Questão de preferência



Aqui só falta você. Procuro entre todas as flores, no vaso de vidro, no centro da mesa, uma que me chame a atenção. Não a encontro. O florista esqueceu-se de por junto ao ramalhete a linda flor.

Toda vez que vejo um vaso de flores, fico olhando pra encontrar entre todas a que me desperte mais a atenção. Sempre tem uma que nos atrai. Entre botões fechados e rosas abertas, uma é mais aveludada, tem maior brilho. As rosas ainda em fase de desabrochamento, ainda se encontram num tempo transitório, ou seja, o que será dela ao desabrochar por completo? Uma rosa perfeita, aveludada, ou uma rosa com sua cor empalidecida perante as outras? Só o tempo dirá! Prefiro as que já estão formadas, com suas pétalas perfeitas, viçosas. Gosto da rosa desabrochada e cheirosa. Tem que ter perfume; tem que ter brilho; tem que me despertar desejo.

Procuro sempre entre as cores a que me chame mais a atenção. Confesso que o azul é minha cor predileta. Mas não posso negar que ao ficar manchado pelo vermelho de uma boca, fascina-me.

Tenho amigos que odeiam mulheres com batom. Eu adoro. Gosto de ser pintado por ela. Gosto de mulheres enfeitadas; de unhas pintadas e que provoquem arrepios e contrações.

Não sou diferente deles. Eu, pelo menos, confesso. Não preciso de um botão de rosa na lapela. Quero uma rosa pronta em meu travesseiro.

Não sou diferente de ninguém. Gosto do azul, de uma boca vermelha, de rosa perfeita – quer dizer, já desabrochada.

Prefiro e, não é vantagem nenhuma, frutas maduras – são mais suculentas e sua doçura é mais envolvente à fruta verde no pé que demora muito pra amadurecer. Não tenho tempo nem paciência pra cuidar e esperar o seu amadurecimento. São lindas de se ver, mas são duras de morder. Prefiro uma fruta na mão a várias no cesto.

Não sei por que eu escrevi este texto. Talvez seja porque aqui só falte você.



Paulo Francisco

A curiosidade quase matou o gato



Comigo-ninguém-pode. Lembro-me como se fosse hoje. Numa tarde qualquer estava agarrado às barras da saia de minha mãe, sempre atento as suas conversas – adorava ouvir os adultos e, era sempre expulso por um deles com a seguinte frase: "Vai brincar menino, isto não é conversa de criança!" - Pois bem, estava grudado em minha mãe voltando pra casa depois de uma visita a uma amiga dela, quando outra amiga a encontra no meio do caminho e seguiram juntas a conversar. Um papo dali, outro papo daqui e, eu atento, não deixava escapar uma vírgula.

Quando passamos por um velho conhecido terreno baldio, ouvi de uma delas: ¨ Como pode, um terreno deste abandonado, sem uma cerca e cheio de mato.¨ a outra: ¨ um perigo! Olha! e está cheio de comigo-ninguém-pode, um veneno!

Fiquei com o nome da planta manchada em minha cabeça e com aquela palavra saltitando em minha mente: Veneno! Toda vez que passava próximo ao terreno ficava a namorar aquelas folhas largas e convidativas, até que uma tarde resolvo saber se era verdade que planta era venenosa e mastiguei-a com gosto. Pra encurtar esta história, foi o único dia que uma travessura minha não acabou em chineladas, mas em compensação me fizeram vomitar até as tripas. Fiquei mole por uns bons dias e ainda ouvi sermão de todo mundo. Senti saudades da chinelada Era mais rápido e curava logo.

Eu era assim, o revés da obediência. Ouvia que não podia e aí que eu queria. Tomava banho de chuva, fugia à noite pra brincar na rua, andava de trem até a quinta da boa vista, ia ao cinema depois da aula.

Hoje já cumpro mais com os meus deveres e obrigações. Mas a curiosidade em querer saber das coisas sempre foi o meu fraco. Por este complexo sentimento caí em algumas ciladas.

Hoje me comporto com cautela. Olho a folhagem pintada e no máximo mostro-me em desejo. Estou mais cuidadoso – gato escaldado. Descobri que o fogo aquece, mas também, pode queimar; a água sacia, mas pode afogar; nem todo vento é brisa.

Assim vou levando minha vida de curioso. Observo primeiro, estudo um pouco e depois sim ponho a mão. Nem tudo que está à vista é pra ser tocado. Nem tudo que vem ao vento é pra ser agarrado.

Aqui em casa, por exemplo, as miúdas e graciosas marias-sem-vergonha estão sempre florindo. São estudadas pela medicina. Enfeitam. Mas quem disse que não são tóxicas?






Paulo Francisco

Dependência




Não espere de mim mais do que eu tenho pra dar. Quando a professora, no final da aula, entregava o boletim, eu ficava tenso, angustiado, tornava-me pedra pra não revelar a minha aflição. Não queria um dez, não queria um nove, não queria nada além do possível, bastava-me um boletim azul, pra eu sair daquele transe mortificado. Vermelho respingado, azul manchado. Tinha, tínhamos, naquela época, vergonha de uma nota abaixo da média.

