Diário




O pão meu de cada dia. Uma particularidade gastronômica: adoro pão! Perco-me numa padaria.  O pão de sal ou francês (que de francês não tem nada) é o meu preferido. Mas não dispenso um bom pão de cebola ou um italiano. O australiano é muito bom em tardes frias – talvez pelo cacau e pelo extrato de malte.

Quando havia inverno de verdade em Teresópolis – o clima por aqui anda mudando tanto que as casas estão substituindo a lareira por ventiladores e ares-condicionados – a casa cheirava a pão. Era uma diversão à parte ver a mãe fabricando para o nosso consumo vários tipos de pães. Só torcia o nariz quando via o pão preto. Aliás, da Rússia, o que eu mais gostava era da salada.  O pão preto é muito denso, não conseguia mastigá-lo.

Não sei ir ao centro do Rio sem visitar a padaria Bassil na Rua Sr. dos Passos. Lá tem as melhores esfihas e o melhor pão árabe que já experimentei.  Conheci esse lugar ainda moleque. Com relação ao pão de queijo só fui ter conhecimento já adulto.

Se Jean- Jacques Rousseau inventou ou não a frase dita por Maria Antonieta não me importava nenhum pouco, o que eu queria mesmo era experimentar o danado do brioche. Mas como no bairro  que morava as padarias só fabricavam o básico, demorei pra provar o tal do brioche – gostei e entendi o deboche da frase.

O pão que eu não engolia era o pão de açúcar. Ninguém me dava uma resposta convincente o porquê do nome.  Muito tempo depois, já adolescente alguém menciona José Vieira Fazenda e sua explicação do nome para o morro e engulo sem reclamar.

Eu ainda não sabia quem era Oswald de Andrade, mas já sabia quem era Caetano e conhecia o pão de açúcar; e foi ouvindo Escapulário musicado pelo cantor que descobri dois geniais:

¨No pão de assucar
De cada dia
Dai-nos Senhor
A poesia
De cada dia¨

E numa passagem rápida a São Paulo em 2011, tive a oportunidade de visitar o Museu da Língua Portuguesa homenageando Oswald de Andrade. E foi lá que li pela primeira vez a seguinte frase: ¨O pão de açúcar é um seio que o céu quer sugar ¨  .

Numa tarde de domingo, quando levava meu filho pra casa depois de irmos ao teatro infantil, eu ri e o invejei pela sua atitude. Parei para tomar um cafezinho e perguntei o que ele queria, na expectativa de um sorvete, refrigerante, biscoito ou um salgadinho. Mas o moleque me surpreendeu pedindo baguetinha com manteiga.  E lá fomos nós para a rodoviária com ele devorando os dois pães quentinhos sem o menor pudor.

Mas agora, duro mesmo, é engolir o pão que o diabo amassou.


Paulo Francisco

Reflexão





Nesses dias de feriado grande, de descompensação cronológica, de não ter que fazer nada, fico totalmente desorientado. Um jat lag emocional. Enquanto os insetos rodeiam a lâmpada, eu tento identificá-los como passatempo noturno. Divirto-me com as porradas dadas na parede pelos desengonçados coleópteros. As pálidas bruxas se espalham num balé frenético e suicida – há no ambiente uma lagartixa namorando o seu banquete.  Concomitante a orgia entomológica, há lá fora uma euforia juvenil quebrando o meu silêncio interno e noturno.

Cansado das dezenas teorias de conspirações, milhares de zumbis, vampiras e vampiros com cara de porcelana, lobos estilizados e mutilações absurdas, a televisão é desligada e a estante vasculhada.  Sempre há palavras para serem colhidas. Levo pra cama as poesias amorosas de Affonso Romano de Sant´Anna. Perco-me num labirinto de palavras e pensamentos. O dia chega e os meus olhos se fecham lentamente.

A campanhinha do telefone interrompe o sonho.  Acordo para mais um dia. Uma caneca de café esfumaçante ajuda a abrir a agenda mental. Descubro que terei que caminhar entre as gôndolas do mercado em busca do básico – a despensa está vazia.  Tento adiar o incomodo inventando outras tarefas, mas não por muito tempo.

Não gosto dos alimentos embalados com a cor azul. Prefiro os amarelos e vermelhos. Passeio pelos produtos orgânicos como um turista em museus estrangeiros.  Ando comendo menos com medo da grande quantidade de venenos e hormônios usados nos alimentos. Torna-se cara a consciência. Nada de transgênico, nada de hormônios, nada de corante. É quase impossível ser saudável nesse mundo tão rico e tão miserável ao mesmo tempo.

Quando vi uma senhora revirar o lixo da rua, catando latas e outros objetos existentes, deu-me um nó na garganta. A miserabilidade caminha ao nosso lado e fingimos não vê-la por medo ou por conveniência, não sei.  Ela não era, com certeza, uma artesã excêntrica, recolhendo recicláveis para criar obras de arte.  As chamadas artes sustentáveis de artistas do mundo inteiro expostas em galerias famosas e que são admiradas por uns poucos favorecidos. Não, não mesmo, ela era uma catadora de centavos para completar a ¨renda ¨  da família. E, ainda assim, a outra Senhora faz questão de mostrar poder com suas vestimentas compradas parceladas no cartão. Tão miserável de espírito quanto aqueles que não têm o que comer. Tenta disfarçar a sua pobreza de espírito camuflando sua pele de bruxa.

