquer uma destas opções fazia parte do jogo.

Mas o fim era sempre o começo de um novo dia. O importante era não perder a esperança de um próximo dia bom, porque sempre terão pipas no céu.

Então eu dizia que a temporada de pipas no céu era sempre o começo do fim, por isso nunca deixei de sorrir.



Paulo Francisco

Por causa da flor

¨Passando pelo blog da Lis,encontrei isso:

"O híbisco ou graxa de estudante é a flor de minha infância... só mais tarde, bem mais tarde, descobri que era uma flor hermafrodita e foi com ela que aprendi a descobrir os órgãos das flores¨

Quando abri o meu blog, encontrei este recado de Rosane Marega. Foi um comentário que deixei no blog da Lis. Tinha uma citação e a fotografia de um hibisco.

Realmente, o hibisco é a flor de minha infância. Lembro-me que andava, ainda segurando a barra da saia de minha mãe e admirando as cercas-vivas de hibisco, que enfeitavam toda a rua.

Disputava com as abelhas e formigas sua seiva.

Toda vez que vejo uma dessas cercas remeto-me para uma idade de inocência – mesmo sendo uma peste, segundo os adultos daquele tempo.

Ficamos encantados quando dissecamos o hibisco e descobrimos seus órgãos reprodutores. O professor aproveitou par explicar sua estratégia de polinização – Foi o máximo! Aprendemos a identificar outras flores, uma que achei interessante foi a flor da aboboreira – tem a flor macho e a flor fêmea.

O homem aceita com tanta naturalidade o fato de uma planta ser hermafrodita, de ter os dois sexos e, no entanto, fica de pé atrás com um homem ou uma mulher ser gay ou bissexual. Será que isto acontece porque os professores na hora de ensinar os órgãos reprodutores das flores ficam somente no vegetal e não transportam o conhecimento para um campo mais amplo? O mundo não seria bem melhor se tivéssemos aprendido, de maneira clara, sobre a sexualidade humana, quando ainda não temos tanto preconceito? Criança aceita e entende melhor. Por certo teríamos menos homofóbicos neste mundo. Menos intolerância. Acredito.

OK!! Confesso quando vejo duas gatas se beijando fico triste por causa da estatística daquele exato momento: ¨menos duas!¨ penso como macho e não como homem. Mas nunca com raiva (seria ridículo!).
E ultimamente, tenho visto muito tal cena. Aplaudo a coragem de serem livres e se beijarem em público, sem o menor constrangimento – coisa que há algum tempo seria abominável.

É Rosane Marega, o hibisco e uma flor hermafrodita, como várias outras e nós, humanos, infelizmente somos ignorantes em tantas coisas que naturalmente nos cercam. Não é ?


Paulo Francisco



Numeral

São oito horas. Ou são vinte horas? Acho que prefiro dizer que são oito horas da noite. Oito é o meu infinito em pé. Tenho que tomar um comprimido a cada oito horas. A maioria trabalha oito horas por dia. Muitos conseguem dormir oito horas de puro sonho - que inveja!.

Os namorados se encontram às oito. O jantar começa às oito. Muitos vão dormir às oito horas. Outros acordam às oito da manhã.

Eu tenho oito dias para preparar um relatório, mas só o preparo faltando oito minutos para entregá-lo. O meu filho nasceu no mês oito. Uma das minhas irmãs nasceu no mês oito, a Claudia, minha amiga também. No mês oito não tem feriado no calendário – um horror!.

Tudo isto escrito por causa da lua que, de certa maneira, me lembrou as suas oito fases, quando a olhei no céu.

A lua tem essa magia de delirarmos por ela ou através dela.

Quando vejo a lua, olho, automaticamente, para todo o céu, admirando, também, as estrelas. E neste olhar ampliado, tento desenhar formas inéditas, ligando as estrelas - mas sempre usando oito pontos.

E oito pontas tem a minha estrela preferida.

Paulo Francisco

Em Garde

Xeque-mate! Não jogo xadrez. Nunca me interessei por esse jogo. Talvez por não gostar de matemática e ser um péssimo estrategista. Mesmo não gostando do tabuleiro, sempre gostei da frase xeque-mate. A frase me chega como uma vitória classuda e para quem a ouve uma decepcionante derrota. É um jogo de cavalheiros e estrategicamente solitário.

Já a palavra touché é fulminante, acaba com o oponente com um golpe certeiro. O touché não tem o mesmo sentido que o xeque-mate. Ele elimina o adversário na sua inabilidade. É uma batalha individual na qual você não pode deixar ser tocado em suas áreas vitais. Caso contrário, será vencido. Sou distraído demais pra este jogo.

Já recebi muitos xeques-mates e muitos touchés por aí.

Quantas vezes a minha estratégia em chegar ao campo do meu oponente foi por água abaixo por um simples equivoco; por uma simples colocação errada de uma frase. Não adianta tentar voltar atrás. Já foi lançada e, o meu contrário, já a agarrou e, sem piedade vai me dizer: ¨Xeque-mate!¨ Quando isto acontece é como ficar sem roupa em plena missa de domingo – não tem desculpas. Perdi. Fui menos inteligente – dureza em aceitar.

Numa batalha vale tudo? Não sei. Mas numa esgrima vale a elegância de cada movimento e você deverá tocar o outro na sua vulnerabilidade. O touché imobiliza o rival sem a possibilidade de um contra-ataque. Touchè! Você acaba de ser tocado. Não tem jeito, ser atingido em áreas vitais impossibilita a reabilitação.

Não me conformei e desafiei para um duelo e não demorei muito pra ser atingido no coração. Não adianta, não sou bom em confronto. Distraio-me com facilidade. Sou um sonhador nato. As minhas guerras e batalhas não têm armas e nem invasão.


Paulo Francisco

Muito mais que romântico

Ela era tudo que eu tinha. Eu não entendia os meus sentimentos. Afinal, eu era tão menino ainda. Eu não consegui entender o porquê do tamanho daquele desespero. Afinal, era tudo tão proibido. E tinha em mim, um medo tão latente e verdadeiro de perdê-la antes de tê-la, que me fazia sofrer e ao mesmo tempo sonhar.