Na vida, tentei ter o meu boletim sempre com notas azuis, mas como a escola do mundo é pra sempre, é quase impossível não manchá-lo com alguns respingos vermelho e amarelo.

Como recebíamos o boletim fechado num envelope pardo, o suspense era maior, principalmente quando era entregue pelas mãos da Professora com um ar sério ou de reprovação. Um sorriso dela era o sinal de que não tínhamos ido mal.

Quando cheguei a minha casa e vi seu rosto fechado, seus olhos cabisbaixos, seu andar arrastado, percebi que estávamos abaixo da média.  Nossa relação estava no amarelo e há qualquer deslize chegaria ao vermelho. E chegou. Fui reprovado sem o direito de recuperação.

Não entendia a compreensão do amor. Era difícil pra mim, o doar, o aceitar, o resignar. Não entendia que tínhamos que caminhar numa via de mão dupla. Não decodificava; não abstraía. Tudo era erroneamente um todo. Não compreendia as etapas da vida, seguia numa linha reta, sem parada pra descanso, sem parada pra reabastecer a máquina, sem uma revisão de tempos em tempos. Não revisava a vida.

Ah, fui reprovado tantas vezes na disciplina do amor que quase desisti da matéria. Passei um bom tempo afastado da classe. Achava que não era possível acompanhar toda metodologia aplicada. Era complicado decorar todos aqueles termos, conceitos e definições no tempo exigido pelo sistema.

Mas como seguir sem a compreensão da base da vida? Como entendê-la se não vivê-la? E se vivê-la, como aceitá-la?

Tornei-me autodidata. Segui o caminho do construtivismo.

Sigo num aprendizado sem fim. Entre erros e acertos, defino-me, conceituo-me e não chego e nem devo concluir-me, pois a cada dia, há na vida, elementos novos, pra colocarmos a prova. Somos a nossa própria experiência.

Experimento-me.

Não exija de mim, o que eu não tenho para dar.

Se vermelho ou se azul, com ou sem segunda época, o boletim é da responsabilidade de cada um.




Paulo Francisco

Drama





Estou velho demais pra morrer de amor.  Mas caso eu venha morrer, por agora, que seja então de amor vivo. Que eu esteja recostado em seu ventre, sentindo a cadência de sua respiração, o calor de seu corpo, que as suas mãos estejam em minha nuca e seus lábios nos meus.

Não me conformava com o drama de alguns amigos quando a relação escorria pelo buraco negro da vida. Considerava tudo aquilo uma perda de tempo. O que adiantava o desespero da perda, a não ser pra perder totalmente a razão.  O amigo L entrava em desespero, quase enlouquecia por causa de um abandono.  Descobria tardiamente que aquela que o dispensara era a mulher de sua vida. Bebia e chorava o inevitável, chorava e bebia a triste descoberta, bebia, chorava e me alugava madrugada adentro com suas lamurias e desesperança.

Eu era tão bom ouvinte como um bom bebedor de cerveja.  Enquanto pra ele era desespero, pra mim era diversão.  Sabia que em menos de um mês o camarada me ligaria pra comemorarmos a sua nova paixão, a verdadeira mulher de sua vida surgira das cinzas de seu sofrimento. E saíamos pra comemorar o seu novo estado emocional.  Pelo menos ele não só dividia sua tristeza – as alegrias também eram comemoradas em copos gelados de cerveja.  Não sei como ele está agora. Perdemo-nos no meado dos anos oitenta.  Mas eu nunca esqueci suas esquisitices amorosas.  

Mas não era só ele que fazia drama por uma paixão mal acabada. Havia outros marmanjos com a mesma síndrome do abandono.  Eles me ensinaram a sofrer calado.

Eu também sabia sofrer de amor. Um bom abandono amoroso tem que ter sua dose de desespero, sua dose de sofrimento, sua dose de lágrimas e soluços. Um bom abandono amoroso tem que ter dia nublado, guarda-chuva preto e travesseiro.

Falava com o vento na esperança de obter respostas.  A saudade era tão imensa quanto o vazio no peito.  A dor da perda nunca foi branda – era dor de membro amputado. Tentava viver na normalidade, mas as noites se tornavam longas e os amanheceres frios. Era uma saudade doída, uma dor de alma, uma dor de nunca mais. Sentia-me abandonado pela sorte.  Um desafortunado temporário.

Achava que nunca iria esquecê-la. E como viver assim? Como viver sem a presença daquela que jamais pensei em perder? Não sabia.  E por não saber inventava-me; transformava a dor e sonhos em histórias terceirizadas.  Dramas grafitados em pedaços de papel ruim. A cada abandono, nascia uma tela abstrata e cinza. A cada abandono, uma morte esquisita. Eu também sabia ser dramático. Ouvia músicas tristes e bebia uísque.  Ah, eu também sabia morrer de amor.

Mas o tempo passa, ensina a virar a página.

Hoje, eu estou velho demais pra morrer de amor. Prefiro morrer de outra coisa e vivê-lo até o fim.