Nesses dias de feriado grande, de ociosidade premiada, de compromissos guardados, torno-me mais racional. Mesmo no Carnaval.


Paulo Francisco



  

Imagem





O espelho foi feito para lembrar-nos de que o tempo passa.  Hoje, pela manhã, ao fazer a barba, lembrei-me do poema retrato de Cecília Meireles e pensei:  Também não tinha Cecília, este rosto de hoje.  Com a cara branca de espuma, restaram-me antes da navalha, meus olhos profundos e meus lábios sedentos de amor. Eles ainda não estão vazios, ainda não estão amargos – pensei parado com a lâmina no ar.

Minhas mãos seguiram ainda firmes, o caminho da espuma. Continuei recitando, silenciosamente, o poema de Cecília:

¨Eu não tinha este rosto de hoje,
Assim calmo, assim triste, assim magro,
Nem estes olhos tão vazios,
Nem o lábio amargo.

Eu não tinha estas mãos sem força,
Tão paradas e frias e mortas;
Eu não tinha este coração
Que nem se mostra.

Eu não dei por esta mudança,
Tão simples, tão certa, tão fácil:
- Em que espelho ficou perdida
a minha face?¨

Também voltei no tempo, além do espelho, quando achava engraçado as caretas do meu pai  diante de um pequeno espelho redondo. Sua face antes assustadoramente negra de pelos encontrava-se lisa e vermelha depois das precisas navalhadas na carne. Cena que mais tarde meu filho repetia em gestos teatrais ao ver-me nesse rito matinal. Hoje, restaram-me o riso e o ardor da saudade.

Talvez o espelho não mostre somente a passagem do tempo; talvez ele não exista somente para nos olharmos. Talvez ele exista para revelar aquilo que não queremos ver ou ser.

Não acreditei quando me vi no espelho. Estava babando de ódio. Vermelho e deformado como se estivesse possuído. Uma energia negativa que jamais tinha sentido. Fiquei exausto em poucos segundos. Fui para debaixo do chuveiro e ali fiquei por muito tempo. Livrei-me daquela armadura do mal e ali mesmo pedi perdão a Deus. Não sabia, até então, que era capaz de acumular tanta energia.  Um Big Bang emocional. Fiquei com medo de o que vira no espelho fosse a minha outra alma -  aquela que só Jacobina de Machado tinha visto.


Surgiram outros espelhos em minha vida. E neles, sempre me vi por inteiro. Mas foi nas retinas dos olhos de meu filho que mi vi mais verdadeiro.

Paulo Francisco

Menino do vento





O vento sempre esteve em seu caminho. Mas era o vento oeste que mais o fascinava. Talvez fosse pela delicadeza de Zéfiro de Bouguereau seduzindo a deusa Chloris.

Foi através do vento que a sentiu pela primeira vez. O seu perfume penetrara suavemente pelas suas narinas fazendo-o virar a cabeça em sua direção. E lá estava ela exalando sedução. Seria zéfiro presenteando-o com tão bela imagem?

Sentado na sacada de seu quarto nas longas madrugadas frias, ele sentia as mãos geladas e pesadas de Bóreas.  Nunca gostara do vento norte. Sempre achara que foi ele que a levou para sempre, numa noite sem estrelas. E por muito tempo, sentado em sua sacada, recitava a mesma poesia de Florbela – Cantigas leva-as o vento...:

¨A lembrança dos teus beijos
Inda na minh´alma existe,
Como um perfume perdido,
Nas folhas de um livro triste,

Perfume tão esquisito
E de tal suavidade,
Que mesmo desapar´cido
Revive numa saudade!¨

Mas o vento sempre fora mais alegre do que triste. E os moleques do bairro chamavam o vento numa canção típica da região:

¨Vem vento caxinguelê,
Cachorro do mato qué te mordê.¨

E o vento vinha e as pipas subiam ao céu para a alegria da molecada.

Mas quando o vento chegava forte e repentino, as mulheres corriam até o quintal para pegar os lençóis branquinhos cheirando a anil. Ficava parado, olhando-os dançando freneticamente no ar, dificultando as suas retiradas. De quando em vez uma saia subia para a alegria de seus olhos curiosos.

Em casa, adorava fabricar assovios estranhos assoprando contra as paletas do ventilador de metal. Perdia-se em namoro a espera do vento gelado do lento vaivém do disco gradeado. Enfeitava o metálico com fitas de plástico somente para destruir o silêncio gelado. Ouvia dos mais velhos o perigo da mutilação causada pelas hélices do aparelho. Então, escondido na sua própria sombra, empunhando uma vareta de bambu, tentava a qualquer custo – até mesmo por uma surra -  parar o perigoso gerador de vento, numa imaginária aventura épica entre o homem e o dragão.  Mas o grito do monstro sendo abatido ecoava pela casa delatando sua aventura. Corria para bem longe de seu crime, numa tentativa inútil de ser inocentado. Mas o seu nome, levado pelo vento, atravessava toda a casa esbarrando nos móveis pesados e brilhantes de todos os cômodos até o escuro de seu armário. Todos sabiam quem era o culpado das piores travessuras daquele lugar.

- Pauloooooooooooooooooooooooooooooo!!!!!!!!!!!!!


O vento sempre esteve presente em seu caminho.

Paulo Francisco