Ela era a senhora de meu bosque encantado; a feiticeira bonita que mudava, num zás, o meu corpo infanto-juvenil, num corpo de um homem aflito e impulsivo.

Aprendi desde muito cedo a velar e a segredar o proibido.

Ela era tudo que eu tinha – dor sem fim. Eu sabia que meus braços jamais a alcançariam de outra forma senão em abraços ternos. Minhas mãos jamais a pegariam senão em caricias secretas.

Contentei-me, por muito tempo, a existência de sua nudez vertiginosa em gozos roubados em tardes escondidas. Mas, um dia a gente cresce; um dia se descobre que nada é impossível quando há amor, quando há alma atrás da carne.

Ela era de uma forma ou de outra, o inalcançável, mesmo estando inteira em minhas mãos.

Meu primeiro amor, minha primeira dor. Meu primeiro pecado, minha primeira vertigem.

Até então, eu não sabia que a alma doía.

Hoje teclo neste computador a dor da alma. Minha alma dói, ela dói por não ser inexistente; ela dói por estar pálida; ela dói por não ser volátil; ela dói por estar compacta.

Minha alma dói, simplesmente dói.

Escrevo o que vem de mim, e o que vem não é o pensamento de ontem, não é o que virá de uma certeza medíocre, de uma rotina imposta, de um amanhã sabido. Teclo o que tenho hoje, teclo neste imediato confuso; teclo neste instante em que vivo; teclo neste agora registrado pelo barulho do dia, anunciando que em pouco tempo o sol irá embora.

Ela ficou triste com a minha partida repentina.

Minha respiração está fraca, muito fraca - é necessária que ela esteja assim – fraca, quase ínfima - para que o ar engolido pelo meu corpo não apague as marcas entranhadas em minha mucosa rubra e brilhosa.

Eu não quero isso nem aquilo. Quero muito mais ou tudo isto.

Cuidadosamente, eu a seduzi e me tornei seu pecado original. Foi belo, foi eterno, foi celestial. Todos os medos e todas as transgressões no olho de um furacão emocional.

Respiro lento, cuidadosamente lento, pra não desmanchar as cicatrizes pálidas que se encontram, em alto-relevo, na minha derme exposta.

Ainda tenho, em minha carne pálida, cortes abertos, feridas mortas, marcas de minha sobrevivência, sangue em efervescência. Eu tenho em minha carne registros de minha existência, tatuados em nomes invisíveis.

Nesta máquina gelada, transfiro o que há em meu peito, que por hora, encontra-se quente, em borbulhas de interrogações doidas. Ah! quem dera eu pudesse apagá-las!  Mas se apagadas, desintegro-me também. Sou a minha própria marca. Sou refém de mim mesmo.

Sim, você pode até achar que tudo isto é um lamento. E é. Sou construído de camadas, mas não sou casca; sou preenchido por fluidos – líquidos que transbordam sentimentos reversos.

Se eu tenho ódio? Sim. Se eu tenho amor dentro de mim? Claro que tenho! Tenho ódio e  amor  em convivência aflitiva e deles tento sobreviver neste exato instante. Turbulência caótica em desejar e amar; em querer e poder.

Sou gente e meu sangue é escuro e denso. Sou humano. Sou Homo sapiens de sapiência em construção.

Não me condene antes de saber de mim, se sou ou não o carrasco de seu viver. Não me aponte antes  de descobrir se a imagem vista é o seu real obscurecer.

Lá fora, chove neste final de tarde, água imprópria que cai em minha porta, impedindo-me de ver o cair do sol. Quero sair daqui e ao mesmo tempo, quero ficar. Quero terminar o que escrevo e ao mesmo tempo, tenho medo de que o texto chegue ao fim. Dicotomia vivida, encruzilhada perdida.

Escrevo palavras soltas, frases que não se encaixam, escrevo o que está dentro e fora de meus olhos.

Olho para as minhas mãos e percebo um leve tremor. Talvez seja o temor da dor, da insistência em querer ficar por aqui. Sinto dor.

Estou vivo. E é neste viver insólito que a minha alma dói. Dói neste exato instante de lucidez. Dores finitas que chegam, em fisgadas finas e quentes, à minha carne já enfraquecida.

Sou o homem são que ao ver o mundo, silencia-se para esquecê-lo.

Viajo em trilhas perigosas onde garras afiadas se armam para um futuro ataque.  Eu voo e escapo dos dardos envenenados deste mundo tramado.

Tu não me sabes, mas eu te sei.

Escorrego pelos fios da teia da aranha. Deslizo-me no ácido viscoso da mosca. Agarro-me no aguilhão do escorpião, adormeço no ninho da Naja.

Guardo na memória desta máquina fria o que transborda pelos meus poros: calor, dor, amor e paixão. Paixão pela vida; amor pelo próximo, mesmo a grandes distâncias.

Teclo em fúria produzida pelo descaso humano. Desnudo-me de mim. Torno-me o sereno que molha as calçadas por onde o vagabundo passou.

Em minhas mãos, desenho o punhal que cortará o cordão que liga as dimensões inequívocas entre nós.  E, aí, duas pontas surgirão e flutuarão no vácuo de nossa existência; dois cordões crescerão e se tornarão cabos de aço que sustentarão os vagões de nossas vidas. Eles se interligarão em outras dimensões: a dimensão da razão e a dimensão da emoção. Seremos um todo e como tal frutificaremos o nosso pomar.

Ela é tudo que eu tenho.  Teclo o meu imediato, o meu pensar e o meu pesar. Teclo e registro o óbvio: se não o faço, não vivo.

Ela é tudo que eu tenho – a esperança é tudo que eu tenho. Afinal, sou adulto e sei que com ela tudo é possível.


Paulo Francisco

¨Se você fosse minha namorada¨

Quando adolescente, ouvia uma determinada música e de imediato me lembrava da namoradinha do momento ou do passado. Acho que os jovens de agora não curtem este negócio de oferecer música para o seu amor.