Paulo Francisco


Empatado







Não quero mais brincar. Estava sentado num banco do parquinho observando o nada. Estava ali para não fazer e nem pensar em coisa alguma. Descompromissado comigo mesmo, ali fiquei, olhando sem ver. Mas uma frase aguda me despertou daquele transe provocado: ¨- Não quero mais brincar! Não quero mais brincar!¨ Todos cercaram o menino que de braços cruzados insistia na frase. Ele estava irredutível, era árvore que não envergava, e seu comportamento, fez o grupo se espalhar – eram folhas soltas em redemoinho. E ele, ali, no centro, cabisbaixo de braços cruzados. O que estava fazendo? Pensei. A brincadeira vai acabar por causa dele? Me perguntei.

Mas na vida tudo se resolve. Os meninos voltaram para o menor e tentaram convencê-lo de que não deveria fazer aquilo, porque senão eles iriam brincar de outra coisa e ele não entraria. O menino resmungou algo e balançou a cabeça numa positiva, entregou a bola que estava sendo esmagada pelo seu pé esquerdo. Ele era o capitalista – dono do capital.

Quase que instantâneo todos gritaram de felicidade e correram para as extremidades daquele campo improvisado. Soltando palavras de ordens:

- Aí, ¨cavera¨! Fica na direita... Não! Não! Gigante ( o menor da turma)fica aqui mais próximo da área. Vamos lá! Tava quanto o jogo?

Alguém grita:

- Quatro a três!

A discussão agora começa por causa do placar:

- Não mesmo! Tava empatado quando o verruga parou o jogo. Ri com o apelido do moleque e pude perceber que seus dedos tinham umas três verrugas grandes.

- ¨Cavera¨! ¨cavera¨! O menino magro e comprido corre em direção de quem lhe chama, gritando: falai aí meleca! Cai na gargalhada: meleca!? Pensei.

Eram os apelidos dos mais engraçados que já ouvira: tatuí, barata (estes eu ri e muito, eram dois artrópodes das classes crustácea e insecta, respectivamente), caroço, e muitos outros,mas dos tantos apelidos o mais engraçado foi quando olhei para o moleque com o calção laranja e que correspondia ao singelo nome de guerra: ¨Cheroso¨. O suor escorria em bicas de sua cabeça, as placas grossas acinzentadas em seus cotovelos e joelhos indicavam banho uma vez por semana, não vou comentar das unhas - impraticáveis. Tive que rir.

Todos felizes jogando depois de chegarem a conclusão de que era um outro jogo. Começariam do zero a zero. Sai dali, rindo, com a democracia afetiva entre eles.

Pensei: Não quero mais brincar! Ou começamos do zero a zero ou não jogo mais.


Paulo Francisco

Disfarce





















E por de trás dos óculos escuros meus olhos sorriem. A minha timidez me confunde. Sim, sou tímido. Dizem que meus olhos falam por mim. Talvez, seja verdade. Falo com eles o que não tenho coragem de expressar com palavras.

Apelo para os meus braços e minhas pernas. Abraço apertado. Mãos que afagam. Olhos que dizem. Meu corpo trabalha em dobro quando o assunto é o amor. Não digo em palavras – sou tímido demais para expressar o que sinto. E nesta aventura me desnudo em poemas, suspiros e muito calor dermal.

Sou assim:

Uso óculos escuros para me esconder de mim.


Paulo Francisco

Dueto




Os raios invadem minha casa. Não sei acordar de outra maneira. Não vedo meus olhos pra dormir. Não fecho minhas cortinas. Gosto de ir dormir olhando pro céu. Cochicho com a lua em noites claras e sou acordado pelo sol. Penumbra só em momentos de puro tédio ou em uma grande enxaqueca.

O meu acordar é lento, minha alma me chama e acaricia-me em massagem chinesa. O meu espreguiçar é demorado, pernas e braços são movimentados num vocabulário próprio do balé. Dizem por aí que tudo isto é preguiça. Pode ser, mas só abro os olhos depois de meu concerto coreografado ser todo executado e o coral de anjos terminarem sua canção.

Não tenho pressa ao acorda. Sei que depois tudo vai ser diferente. Tempo pra tudo, horas pra tudo. Não, não me venha dizer que o meu despertar é de preguiçoso – ele é necessário.

Tenho algumas necessidades que vão à contramão do dia-a-dia. Necessito por exemplo de músicas, não músicas enfiadas nos ouvidos como vejo por aí. Necessito dela em minha casa, em meu trabalho, em meu viver. Os meus amigos são canções. Canções das mais variadas. Tenho do Rock ao Fado; do Forró a canções francesas. Os meus amigos são diversificados.

O gostoso é quando a discoteca está em minha sala. Concerto de primeira. Festival de repertório.

Engraçado, tem gente que mal conhecemos e já se torna música aos nossos ouvidos. Conheci por um tempo desses uma mulher que aparentemente me pareceu ser uma música francesa, mas depois, ela foi se mostrando que também podia ser uma bela canção de musica popular brasileira. Gostei dela.

Ela gosta de dormir na penumbra, mas deixa uma frestazinha na cortina para ser anunciada pelo dia que está na hora de acordar. Os raios invadem seu quarto de maneira sorrateira. Seu espreguiçar é menos coreografado, mas as suas poses são dignas de quadros sensuais.

E nestas noites, certamente, abandono a lua, esqueço o sol. E a penumbra é minha amiga.

