Dádivas



Ganhei um cachecol. Minha amiga Marize Barros fez um cachecol lindo pra mim. Tinha me prometido no inverno passado, mas acabou fazendo este ano. É muito bom ter amigos que se lembrem da gente em momentos comuns, sem ser aniversário ou qualquer outra data comercial. Ganhar um cachecol é mais que um presente é um carinho. É uma preocupação com seu bem-estar.

Toda vez que uso o cachecol é como se ela tivesse me abraçando. O frio diminui na derme e o cachecol aquece o coração.

Amigo a gente guarda de várias maneiras. Eu os guardo em pequenos sachês de seda e fita vermelha. Tenho uma boa coleção de aromas.

Amigo tem cheiro bom. Tem cheiro de confiança; de verdade. Posso dizer que os meus amigos têm cheiro de flor do campo. Brisa tem cheiro? Tenho uma amiga que tem cheiro de brisa, quando ela chega refresca o meu rosto, me tranqüiliza. Outra, é pura margarida, vivemos no bem-me-quer e mal-me- quer, e certamente, sempre paramos no bem-me-quer.

Nos primórdios o homem utilizava mais o poder de seu nariz. Ele sentia ao seu redor pelo cheiro. Hoje, só os animais utilizam o cheiro para defender-se ou procriar-se – é o tal feromônio.

Mas acredito que a química do cheiro ainda exista em nós – uns mais e outros menos. Quantas vezes já nos pegamos admirados com casais tão diferentes. Ali, pode acreditar, tem cheiro, tem química.

Casais duradouros não estão preocupados com a visão da águia. Eles são borboletas, são atraídos pela beleza do cheiro.

O mais engraçado que minha amiga Marize é alérgica a cheiros fortes de perfumes. Ela tem cheiro de bebê – usa colônias fraquinhas. Este é seu cheiro.

Ganhei um cachecol com cheirinho de bebê.
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Paulo Francisco

Barulhinho besta







O vento bate insistentemente em sua janela. Aquele tremor, cadenciado, não a deixa dormir. Corpo cansado, pálpebras pesadas, calcanhares doloridos, não quer levantar para fechar a estúpida e irritante janela. Tateia sua mão no escuro até o criado-mudo à procura de seu remédio. ¨Maldita cabeça! Esqueci de ligar para a farmácia!¨ - Exclama a cansada mulher.
Travesseiro cobrindo a cabeça, travesseiro separando os joelhos. Tira lençol, coloca lençol – não consegue relaxar. O som ecoa por todo o cômodo. Vencida pelo barulho insistente, levanta, acende o abajur, vai até a teimosa e a cala por completo.
Abre a gaveta do criado-mudo, vasculha a bolsa, vai até o armário de seu banheiro e nada. Não encontra o remédio que a faria apagar por longas horas.
Caminha até a cozinha, faz um chá. Volta para seu quarto e em sua confortável cama, delicia-se com o sabor e a temperatura daquele liquido. Olha para a janela – agora silenciosa – sorrir o sorriso do vingador.
Ajeita-se, vira-se para um lado, pernas dobradas, pernas esticadas, braços juntos ao corpo, braços na cabeça, travesseiro cobrindo-lhe a cabeça, vira para o outro lado, travesseiro entre os joelhos... e nada - ainda acordada.
O silêncio absoluto do quarto a obriga escutar os seus próprios pensamentos. Não era mais um barulhinho cadenciado do vento batendo na janela. Cada vez mais inquieta, percebe que não vai conseguir dormir com o silêncio total daquele quarto. Então, levanta e vai em direção da janela, deixando-a como antes, entreaberta. O barulhinho besta que antes era angustiante aos poucos, transforma-se num acalanto para os seus ouvidos, para a sua alma, fazendo-a dormir como um anjo.



Paulo Francisco

Mãe





Quando ouvi Mãe de Caetano Veloso na voz de Gal Costa pela primeira vez, eu fiquei paralisado. Até hoje a música mexe comigo de uma maneira singular. Eu gostei tanto da música, que não pensei duas vezes, quando a professora pediu para a classe, como tarefa da semana, uma versão em espanhol de uma música brasileira, eu escolhi Mãe.

Todos ficaram curiosos o porquê daquela música. Não disse. Não era pra dizer, era pra sentir. Hoje pensei em fazer uma crônica para o dia das mães. Mas tudo que eu fosse escrever por aqui, alguém já disse, e bem melhor.

Falar da certeza do amor materno, do desejo de tê-la por perto, das palmadas e dos castigos, do bolo e dos presentes, dos afagos e do colo, das mãos que nos seguravam evitando-nos os abismos, dos olhos que nos vigiavam e nos serviam como lanternas no escuro frequente, das histórias contadas sobre o vento e das músicas assopradas nas noites sem estrelas; tudo isso é mais que justo, mas não seria inédito. E mãe é inédita, é única, não tem cópia, foi desenhada sem papel carbono por baixo pra cada um de nós. Sem essa de dizer que mãe é tudo igual, não, não é não, e sabemos disso. Minha mãe, tua mãe, nossa mãe, a mãe dele.

Pensei até em não escrever nada que fosse maternal, achei que seria mais interessante passar pela data e escrever algo que fugisse ao tema. Mas, não seria justo comigo, com ela e, principalmente, com as mães que me leem.