Na minha juventude, respirávamos música.  Então, nada demais a música fazer parte de uma relação. Será que hoje os jovens respiram música? Acho que não tanto quanto antes.


Dançávamos juntinhos. A cabeça  em rodopios que entorpeciam, enquanto os corpos se aqueciam em lentos movimentos.

A luz negra, camuflando os sedentos pensamentos bons, fazia parte dos bailes de final de semana. Era assim que dançávamos. Hoje já não danço.


Mas permaneço a entorpecer-me e aquecer o meu corpo, ouvindo melodias em baixos decibéis à meia luz do abajur de meu quarto, ou não.


Dancemos em acordes invisíveis. Ouçamos corais de querubins! Mas se você fosse minha namorada, certamente, eu dançaria; dançaríamos nestas noites insones de madrugadas silenciosas, quando a música que nos embala é o desejo telepático. 


Ah, Se você fosse minha namorada!  Ouviríamos orquestras de cordas e sopros. E eu que não sou cantor, arriscaria em seu ouvido uma canção. Uma canção de amor.

Paulo Francisco

¨Eu sei que eu tenho um jeito...¨

Quero muito mais. Às vezes me torno exagerado. Gosto do excesso. Se não pode ser por inteiro, então não me serve. O que adianta um pedaço de pudim se estou de olho na travessa inteira? Uma taça de vinho é o começo pra chegar ao fundo da garrafa. Nem meia noite, nem meio dia. Quero o sol e a lua e, depois, a prorrogação. E no final quero empate. Pra mais tarde ter a decisão por pênalti. Chute a chute; gol a gol.

Tensão e felicidade.

Vivo a partir do exagero, do surreal. E daí? Sou espalhafatoso, mas a timidez me convida para uma dança no salão vermelho. Sou chorão, mas a alegria me convida a gargalhar.

Isto! Sou o que não veem. O retrato três por quatro é figurativo. Mas o borrão ao lado não.

Mas quem realmente está exposto por completo? O cara de batina? A farda de maior patente? O jeito pudico da moça? A boca vermelha da puta? A velha senhora com a sua sombrinha?

Este meu jeito exagerado de ser, confundido como dramático é, e sempre será, a minha marca. Marca de nascença, tão verdadeira como o sinal nas costas dela.

Não me contento em somente olhar, tenho que cheirar. Sou táctil, minhas mãos tem que escorrer entre suas pétalas. Só me conformo e me conforto quando percebo sua suavidade e seu aroma.

Exagero? Pode ser! Mas é assim que sou. Fui criado com duas sessões de cinema - numa Greta Garbo e na outra Marlene Dietrich.

Dramático? Quem sabe! Ouvia novelas no rádio.

Romântico? Sim! Escrevia carta de amor sem o menor pudor.

Eu sou assim:

Gosto de beijos demorados e apertados. – é assim que sei amar.


Paulo Francisco

Clic

Como se faz para uma pessoa desaparecer? Contrata um mágico ou um pistoleiro?

Já vi acontecer das duas formas. Confesso que nunca entendi nenhuma delas.

A mágica faz desaparecer, mas o retorno do desaparecido sem nenhum arranhão e sorrindo é fato.

O mágico é fascinante, ele passa certo mistério, certo medo, deixa-nos de olhos fixos em sua tarefa – é um desafio tentar descobrir como ele faz. Mistério!

Mas mágico que é mágico não deixa rastro.

O que faz uma pessoa mandar eliminar de vez outra pessoa? Nunca entendi bem. Foge-me à compreensão. Não sou nenhum santo, confesso, às vezes, sinto tanta raiva do outro, mas desejar sua morte está longe de mim, quanto mais mandar eliminar. Até porque a raiva passa.

Eu não consigo entender o prazer que uma pessoa tem em tentar eliminar a harmonia do outro. Acredito que pessoas assim não sabem o que é o amor. Não amaram e nunca foram amadas. Uma pena – amar é a coisa melhor do mundo.

Qual o benefício em desarmonizar? Será que existe algum beneficio? Prazer pessoal? Que prazer é este?
Por outro lado, também, não consigo entender uma pessoa que se deixa, tão facilmente se desarmonizar. Depois de uma certa idade, quando passamos por tantas coisa, temos mais que transcender e não acumular. 

Como se faz uma pessoa desaparecer?

Aqui, basta um clic...


Paulo Francisco

Transgressão

Mesmo sabendo que contar estrelas eu poderia ficar com os dedos cheios de verrugas, não resistia e contava-as até o meu infinito.

Sempre fui assim, adorava transgredir. E transgredindo descobri que os adultos adoravam mentir para nós – as crianças. E, como toda criança, eu adorava imitá-los. Então, mentia desavergonhadamente. Eu era um inventor, contava as mais absurdas histórias e acreditava nelas.

Não sei se mudei tanto assim, acho que estou mais mentiroso que nunca e mais contador de estrelas que antes. Hoje não só conto, crio minhas próprias estrelas. Faço delas meu céu.

Neste exato momento, mais uma constelação surge em meu mundo celeste, Ela surge com um formato singular; tem rosto redondo, cabelos ondulados e medianos, carrega em seu ombro não um vaso, e sim um cesto de rosas, rosas vermelhas; a minha mais nova constelação está envolta por um coração, seu sorriso é a mistura do sorriso do gato de Alice com o sorriso de Monalisa de Leonardo da Vinci, depende de qual hemisfério você a observa.

Neste exato momento invento, crio uma história – só me resta encontrar a protagonista que se encaixe nela.
Quem se habilita?


Paulo Francisco



Vida selvagem

O inseto verde entrou como um raio atraído pela luz daquele ambiente – era uma esperança. Com suas asas em forma de folha, ele permaneceu estático, contrário a sua natureza, ficou em evidência na parede de cor pêssego.

O que ele faria ali, num ambiente tão diferente do seu? Não seria um suicídio se expor?

Aquele pequeno ser foi atraído pela luz artificial. Não conseguiu diferenciar a luz do dia e, no desespero da noite sem lua, voou para o primeiro clarão que viu.

Ainda é noite e há perigo lá fora.