Num duo, alguém tem que ser a primeira voz.



Paulo Francisco

Coração tranquilo

Resolvi voltar pra casa andando. Meus pés, minhas asas. Assim, teria mais tempo para admirar os fantasmas em galhos e sombras. Gosto de imaginar personagens e objetos possíveis em árvores e muros manchados. Divirto-me e esqueço-me do tempo, da lua e das estrelas. Neste meu momento, não existe céu e, sim, um quadro negro para o meu imaginário. Rabisco, com giz invisível, rostos, invento palavras e construo castelos. Sigo o mesmo ritual do menino franzino, que andava em ruas escuras segurando a barra da saia de sua mãe. Volto num tempo que a minha inocência era o meu pote de ouro.

Andava lentamente, sem pressa, saboreando cada passada. Não sentia o véu orvalhado, que dançava em minha frente. seguia o mais lento possível, não queria chegar logo, queria que o tempo demorasse a distância em que o meu coração se encontrava.

A calçada brilhava – ela estava serenada.

Não estava frio, mas também não estava quente. Estava na temperatura de meu corpo. Mesmo que o termômetro insistisse em anunciar seis graus.

Eu precisava pensar e, pra mim, nada melhor que andar na madrugada silenciosa e fria.

Gosto do silêncio noturno. Silêncio, somente quebrado pelo piar da coruja e o barulho do vento. Mas eles não eram intrusos e, sim, parte de meu templo chinês.

Seguia conversando comigo mesmo. Podia até falar alto que não tinha uma viva alma para me censurar. E os mortos, certamente confabulavam, em total silêncio, o meu pensar.

Às vezes me pego falando alto em pleno passeio público. Fico totalmente sem graça, quando percebo que uma ou outra pessoa possa ter ouvido os meus lamentos. O mais engraçado é que só penso alto quando estou agitado, quando uma decisão importante está por vir.

Quando triste, chateado, fico silencioso, carrancudo.

Em casa, eu canto, converso com as minhas cadelas, falo comigo mesmo. E daí? Não tem ninguém para me censurar ou me chamar de louco. E quando me encolho debaixo das cobertas, cultivando o meu silêncio, também não tem ninguém que me tire as cobertas e me deixe no frio.

Ultimamente, não estou sentindo frio e, alto, somente o som das músicas que tento acompanhar desafinadamente. Coitados dos meus vizinhos que têm de ouvir a minha preferência musical.

Mas neste exato momento, não estou triste e nem tenho que tomar nenhuma decisão importante. Simplesmente estou feliz

Paulo Francisco

Guiado por um céu azul






Ontem foi um dia especial, traduzo-o como o mais azul dos últimos dias. Estava aqui em minha rede, em pleno ócio, olhando lá pra fora e me perguntando o que estava fazendo em casa com um dia tão lindo. Mas têm dias que eu prefiro admirá-los de longe, de soslaio.  Mas o sol estava convidativo, a brisa chegava acariciando o meu corpo com mãos de seda. Não resisti e acabei saindo sem destino, como barco a vela guiado pelo vento. Bermuda, chapéu, mochila e vontade de caminhar por aí. Encontrei vários rostos conhecidos, várias imagens foram registradas pela lente de minha máquina.  Segui até o Parque Nacional – gosto de me sentar próximo a cachoeira e ficar ali lendo e observando os corajosos banhistas.
Ontem foi um dia especial. Sem destino, ao vento, guiado pelos raios solares pude me encontrar com a natureza que tanto prezo.  Depois de um bom descanso à sombra daquela árvore secular, segui o meu caminho, segui pro meu objetivo - ir ao topo de uma das trilhas existente e contemplar lá de cima minha cidade e registrar aquele céu azul.
Mas ele ficou mais azul quando de repente encontrei-a sozinha seguindo o mesmo caminho que o meu. Sorrimo-nos, abraçamo-nos, e caminhamos juntos o percurso seguinte. Descubro, então, que o céu azul e a brisa refrescante, convidavam-me pra um encontro inesperado. Desde a morte de Ana Beatriz que não via nenhuma de suas amigas.
Às vezes é bom relembrar, viver e contar e recontar o que foi bom.
Ontem foi um dia especial. - olhei para o céu e ele estava a sorrir.
Ontem foi um dia daqueles  que a gente não se esquece nunca mais.
Amanhã eu parto pro  mar. Vou ver outra Ana e outra Maria. Amanhã estarei com o meu primeiro amor, Maria minha mãe, tantas vezes registradas nos meus pequenos relatos; amanhã estarei juntinho de Ana, a caçula de minhas irmãs.
Ontem foi um dia especial, amanhã, certamente, será muito mais.

A lua só existe para os sonhadores?





A lua só existe para os sonhadores? Ficar ali, na rede, namorando a lua é típico de mim.  Gosto e não nego. Sou um sonhador nato. Sonho com a possibilidade de um amor que me faça astronauta, que me faça flutuar até a lua. Tenho certeza que em algum lugar tem alguém olhando pra lua de maneira sonhadora, querendo este mesmo flutuar. A lua tem essa magia de nos hipnotizar e transformar-nos em viajantes estelares.