Então, pra não ser piegas e repetitivo, escolhi pra homenagear, a minha, a tua e a mãe deles, na letra da música de Caetano:  Mãe

Palavras, calas, nada fiz
Estou tão infeliz
Falasses, desses, visse não
Imensa solidão
Eu sou um Rei que não tem fim
Que brilhas dentro aqui
Guitarras, salas, vento, chão
Que dor no coração
Cidades, mares, povo, rio
Ninguém me tens amor
Cigarra, camas, colos, ninhos
Um pouco de calor
Eu sou um homem tão sozinho
Mas brilhas no que sou
E o teu caminha e o meu caminho
É um nem vais nem vou
Meninos, ondas, becos, mãe
E só porque não estais
És para mim que nada mais
Na boca das manhãs
Sou triste, quase um bicho triste
E brilhas mesmo assim
Eu canto, grito, corro, rio
E nunca chego a ti.






Com relação ao trabalho em espanhol, tirei dez e a professora, numa versão bem brasileira, transformou-se na mãe de meu filho.


Paulo Francisco

Desejo quase secreto

Acordei com vontade de comer chocolate. Estava nítido que minha boca não queria água, nem outro tipo de doce que não fosse chocolate. Levantei e fui à caça de um pedacinho esquecido na geladeira. Nada! Somente água na minha escrava branca. Bebi um copo daquele líquido gelado e voltei pra cama em plena terça-feira à tarde. Um dia frio e acolhedor.

Às vezes meu corpo pede exageradamente algo, como por exemplo, comer chocolate ou ir à padaria comprar dois sonhos de creme lotado de açúcar de confeiteiro. Não os como lá, levo-os pra casa e num ritual só meu, me lambuzo de creme e açúcar sem nenhum arrependimento. Sou um devorador de sonhos.

Eu sou assim: quando quero uma coisa, eu quero, e quando consigo me lambuzo e me farto em meus desejos. Por isso tenho a minha geladeira vazia, assim, posso ter sempre o que desejar e não encontrar de pronto. Gosto da intensidade da vontade. Teve uma tempo em minha vida, que a gorda estava ali, para o meu bel-prazer. Mas acabava passando batido por ela e tinha a audácia de exclamar: Poxa! Não tem nada de diferente pra comer! A minha diarista da época balançava a cabeça e com o olhar de repreensão me dizia: ¨Que pecado, seu Paulo, que pecado!¨.Então, pra não passar por pecador, resolvi não ter quase nada ou nada em minha geladeira que de gorda passou à mais magra do mundo. Hoje, como fora ou trago algo já pronto pra comer em casa – é mais econômico, não dá trabalho nem aborrecimento; não fico na obrigação de repetir o cardápio e nem com a fama de pecador.

Mas hoje, neste friozinho de inverno, numa tarde especial de terça-feira, bem que queria a minha escrava branca repleta de guloseimas para poder me fartar de tanto comer.

Sem problemas! Tenho uma agenda lotada de endereços de delivery. Basta escolher um.

Hoje acordei com uma vontade de comer chocolate em especial, bombom.

Paulo Francisco

1 de maio





Vai trabalhar vagabundo!Cinco dias de vagabundagem, cinco dias de ócio, cinco dias de descanso. Já estava achando que a vida era não ter hora pra acordar, não ter ponto pra assinar e não ter dia pra labutar. Estava achando que a vida era pra ser vivida em gozo eterno. Não queria outra coisa senão andar sem as amarras do sapato, de bermuda folgada, com o meu chapéu panamá.

Neste feriado não viajei, bem, não viajei de corpo presente, fiquei em minha cidade conhecendo lugares por mim nunca explorados. Mas, também, fiz passeios já conhecidos e que gosto muito. Gosto deste descaso provocado, desta vida vagabunda que o feriado provoca na gente.

O dia primeiro de maio, é um feriado significativo, tem história, é dia de festa e de luto certamente.

Cada País tem a sua história, que o diga Portugal que só voltou a comemorar a data em 1974.

Eu já comentei em texto passado que o meu primeiro de maio mais significativo foi o do ano de 1981, já era trabalhador-estudante e estava no dia 30 de abril para assistir a um show com a nata da MPB no Riocentro, na Barra da Tijuca, onde comemorávamos o dia do trabalhador. Poderia não estar mais por aqui, se aquela bomba tivesse explodido como os militares planejaram.  Explodiu antes do lado de fora do pavilhão e um dos verdinhos que estavam armando a bomba morreu - queriam culpar os vermelhinhos. E neste dia o Chico não cantou. Só fui entender por que no outro dia.

Bomba à parte, o primeiro de maio no Brasil é comemorado com festas e não com luto, pelo menos por enquanto. Que venham as festas, mas que venha, também, a conscientização de que precisamos lutar sim por condições melhores em nossos trabalhos.

Hoje, acordei com o despertador que ganhei de uma amiga de São Paulo tocando. Olhei pro lado, olhei pro outro, estiquei o corpo e disse: vai trabalhar vagabundo!

Viva os trabalhadores do Brasil! Viva eu, viva você, viva! para todos que trabalham e fazem a história deste País.


Paulo Francisco