O inseto permaneceu inutilmente em sua posição de camuflagem – estático como uma folha – naquela amplidão cor de pêssego.

Confiante, resolveu investigar aquele lugar tão novo e acolhedor. Não voou, andou. Caminhou pela superfície frisada, mexia com as suas pernas dianteiras, como estivesse se limpando.

Seu canto agudo anunciava sua felicidade em poder estar fora de perigo.

A alegre cantante passou a voar de uma parede a outra. Seu canto era claro e forte. Sua confiança era absoluta.

E num destes vôos dançantes de felicidade, a surpresa: ZAPT! A esperança foi morta por um calado réptil que a observava atentamente.

Foi engolida por uma lagartixa.


Paulo Francisco

Outro céu

Não estamos no mesmo céu. Não sei até quando o meu céu permanecerá neste azul. Talvez eu queira transformá-lo em outra cor. Quando adulto, passei um bom tempo de minha vida sem olhar para o alto. Não tinha perspectiva de mudança do tempo. Estava tudo sempre muito cinza, carregado de demência.


Às vezes, passamos uma boa parte de nossas vidas presos ao chão e, é necessário um furacão para nos tirar de tamanha adesão.

Já estava achando que a aderência existente na sola de meus pés era do tipo não sai mais. Mas que bom que era de má qualidade e pude descolar-me deste piso frio com sopros alísios, sem muito esforço. Então, pude viajar em ventos fortes. Já permaneci em calmaria; já suportei o controvento em minha cara. E nestes ventos variados conheci alguns céus.

Quando em cárcere, o céu não passa de uma pequena tela em movimento – nos deixam estáticos. Quando livre-cigano, ele é multicolorido, tem ritmo, tem dança – faz-nos viajar em outros ares. Sou, neste momento, um caçador de ventos. Guardo-os em lembranças.

Com o vento viajei por aí, sem destino, rindo, apaixonando-me por pessoas e coisas. Hoje estou menos à deriva, mas não estou fixo. Posso ir em busca de outros céus; de outros mares; de outras montanhas. Deram-me asas.

Não estamos no mesmo céu. Minhas nuvens estão sempre por aqui, em véus, posso pegá-las com as mãos. Brinco de faz-de-conta neste meu mundo particular. Posso transformá-lo num azul mais anil, acinzento quando preciso, faço chover, desenho um sol, ele pode ficar denso ou posso deixá-lo mais transparente, salpicados com pequenas nuvens de algodão.

Não, definitivamente o meu céu não é igual ao seu. Este seu céu é único, verdadeiro.Tem ritmo de tango. É faceiro. É Buenos Aires. É desejo. É vontade.

Este teu céu em ouro, cega-me, de tanto olhá-lo.

Definitivamente, Paula Barros, este teu céu é melhor que o meu.

Céu

Disseram-me que adoro o céu e que haja infinito azul para minha inspiração. Sim, eu gosto do céu e o azul me traz paz. Mas o meu céu é de várias cores. Às vezes ele se encontra clarinho, tão clarinho e reluzente, que doem os olhos e a alma daquele que fica, por muito tempo, tentando decifrá-lo.

Os meus céus são vários. Em minha infância ele era mais distante, as pipas coloridas sumiam numa imensidão azul. Os pássaros, sempre em bando, fugiam em franco desespero, em cantos anunciados em tempestades, e o que estava a brilhar se apagava.

No meu céu de todas as cores, tem querubins e serafins, instrumentistas cantantes, moleques arteiros e arpistas.

Os amarelados anunciam a chegada do sol, traz consigo o calor que agasalha.

Os avermelhados se despedem como cavalheiros, permitindo que a dama lua ocupe seu lugar no espaço.

Os magentas são os mais felizes – é mistura de dois céus – reluz o que mais importa – o amor em plena ebulição.

É..., o meu céu traveste-se de cores. Cores absolutas. Ele é generoso, abriga a lua, o sol, as estrelas e as musas de minhas poesias; permite, também, que outros evidenciem suas cores.

O meu céu é mágico, transforma o nada em imagens aneladas, permite amores ansiados.

O meu céu também fica zangado, e se revela chumbado. Mas quando tranquilo o azul outonal aparece e transmite esperança. Quando assustado, coitado, esconde-se no pretume de uma coberta.

Quando ele está anilado, bordado por estrelas felizes, acredita-se que está sonhando com um amor distante.

Mas hoje, exatamente hoje, ele se prateia e chora chuva.



Paulo Francisco

Arrumação

As minhas gavetas continuam desarrumadas. No desespero da dor - à procura de meu antiácido - percebo que as minhas gavetas nunca ficam arrumadas. Definitivamente não sou metódico, vivo e sobrevivo no caos.
Não sei se conseguiria ter uma vida certinha, com café da manhã em mesas arrumadas com jarros de flores e jantares na hora certa e música ambiente ao fundo.
Não tenho hora pra quase nada. Sou totalmente desorganizado e confuso.
Então, olhando para a bagunça existente, decido, num rompante, arrumar as gavetas - quem sabe esta dor danada, em meu estômago, não passe depois de uma faxina completa nestas gavetas abarrotadas de passado?

[Decisão em ebulição]

Faço isto. Começo pelas gavetas de baixo, lá estão as mais pesadas lembranças. Retiro peça por peça. Analiso cada uma delas. Não entendo como pude guardar tanta coisa inútil.
Num saco plástico preto começo, num ritual fúnebre, a depositar as peças obsoletas: um estilingue, algumas bolas de gudes, um boletim registrando a minha mediocridade intelectual, uma foto apagada em que tento descobrir o que havia e, depois de certo tempo, arrependo-me de tal esforço – era uma fotografia amarelada, apagada. Restaurá-la era perda de tempo, continuaria lá num passado distante.
Gaveta limpa. Sigo para a seguinte. São peças tão velhas e inúteis quanto à primeira. Sigo o mesmo ritual, e antes de terminá-la, preciso de outro saco. Nesta, sobrou tão pouco que resolvo guardá-las numa caixa de madeira. Esforço inútil de recordações pálidas e ressequidas.
Faço deste dia, o dia nacional de minha independência emocional, ou quase.
Sinto-me aliviado, mas não o suficiente para exterminar de vez a aguda e teimosa dor.
Enquanto as gavetas se tornam livres de um passado sombrio, meu corpo reclama de dores musculares – ele pesa, fica curvado, travado.
Chego à última, que na verdade é a primeira de cima para baixo. Olho para aquela confusão e não sei por onde começar. Tudo está tão recente. Como desfazer de algo, ainda, tão presente.