Estava escrevendo este texto quando o telefone toca e era uma  ¨ex-namorada¨  em prantos me cobrando uma atitude com relação a um poema que fiz. Acusando-me de dissimulado, cafajeste, sacana e sei lá o quê. Oras, eu não postei nada que pudesse denegrir  sua imagem ou seus sentimentos.

Demorei pra entender que na verdade ela ainda tinha a esperança de uma volta. Ela tinha, eu não. E o que eu postei foi um poema com relação a duas fotos de flores que ganhei de uma amiga do nordeste de quem gosto muito.

Pois bem, era isso que eu queria falar e não estava conseguindo me expressar de maneira clara a respeito: namoro a lua, gosto de contar estrelas, faço poemas bobos, escrevo sobre o amor da maneira mais singela, quase adolescente e, mesmo assim, sou chamado de cafajeste. Será que sou? Agora já não sei mais se sou ou não. Talvez eu seja. Sou um cafajeste que canta ao amor, que manda flores, que faz textos apaixonados e diz que ama quando ama. Sou um cafajeste que aceita acusações indevidas simplesmente pra não magoar o seu par. Sou cafajeste por sair de cena quando percebo que a relação se desgastou. Sou cafajeste porque acredito numa amizade depois do término de um namoro e, não admito picuinhas, intrigas - já passei da idade pra aceitar tais comportamentos infantis.

Não quero mais um amor neurótico onde a insegurança transforma o certo em duvidoso. Não sei ficar me desculpando com relação ao que não fiz, simplesmente pra espalhar a nuvem negra que paira em nossas cabeças. Isto cansa.

Não, não sou dissimulado, jamais consegui dizer ou fazer o que não estava pensando. Às vezes me faço silêncio, porque acho que dentro desse meu silêncio eu posso vir a gritar as minhas neuras. Ninguém tem que aguentar as minhas inseguranças, não vou jogar naquela que me ama a lama fétida de meu passado inseguro. Também não aceito que façam comigo.

Sou um viajante estelar, quero um amor que flutue comigo e não um amor que põem bolas de ferros em meus pés e me algeme com argolas da desconfiança e que tape minha boca pra que  meus textos não grite ao amor. Sou livre, a arte é livre, o pensamento é livre.

Gosto de me embalar na rede, num vai e vem de sonhos. Então, não tente empurrar o meu corpo, porque ele não está morto. Também sinto dor.

A lua não só existe para os que sonham. Mas, para os que não sonham, a lua é simplesmente um satélite.



Paulo Francisco

Arranhões

Não me julgues. Quando estou monossilábico é certo estar em outra dimensão. Quando estou assim, o melhor é não insistir. Guarde suas perguntas para mais tarde, porque não terás, não mais que um sim, um não ou um ok. Neste momento sou viajante de mim mesmo.

Se estou com sono, durmo. Então não critique o meu sono vespertino. Deixe o meu corpo recarregar, espere ele ficar pronto e minha mente sã.

Sou falante de natureza. Falo mais que devia, mas tem horas que papagaio precisa dormir.

Não tenho o poder de adivinhar – gostaria e muito ter este dom - mas se não falo o que quer ouvir na hora exata, sou insensível. Será que sou tão frio, ou estou fora de alcance? Possivelmente, estou num orbitador entre a Terra e o espaço. Espere eu descer.

Tenho algumas marcas adquiridas. Sim, marcas adquiridas na infância. Era um moleque que não andava – corria. Era extremamente feliz com as minhas pernas agitadas. Quando não estava correndo, estava no mundo da lua. Sim, eu vivia os extremos, ou muito agitado ou muito aluado. Quando aluado, pensador – mirim, era batata, algo iria acontecer, e acontecia, caso não fosse resgatado pelas minhas pernas felizes.

Tenho marcas por todo o meu corpo. Cortes em minha pele feitos pelo mais diversos dos acontecimentos. Cabeça rachada não era novidade. Pele cortada não era novidade. Minha derme era tingida por mercúrio-cromo e adornada por gazes e esparadrapos.

Não julgue o que não pode compreender. Se não falei o que queria ouvir é porque estava correndo em pensamentos ou estava viajando em sonhos. Se não respondi o que queria ouvir, ou se não falei o que queria sentir, é porque minha sensibilidade estava adornada por gazes e esparadrapos.

Hoje não enfeito minha pele de azul de metileno e nem de vermelho – mercúrio-cromo. Metileno só o meu céu e, vermelho, somente o meu coração.

Não me julgue. Se não tenho os seus olhos como posso compreender o seu coração?



Paulo Francisco

Às nove







Hoje, eu saí de minha rotina matinal. Geralmente não acordo cedo. Ninguém liga para mim antes das onze horas. Por outro lado, se um amigo tem insônia, recorre a mim – sabe que estarei aceso, cheio de gás.

Acordar cedo é verdadeiramente a morte. Arrasto-me durante todo o dia. Fico absolutamente grogue. Não produzo. Então, eu sempre me pergunto: ¨ Por que cismam de fazer reuniões aos sábados às nove horas da manhã?¨ Às nove da manhã... estou sonhando.

Às nove da manhã... meu céu ainda tem estrelas.