[Surge em mim um silêncio branco]

Fico indeciso, tinha resolvido limpar tudo, não deixar nada que possa aumentar ou manter esta dor desgraçada aqui dentro de mim.

[medo do vazio]

Mas como jogar fora momentos tão recentes? Como posso achar que esta dor pode ser provocada por causa desta gaveta bagunçada?. Não, não pode ser por aí.

[decisão em ebulição]

Não vou jogar nada fora. A dor que se dane.
Eu aguento!


Paulo Francisco

Desengano

É engano! Desligo o telefone e fico pensando na frase que dei para aquela voz feminina e macia.

E quantos enganos cometemos nesta vida de Deus. Não foi um engano ter dito pra ela que era engano? De não ter dito que eu não era o Pedro, mas que poderia ajudá-la mesmo assim?

Já me enganei tantas vezes, que perdi a conta.

Já desci no ponto errado e tive que andar duas quadras, simplesmente, por te me enganado.

Já mandei cartão de aniversário para a pessoa errada e tive que rezar um rosário para explicar o tremendo engano.

Já achei que tinha encontrado um amigo, e quando bato em suas costas, vejo que a cara não é a mesma.

Já dei meu telefone errado, por um algarismo trocado e, deixei de receber um sim, para um encontro

Já cheguei atrasado ao dentista vinte e quatro horas depois.

Já me enganei, achando que iria fazer sol e não levei comigo o guarda-chuva.

Foram tantos enganos: uma amizade errada, uma catarse desnecessária, uma porrada na mesa, um adeus precipitado...

[silêncio]

Era ela de novo, perguntando pelo Pedro.

Marcamos nos falar mais tarde, depois que ela disser pra ele que foi um engano.


Paulo Francisco

A chave segredo

Cadê a chave!? Todos os dias eu uso a mesma frase. Não aprendo. Eu nunca sei onde o meu molho de chaves está. Incrível como ele desaparece tão rápido.

Por causa desta falta de organização, deste meu lado bagunceiro e displicente, eu acabo ficando em apuros.

No trabalho quando chego com a cara de atleta que acabou de cruzar a linha de chegada, todos já sabem e dizem: – ¨Não encontrava a chave, por isso do atraso!¨

Coitados dos courrier, motoboy, carteiro e amigos. Atendo da sacada já gritando:

- Oi! tô descendo. (O cara acredita).

Dano a procurar a chave. Mentalmente, eu retorno ao meu portão na noite anterior e, tento fazer o caminho, passo a passo, pra vê onde eu deixei o bendito chaveiro. Nada. Volto pra sacada e digo:

- Peraí, to procurando a chave... um instante!. (E ele espera).

Volto de novo à sacada, angustiado e preocupado com o camarada a minha espera, grito:

- Aí, bacana, não tô encontrando a porra da chave, espera mais uns segundinhos que eu já vou descer.

Visto uma bermuda, porque, geralmente, quando toca a bendita campanhinha, eu estou na boa, tranquilão.

E quase sempre tenho que pegar a encomenda pelo muro ou, peço para o entregador deixar do lado de fora do portão. Assino a entrega e volto à procura da infeliz.

Subo, sempre, dizendo:

- Onde eu botei a bosta da chave!

Eu estou sempre procurando:

- Cadê a chave?

- Cadê o livro?

-Cadê a minha bolsa?

- Onde eu deixei aquele documento?

Agora, estou tentando policiar-me, assim que chego, tento deixá-la num lugar específico, mas é difícil, muito difícil, uma atitude metódica, pra quem sempre foi desorganizado.

Nesta tentativa de me livrar de alguns caos em minha vida, acabei encontrando outra chave. Uma chave pequena, que estava perdida há muito tempo, mas que abre um compartimento imenso.

Corri até uma das gavetas e peguei um cordão antigo e a prendi nele.

Agora ele anda sempre em meu pescoço e ela bem próximo do meu peito. Toda vez que alguém tenta trancar o meu coração, eu vou lá e abro de novo.



Paulo Francisco

A maçã

A menininha tirou do bolso de meu casaco o meu segredo: a maçã escondida.

Guardo comigo as lembranças de minha infância em papel de seda roxo: bruxas e fadas, maçãs e poções mágicas, heróis e vilões, apaches e caubóis, padres e vampiros, fantasmas e casarões antigos – ficávamos hipnotizados, ouvindo a mulher gorda e caolha a nos contar histórias antigas e assombrosas. Descobrimos a eletrostática, antes mesmo, de irmos à escola – ficávamos de cabelos em pé ouvindo a velha senhora com a sua voz rouca. Medos escondidos de olhos fechados em quartos escuros. 

O menininho sentia dor, era intenso o seu lamento – era quase um mantra do desespero. Os seus olhos lacrimejantes e sua face pálida nos pediam socorro. E mesmo estando o menino aconchegado ao colo de sua avó, sua imagem era de sofrimento e abandono. Eu não aguentei a dor exposta, sou covarde às dores alheias, retirei-me em silêncio por sentir-me inválido diante do invisível. Voltei ao trabalho com pesar. Voltei para a minha realidade menos sofrida.

As minhas dores eram intensas. Chorava miúdo, andava pequeno e curvado. Meu choro era seco – um verdadeiro lamento. Lamentava-me por não ter o colo de quem eu amava para aquecer-me e curar-me naquele momento de dores intensas e invisíveis. Caminhava a passos curtos à procura da cura.

Em meu quarto, somente a penumbra me entendia e acariciava-me com mãos que afagam. Em tempo de dor, o sol permanecia lá fora, bem longe de meus olhos chorosos. A solidão, naquele momento, era a maior dor do mundo. Menino perdido num tempo ditado por uma linha dura.

Quando ela chegou, acompanhada de sua mãe, com ele nos braços, e entregou-me como se fosse um fardo pesado demais pra elas, eu chorei. Chorei pela dor existente; Chorei pela negligência velada; chorei pela distância provocada. Acalentei-o até a sua dor passar. Emprestei meu colo para aquecê-lo, cantei música de ninar até o sono chegar. O amor cura mais que tudo – ele pode curar o mundo; ele pode curar-me também.

Quando elas voltaram para apanhá-lo, ele já sorria - estava mais forte e muito mais bonito. Chorei miudinho, choro abafado, pra que ninguém escutasse a saudade guardada de uma vida inteira. Fiquei ali, vendo-os afastarem-se mais uma vez de mim. Horizonte perdido aos olhos de quem ama. O sol deu lugar para lua e as estrelas solidárias cobriram e aqueceram o meu corpo pálido. Deitei-me no colo materno e fui acalentado por mãos que curam.

A avó se mantinha calma diante da dor do netinho. Acalentava-o, com voz de passarinho - admirável amor avoengo.

A menininha, toda maquiada - se achava mocinha - comia pelas mãos pacientes de sua avó. Eram colheradas de amor pra alimentá-la por toda a vida. Avito-amor.

As correntes se arrastavam naquele terreno que um dia foi senzala – escutávamos os elos rangerem na voz da velha gorda contadora de histórias. Nossas caras assustadas e nossos corpos encolhidos, naquelas noites frias de lua azulada, eram a recompensa que a caolha esperava. Nossos medos, sua alegria.

Tudo era mágico, até o banho de tanque pra tirar o pretume de um dia de futebol e pipa. Mãos calejadas que esfregavam sem dó o corpo de menino-sujinho. Mãos de avó, sabão e muito choro hidrofóbico, compunham aqueles finais de tardes de estios. Retrato da vida em preto e branco – lembranças jamais esquecidas.

E, naquela tarde, a menininha deu-me tchau e sorriu. E, naquela mesma tarde, o menininho não chorou mais – acabaram as suas dores tão sofridas e reais.

E, naquela noite de lua alaranjada, retrocedi na minha linha do tempo, sai da condição de pai e virei filho e, neste caminho, encontrei-me neto e franzino; descobri-me amado, levado, triste e feliz. Sentimentos turbinados por ventanias repentinas.

E, sujo ou limpinho, eu tinha todo o carinho do mundo, mesmo com pesadas palmadas na bunda - registros do bem e do mal – a escolha era sempre minha. Se as mereciam? Aí já é outra questão. Não vou dá, agora, a minha mão a palmatória.

Olhei para o meu casaco pendurado no cabide e fui até ele sorrindo, tirei de dentro de seu bolso, o meu segredo: a maçã que tinha guardado escondido da menininha. Mordi-a e a saboreei com muito gosto todas as minhas lembranças. A menininha devolveu ao bolso de meu casaco o meu segredo: Lembranças embrulhadas em papel de seda.

Paulo Francisco

Misteriosas

Corri à sacada para observar as maritacas em algazarras no meu telhado. Adoro vê-las em voos rápidos e escandalosos. Saíram do telhado e foram para a copa da árvore do outro lado da rua. Abri um sorriso. As aves me fazem sorrir. Fico fascinado com o voo das aves de rapina que enfeitam o meu céu. Aqui de minha rede vejo-as em voos lentos, tranquilos – são donas, certamente do pedaço.

Uns tempos atrás, quando minhas noites eram regradas de cervejas e papos fiados, subia, ao voltar para casa, uma ladeira íngreme que encurtava o caminho até o meu doce lar. Na metade do percurso, já totalmente sem ar, parava. Numa dessas paradas encontrei uma coruja, no muro de uma casa, me olhando.

Fiquei ali observando a olhuda. Sempre que subia a ladeira, quase todos os dias, lá estava ela a me encarar. Batizei-a de Professora. Nunca entendi e nunca procurei saber, porque o símbolo do magistério é uma coruja. Será que é porque a ave tem olhos grandes e enxerga no escuro? Ou será por que assusta? (brincadeira!)

Gostava de vê-la pulando pelo muro, como se quisesse me acompanhar. Certa noite ela não estava mais lá – fiquei triste, já tinha me acostumado com a olhuda sem pescoço.

É sempre assim, quando vou me acostumando com elas, elas se afastam, às vezes em silêncio como a Professora, outras vezes em algazarra como as minhas visitantes.

Tudo bem... continuo aqui na minha rede, olhando pro céu, vendo as aves de rapina de um lado pro outro à procura de uma vitima; continuo aqui neste vai e vem provocado, só esperando, só esperando...



Paulo Francisco

Vento-ventania

O vento sofre. Esta é a sensação que tenho quando escuto, de meu quarto, os uivos do vento. São contínuos e intensos. Fico um tempo enorme decifrando seu lamento.

Talvez seja somente este vento que ouço daqui de minha cama um sofredor. Os outros não. O vento das manhãs solares, por exemplo, sacramenta meu viver. Traz luz e cor no verão. Gosto de sentir em minha cara o vento frio na minha pele quente – refresca como bala de menta.

As ventanias – as meninas ventanias - estas me fazem sorrir, gostam tanto de brincar que saem esbarrando em tudo, são afoitas. Não deixam nada no lugar quando entram em minha casa pelas janelas. Elas não têm, ainda, o controle total da sedução. E que assim seja. Todas elas seguindo seus cursos em movimentos de dançarinas. São aprendizes na arte da vida. Precisarão entrar em muitas janelas para obterem o título de brisa.

Brisa, ah! Ser que seduz; Ser que sabe dar na medida certa o carinho desejado. Sopra lentamente as velas dos barcos e levam mar adentro seus namorados.

A brisa canta as mais belas canções em nossa alma. Permite-nos sonhar. É senhora de nossa existência. Consegue com seus sopros contínuos e aveludados nos transportar para os sonhos mais distantes. Ela ressuscita a esperança. Traça em dedos de luva o caminho a ser percorrido. Engolimo-las como flocos de algodão-doce.