Às nove da manhã... ainda estou despindo a lua.

Aprendi num curso de pós- graduação – Cronobiologia – que eu não era o vagabundo que todos diziam. Eu-era-nor-mal! Ouviu gente!? Nor-mal!!!!!! Dormir de madrugada e acordar ao meio dia não dá titulo de vagabundagem - A cronobiologia explica.

Senti-me em casa, estava junto com vários profissionais, gente bacana do tipo: enfermeiros, pilotos de avião, aeromoças, professores de várias áreas, botânicos, zoólogos, farmacêuticos e muito mais. Era a glória, estar com tantos colegas que possivelmente eram também chamados, no mínimo, de preguiçosos.

Mas o que mais me chamou a atenção foi a história de um camarada que dizia estar ali na esperança de salvar o seu casamento. Ele estava em busca de uma solução para tanta discórdia em sua casa. Ouvi o seu relato e entendi, naquele momento, como era importante a sintonia, até mesmo no fato de dormir e acordar ao mesmo tempo com o seu par. Ele relatou que a qualidade do sexo estava inferior, que depois de um certo tempo, perceberam juntos que nunca estavam os dois realizados. Quando um ainda tinha fogo o outro já não tinha mais madeira pra queimar. Perceberam que tinham que achar um meio termo e acabaram conseguindo, mas não era a mesma coisa, segundo o relato do camarada para mim.

Fiquei com aquela conversa na cabeça e comecei a imaginar por que algumas pessoas mantêm relações extraconjugais mesmo gostando de seus cônjuges. Será que a cronobiologia explicaria também isto?

Hoje, eu saí de minha rotina matinal. Acordei com o telefone tocando para lembrar que eu tinha uma reunião. O telefone tocou justamente quando estava despindo a lua.




Paulo Francisco

Anjos da noite




A noite derramava estrelas. Caminhávamos sob a luz da lua. Éramos errantes noturnos viajando em calçadas que choravam sereno. Voltávamos pra casa, exaustos, com o corpo sofrido e a alma feliz. Eram assim nossas noites de finais de semana em bailes nos subúrbios do Rio.

Vivíamos em bando, vivíamos em sonhos, sonhávamos com futuros brilhantes, mesmo que fossem somente sonhos. Não sei o que aconteceu com o grupo que convivi num curto período de minha juventude, fui obrigado a me distanciar por motivos diversos. Também não sei se gostaria de saber o que aconteceu com cada um deles. Prefiro lembrá-los assim, como eu descrevi. Melhor sabê-los desse jeito a saber que cada dor existente em mim faz parte de suas vidas. O passado só é bom ser lembrado quando se vive o inesquecível.

Estava caminhando, numa das minhas madrugadas de insônia, pelas calçadas molhadas de minha cidade, quando avisto um grupo de meninos e meninas caminhado em algazarras vindo em minha direção. Nitidamente pude voltar ao tempo e lembrá-lo com satisfação das minhas noites molhadas de sereno. 

Éramos jovens sonhadores com os pés no chão. Mesmo que este chão fosse forrado de estrelas.


Paulo Francisco

Imagem imaginada







Estava atrasado. Estava muito atrasado. Acordei e nem pude ter a minha preguiça matutina de rolar de um lado pro outro – num susto, já estava pronto e ligando pra Mônica para informar que estava chegando. Mentira! Mas ela já sabe que sou o maior mentiroso pela manhã. Acho que não vou acostumar-me nunca em acordar cedo. Mas o que fazer quando tem gente a nossa espera? Irmos.

Lá fui eu em passos ligeiros, pelo caminho de sempre, quando me deparo com um casal de jandaias. Pensei: Perdão querida Mônica, eu não sei a que horas chegarei.

Apanhei a máquina na mochila e comecei a fotografar o colorido casal.

Gosto das oportunidades que a natureza me oferece. Na minha última viagem, que não foi há muito tempo, aproveitei pra fotografar gente e o que tinha ao meu redor – flores e muito verde.

Quando cheguei, atrasadíssimo, todos estavam me esperando, mas, acreditando na possibilidade de eu não chegar a tempo. Mas cheguei. Aprendi que uma vez atrasado, atrasado e meio.  Não disse o porquê do meu atraso – não era preciso.

Quando o fotógrafo chegava para tirar as fotos de minhas irmãs eu ficava puto. E, não escondia a minha insatisfação com a tamanha desconsideração com a minha pessoa. ¨ Pô!, qualé bacana! Eu também sou filho de Deus!¨  Pensava irritado com tudo aquilo.  Não entendia que as fotos tinham que ser delas e não de um moleque cascorento cheio de machucados nas pernas, braços e, de quando em quando, com um esparadrapo escondendo algum tipo de corte na testa.

 Eram fotos de meninas bonitas para a sua coleção – um tipo de apresentação (book) de seu trabalho. E as minhas irmãs eram lindas e incrivelmente opostas: uma loira de olhos azuis e a outra morena de olhos amendoados. Umas graças de criaturinhas que eu judiava de segunda a domingo. Uma judiação de irmão-capeta que gostava de vê-las chorando e assustadas. Atazanava os juízos delas e de minha mãe. Coitadas!