São tantos os ventos.

Os Cecilianos que carregam as palavras doces de suas poesias até nossos corações; os assustadores de Heloisa que nos esperam do outro lado da rua, e os que navegam espalhando os mais variados dos sentimentos nos versos de Claudia Lemos, num controvento-deseventora.

Aqui de meu quarto escuto o vento que sofre. Tenho a sensação que ele procura algo para aliviar sua dor. Bate em todas as portas e janelas à procura de algo que se perdeu. Será que procura por um amor que o abandonou?.

Na dúvida, pego carona em sua cauda e viajo por este mundo em dueto com seu canto, quem sabe não encontro o meu...quem sabe...




Paulo Francisco

Observador de estrelas

Sempre gostei de olhar para o céu. Faço isto até hoje. Não tem um dia que não olhe para ele e procure uma estrela ou se a lua está a observar-me.

Quando menino, o céu era tão maior, tão mais azul. Mas eu era menino, acreditava que podia ser astronauta, ou um guerreiro que surge entre nuvens e relâmpagos.

Hoje, eu ainda olho para o céu, procurando a estrela mais brilhante, converso com a lua – e como converso com ela!. Sei que posso ser astronauta em versos e prosas; sei que posso ser o guerreiro que quiser; e sei, também, que nem todos os céus são para serem tocados ou admirados.

Quando menino eu queria agarrar uma estrela, sair correndo atrás de uma estrela cadente e guardá-la em minha sacola. Quando via uma, cerrava os meus olhos fortemente e encolhia os ombros, na esperança que daquele jeito todo encolhido, os meus desejos chegassem até ela mais rápido. Sempre desejava a mesma coisa: que um dia ela caísse em minhas mãos.

Cresci e nenhuma estrela cadente chegou perto de mim, todas caíram no mar. Eu, morador de montanhas, fico no mais alto ponto, todo encolhido e de olhos bem abertos, olhando a planície lá longe e o céu. E quando vejo uma estrela cadente, não mais faço pedidos, simplesmente a admiro e sigo o seu percurso em direção ao infinito.

Mas confesso que às vezes gostaria de ser novamente aquele moleque sonhador e sair voando como um guerreiro invencível atrás da minha estrela cadente.

Ainda hoje eu vi uma estrela.

Paulo Francisco

Passarinho na janela

Um dia fui visitado por um passarinho. Acordei com ele cantando em minha janela. Observei que seu canto era, ao mesmo tempo, de felicidade por estar ali, livre e de lamento por não saber o que fazer – era um passarinho anelado e anilhado. Sim, era um pássaro de gaiola.

O que acontece com aquele que tanto deseja sua liberdade, mas não sabe o que fazer com ela? Torna-se um passarinho na janela? Fica com medo de voar, ou de ultrapassar aquele vão e se tornar de novo um prisioneiro?

Percebi, observando o cantador, que uma vez domesticado jamais teria sua vida selvagem de volta – o mundo lá fora é competitivo e cruel. Possivelmente seria uma presa fácil.

Quando já estava resolvido a capturá-lo, fui interrompido por palmas no meu portão – era um jovem de seus vinte anos. Notei que segurava uma gaiola de madeira – era, certamente, o carcereiro do fugitivo. Deixei o jovem ignorante entrar e fazer sua captura.

Pensei em textualizar sobre a preservação e o crime que é capturar e prender uma espécie silvestre, mas desisti – sabia que não adiantaria, não seria ouvido. O mais importante, naquele momento era a felicidade do penoso indeciso.

O jovem, estrategicamente, colocou a gaiola a certa distância do animal, colocando alpiste e água fresca no interior daquela prisão de madeira e se afastou em movimentos felinos.

Fiquei ali torcendo para que aquele frágil animal vencesse seu medo e voasse para longe pra nunca mais voltar. Mas, não é bem assim para quem tem medo do desconhecido. E, em pouco tempo, lá estava ele dentro de sua cela se refrescando numa banheira de água fresca.

Abri o portão e os companheiros se foram cantando caminho a fora.

Hoje eu acordei e fiz de minha janela um poleiro, danei-me a cantar.



Paulo Francisco

Céu de brigadeiro

Não gosto de surpresas. Hoje, o dia me surpreendeu - ficou chuvoso e esfriou rapidamente. Dias nublados me entristecem. É como se as nuvens, zangadas, não permitissem que o sol chegasse por completo com seus raios quentes. Em dias assim, eu sou o sol escondido.
Não consigo concentrar-me absolutamente em nada em dias acinzentados.
Acredito que seja porque a visibilidade não é total nem para ver o sol e muito menos para namorar a lua. E sem os meus banhos estelares a boêmia fica incompleta. Noite sem um céu anilado coberto por senhoras que brilham é o mesmo que viola sem seresta – fica vazio.
Quem gosta de olhar para nuvens carregadas de íons e prótons?
Quem gosta de luminosidade sem a presença do rei vermelho?
Quem gosta de namorar sem a lua como cúmplice?
Eu não gosto!
Eu gosto de céu azul: se dia, um azul que me lembre roupas de bebê; se noite, quero um céu azul de metileno decorado por constelações perfeitas.
Por isso gosto de seu céu, ele é assim, como descrevi . Ele me embala em canções doces.
No seu céu, eu sonho e desejo – torno-me romântico e engulo estrelas cobertas por açúcar de confeiteiro.
Com o seu céu me cubro por inteiro – me torno pescador de estrelas.




Paulo Francisco

Amigos

Caminhava totalmente absorto, de repente me deparei com um sorriso amigo. Recuperado do susto, gargalhamos como dois moleques arteiros.
A principio, conversamos amenidades, os nossos olhares não permitiam conversas duras. Já não nos víamos há mais de ano.
O sol debruçado sobre as montanhas e nós debruçados em cervejas e conversas.
Não estávamos mais sozinhos, nossas lembranças nos acompanhavam e a cada uma delas revelada, retirávamos um do outro pedaços de epiderme encourada pelo tempo.
Desnudamo-nos sem a vergonha do macho. Éramos, ali, seres frágeis compartilhando dor; éramos seres-crianças compartilhando felicidade.
A lua já a pino anunciava a metade da noite.
Hora da despedida, hora de revelarmos o quanto valeu a pena aquele encontro. Um abraço e um sorriso; outro abraço e a promessa de outros encontros.
Ele seguiu como surgiu – de repente.
Eu voltei a caminhar madrugada adentro absorto e leve.
Percebi que a amizade nunca acaba. Amigo a gente não escolhe. Amizade é uma coisa natural, sem genética, sem padrão. Basta alma.
Hoje, faz um ano, o nosso último encontro.



Paulo Francisco


Vem!

Dance comigo!? Morro de medo deste pedido. Eu já não sei mais dançar. Admiro os casais que conseguem mostrar suas habilidades em um salão. Além da minha timidez, sou pé trocado, não tenho mais o ritmo de outrora.
Dance comigo!? A minha resposta será sempre a mesma: Eu não sei dançar. O pior que não saber dançar é vê no olho dela a cara de decepção. Naquele momento me sinto menos homem, menos cavalheiro, menos divertido.
Num lugar desses, eu não sou competitivo, não marco território. Sou turista com a máquina na mão. Num lugar desses, eu danço.
Dance comigo!? Antes que este pedido chegue até mim, arrumo um jeito de ficar invisível. Escondo-me por trás de um copo cheio de chope ou fico o mais longe daquela arena de pés mágicos. Não nasci para coreografar, nasci para observar.
Dance comigo!? Quando ouço este pedido entro em pânico. Fico em pane. Vou ao casamento, mas nunca à festa. Não saberia dançar com a noiva.
Mas, se um dia você me pedir pra dançar contigo, tomar-me-ei de coragem e responderei pra ti: Claro! Você me ensina?


Paulo Francisco

Faces ocultas

Às vezes me sinto tão mulherzinha. Faço mercado. Escolho frutas e verduras no hortifruti. Faço comidinha. Lavo louça. Lavo e passo as roupas. Varro e tiro pó da casa. E pra completar a Maria existente em mim, faço tudo isso ouvindo samba.
Só não fico uma mulherzinha completa, porque nada de lenço na cabeça e nada de avental. Faço quase tudo isto de cueca.
Às vezes me sinto tão machão. Não faço porra nenhuma em casa. Acumulo copos e pratos na pia, a máquina de lavar fica repleta de roupas sujas e, saio com as que tiro do cesto pra passar. Deixo as latinhas de cervejas na mesinha de centro e não tô nem aí para a toalha no chão do banheiro.
Às vezes estou tão normal que nem me reconheço, contrato uma diarista, recebo visitas e fico feliz.
Às vezes estou tão romântico, jantar a dois, feito por mim, vinho tinto, luz de vela e carinho até o fim.
Às vezes sou tão displicente, peço pizza e cerveja, ouvido na conversa e olhos no futebol.
Às vezes me sinto tão sozinho, fico a olhar pela janela os passarinhos a cantar.
Às vezes me sinto tão abelhudo, fico de olho na janela da vizinha só para vê-la passar.
Às vezes é tão complexo viver esta pluralidade que acabo inventando um novo ser.
O que eu posso fazer, com estes sujeitos loucos que cismam em me acompanhar?
Assim vou levando a vida, girando a manivela e vendo a noite chegar.



Paulo Francisco

Perdidos e achadaos

Raramente encontro o que eu perco, aliás, quase nunca. Não me lembro de ter encontrado algo que tenha perdido. Das seis vezes que perdi a minha carteira, nunca consegui recuperá-la. Eu, em menos de dez meses, num certo ano de minha vida, perdi três vezes os meus documentos. Na época, vivia num mundo estressado, tinha que dá conta de várias coisas ao mesmo tempo: mestrado, pesquisa, trabalho e um relacionamento totalmente conturbado.
Lembro-me de que não tinha céu, não tinha estrelas, não via a lua – estavam perdidos em algum lugar.
Sempre precisava perder algumas coisas para recuperar outras. Nunca acumulei muita coisa.
Com relação aos meus amores, nunca fui capaz de guardá-los com segurança – sempre os perdia fácil. Mas neste caso, sempre ganhava outro.
Hoje já não perco documentos e carteiras, estou mais atento.
Tenho todo um céu pra mim. E os amores...bem...os amores serão sempre perdas e danos e é, certamente, uma outra história.


Paulo Francisco

¨I just call...¨

O som do telefone se confunde com o violão de James Taylor. A casa estava respirando sons dos anos setenta quando o telefone tocou – era ela.

- Pronto! Respondi sonolento. Era fim de tarde e estava descansando depois de um dia puxado de trabalho. Acordei muito cedo e ainda sentia a diferença em meu fuso horário – Todos sabem o quanto me custa acordar cedo.

A voz do outro lado indicava que algo acontecera. Não era comum telefonema àquela hora. Sua voz pequena e curta anunciava tristeza, chuva miúda numa tarde de outono.

Fiquei esperando o seu texto. Mas pra surpresa minha, ela só queria ouvir minha voz.

Verdadeiramente, ela não só queria ouvir a minha voz, ela queria ter certeza de minha existência – segundo ela.

Depois que ela desligou, fiquei pensando como uma voz pode ter o poder de acalmar. Naquele momento James Taylor ainda invadia os cômodos de minha alma.

A voz que mais me acalmava, quando criança, era a voz de minha mãe. A certeza de sua existência, ali pertinho, deixava-me tranqüilo, não tinha medo de fantasmas e nem de ladrão.

No Hospital, a agulha da injeção, ou o estetoscópio frio não me intimidava, porque a voz dela estava ali, me acalmando.

Cresci e a voz da garota da vez era a minha certeza. Hoje, a voz de meu filho é o meu melhor calmante e, a voz de alguns amigos me tira sorrisos.

O som acabou. O silêncio também faz parte de minha vida.

Peguei o telefone e liguei pra ela. A reciprocidade é verdadeira.


Paulo Francisco