Não me dava por vencido, a cada foto tirada, uma travessura minha. Catava os galhos secos, pedaços de qualquer coisa que pudesse sujar o plano de fundo da imagem. Quando o camarada percebia, já era tarde - depois do clique, um Paulinho, lá longe, fazendo caretas, carregando um objeto estranho qualquer. Eu era odiado, e com muito gosto, fazia tudo para atrapalhar o tal ensaio.

Minha mãe, coitada, ficava doida pra me pegar, mas, eu corria mais que todos eles. Estava sempre com um olho no padre e outro na missa. Só me sossegava quando resolviam, depois de muito relutarem, tirar algumas fotos minhas, mesmo machucado e revoltado. * ¨ Pouco me importa. Pouco me importa o que? Não sei: pouco me importa.¨   - Era assim que eu me sentia.

Hoje, ando com a minha máquina na mochila e estou sempre clicando algo. Registro tudo. Adoro alguns flagrantes humanos e de coisas estranhas. A galera do trabalho que não gosta muito, mas como tenho que entregar no final do ano um clipe com o povo todo em plena atividade, não perco a oportunidade de me divertir.

Como as pessoas têm medo que registrem o seu lado mais secreto – uma fotografia é um plano, somente um plano de sua existência.

Quando as cópias das fotos chegavam, naqueles objetos estranhos, chamados monóculos, todos nós ficávamos a admirar as imagens de minhas irmãs, sempre, sempre arrumadinhas de cabelos cacheados e vestidos novos. De vez em quando, eu surgia numa foto junto delas – mas já era o bastante pra me deixar feliz. Pois bem, o que eu queria mesmo era sair na foto.

Hoje eu acordei atrasado, e por causa desse atraso, voltei ao tempo de criança quando nunca perdia o tempo do clique do fotógrafo. Coitado!

*Alberto Caeiro






Paulo Francisco

Penumbra




Levantei-me rapidamente para fechar as cortinas. Os raios solares tinham invadido o meu quarto num momento em que eu ainda precisava da penumbra. Não queria enfrentar o dia; não queria ver as cores que brilhavam, certamente, nos olhos de quem já estava de pé. Queria continuar deitado fingindo-me de morto ou de quase vivo. Eu estava triste.

Guardo a minha tristeza comigo e a cubro de carinho. Dou-lhe mimo, acalanto-a, alimento-a com lágrimas e silêncio. Torno-me o seu guardião ou ela de mim. Não a deixo sozinha por um minuto sequer. Preservo o seu egoísmo e não permito que ninguém se aproxime. Tenho medo que a tire de mim antes do fim.

 Quando a tristeza chega, entrego-me sem lutar. Tornamos-nos simbióticos temporários.  Ela usa o meu corpo cansado, enquanto eu a uso para esquecer o mundo. Nutrimos-nos de nós mesmos até a última gota da taça.

Às vezes a danada chega sem avisar e não tem alegria que a afaste de mim. O poeta já dizia que ela não tem fim. Talvez estivesse certo. E por isso, eu a alimento com tudo que há em minha alma, satisfazendo as suas vontades até se cansar de tudo. E ela se cansa – eu sei.

Tem tristeza que é pra sempre. Essa de hoje, já é uma senhora que me visita há anos. Ela se instala, acaricia os meus cabelos, as minhas costas, assopra em meus ouvidos até me deixar com frio. Ela gosta de me ver encolhido – frágil e perdido. Não luto contra. Torno-me passivo e silencioso. Sei que ela vai embora logo. É uma tristeza que vem com o vento e, com ele, vai-se.

Não sei dividir dor quando a sinto. Gosto de dividir flores e alegrias. As minhas dores eu as curo no escuro.
Dizem por aí que a minha tristeza tem nome de saudade. Uma saudade triste. Talvez seja mesmo saudade de algo que foge as minhas mãos, que os meus olhos não a alcançam. Talvez seja uma saudade triste de um tempo que não mais existe. Não sei bem ao certo o que me faz, de quando em vez, cair nessa melancolia de dormir, dormir, dormir. Durmo sem sono – Não sonho. Simplesmente finjo que durmo. Finjo pra enganar o escuro.

Os mais perversos, e são muitos, falam que me escondo da vida em sonos profundos. Não os contesto. Deixo-os pensarem que estão certos. Mas, o que sei mesmo, é que a tristeza chega sem aviso prévio. E da mesma forma vai embora.

Não sou um homem triste. Sou um homem que fica triste. Um homem que chora a tristeza. Mas como aprendi que homem não deve chorar e muito menos ficar triste, choro e fico triste no escuro do meu quarto. Lá fora, só alegria.

Hoje, deixei as janelas e cortinas abertas. Deixei os raios solares invadirem o meu quarto na esperança dela ir embora.

Hoje, eu acordei com medo do vazio.

Paulo Francisco


Doses de mim





Não me cubro em noites de estrelas. A tarde terminou tarde. Vinte horas e ainda era de dia. O céu teima na transparência nessa época do ano. Verão é a estação em que os vampiros dormem mais. Não gosto de acordar cedo, e muito menos uma hora antes do combinado – isso acaba comigo.

Raramente chego atrasado, exceto no trabalho – principalmente no horário de verão.  Combinei às oito. Um bom horário para começarmos a noite.  Mas a distração é o meu pecado maior. Esperei o azul marinho chegar, como a Ave-Maria chegava do rádio as nossas casas no final da tarde.  Era o aviso, junto às badaladas do sino, que a noite chegara. Coisa que não aconteceu. Quando percebi não era mais de dia -  já era tarde, tarde demais para o encontro. Restou-me ligar para me explicar. Fui perdoado pelo que não tenho: Não tenho celular e não uso relógio.  Fui perdoado pelo que sou e pela a minha maneira de ser. Restou-me uma nova chance com um novo horário para o nosso encontro esperado.

Nos dias de verão tudo era maior. As brincadeiras varavam as tardes e terminavam em noites de estrelas.  Éramos andorinhas voando em bando.  Moleques esquecidos pelos ponteiros do relógio. Pai e mãe têm medo do escuro. Depois das seis, brincadeiras só em frente ao portão.  Mas no verão os portões ficavam longe de nossos olhos e pernas. Hoje, as crianças têm portarias e porteiros. São os acordos de um tempo indefinido.

No dia seguinte da minha distração, tornei-me guardião provisório do tempo, para não repetir a gafe do dia anterior.  A reincidência faz parte do meu histórico. Era só um encontro. Um primeiro encontro de reconhecimento.  Somos batedores à procura de rastros que nos levem ao que desejamos.  Mas nada aconteceu. Só ficamos naquele encontro. Em noites sem estrelas eu me cubro por inteiro. Delibero rapidamente. Não tenho muito que pensar. E nesse encontro, deliberamos juntos. Não foi o encontro esperado, mas foi divertido.

Quando a incompatibilidade é maior que tudo, o melhor é não insistir.

Lá estávamos, no verão passado, de mãos dadas curtindo uma semana de férias longe da nossa zona de conforto. Praias, ilhas, cachoeiras, exposições, artesanatos, livros e muito mais. Estava tudo indo bem quando de repente uma frase mal colocada jogou tudo por água abaixo.  Éramos compatíveis em quase tudo. A única diferença estava no que achávamos do casamento. Enquanto ela vestia a sua causa de véu e grinalda, eu me despia em abandono. Tirava de mim a possibilidade do terno e abria a braguilha da bermuda.  Pulei ao mar. Eu não me cubro em noites de estrelas.

Paulo Francisco



Questão de gênero





Eu não me apego a detalhes. Sandra Dias, num dia desses, no trabalho, afirmou numa conversa nossa ¨- Paulo, mulheres se apegam a detalhes, o homem passa batido, ele é mais direto.¨ Fiquei pensando na afirmativa de minha amiga. Realmente, eu não sou detalhista. Às vezes me perco neste aspecto. Quando estou distraído, não percebo nada. Não sei se o que ela está vestindo está ou não na moda. Que aquela pintura de cabelo é um tom mais escuro ou claro que o do mês passado. Sou distraído demais.

Sou mais genérico com relação ao que me detém. Não consigo perceber um quilinho a mais ou a menos. Sou mais afetivo que visual. Sou mais detalhista num beijo; num afago. Minhas mãos enxergam melhores que os meus olhos e, os meus olhos falam mais que minha boca. Vejo por um todo, vejo mais inteiro. E é aí que eu danço.

Mas não conheço um amigo que perceba detalhes. Tudo bem, eu elogio, mas quando eu elogio é pelo conjunto da obra. Não por um pequeno detalhe. Como vou saber que a cor da unha mudou para uma cor mais quente. Quando olho, olho pra mão e não somente para os anéis; quando olho para os seus cílios, esqueço a cor das meninas de seus olhos e, quando olho os seus olhos, vejo o por inteiro. Acho que tenho que parar de olhar em raio X. Vejo o seu interior – gosto de alma. Deixo a aparência para o segundo plano.

Sabe esta coisa de não esmagar nas entrelinhas que a Clarice disse. Acho que lá, nas entrelinhas, estão o que elas querem ler ou ouvir. Então não adianta falar somente sobre um vaso com um cacto, porque acaba, ela achando que é o cacto e não a flor existente. A pipa é ela, mesmo que eu tenha achado que o céu fosse dela. As gaivotas são dela e não as brumas. O mar pertence a ela e não o barco.

Gosto de falar coisas de amor. De todo o tipo de amor. Gosto de amores calmos, pacíficos, mas não dispenso um momento tempestuoso de quando em quando. Calmaria demais enjoa. Tempestade demais sufoca.

Como escrever e deixar nas entrelinhas somente o vazio entre elas. Talvez eu faça isso, mas tenho certeza que ela vai achar que tudo está ali, no invisível, no viés; que tudo é pra ela. E às vezes é, confesso.

Não me detenho a detalhes e aí eu danço. Danço miudinho, no sapatinho.

Será que a distração é uma peculiaridade minha? Não, não mesmo. Sou distraído, mas não sou bobo.

Até porque a alma feminina pertence a elas. Deixa-me com a minha masculina e distraída.

As estrias são delas.

As celulites são delas.

As gordurinhas são delas.

O que eu quero mesmo é a alma.




Paulo Francisco