Camuflagem
















Quando a capitão-do-mato, guiada pela luz, invadiu o ambiente, cerziu com seu voo lento as cabeças brancas dos sete companheiros cervejeiros que estavam encostados no balcão do bar, assustando-lhes pela surpresa da visita. Sorri com a cena. E quando ela pousou no teto com suas asas marrons unidas mostrando os seus ocelos que mimetizam folhas e troncos de árvores, eu a apanhei e a levei para fora, dando-lhe a oportunidade de assustar outros marmanjos em outra freguesia.  Pronto! Foi o bastante para ser bombardeado com perguntas entomológicas. Logo veio a primeira e tinha que ser do sacana do Wanderlei:

- Isso é um lepidóptero?

- Sim. Uma Ninfalídeo. Respondi sabendo que viriam outras.

João (dono do bar) solta uma pergunta marota:

- E o bicho-pau, qual o nome dele?

Respondo na mesma ironia:

- Depende de quem está vendo e da intimidade que se tem com ele...

Gargalhadas invadem o boteco e o Wanderlei insiste em mais uma:

- Professor (a maioria me chama assim), tira uma dúvida sobre camuflagem e mimetismo...

-  Baixinho (todos o chamam assim), vou lhe responder de uma maneira que você não vai mais esquecer. Você se lembra do filme o exterminador do futuro 2 que tinha aquela máquina assassina que ao encostar num ser humano transformava-se na sua vítima? Então... Aquilo era um mimetismo.  Inclusive, ele fora feito no futuro por um metal inventado chamado mimético.

- Saquei...

Continuo:

- Outra do Arnold Schwarzenegger.  Você se lembra do filme O Predador, quando ele nada até a margem do rio e se arrasta num tipo de mangue e sem querer se cobre de lama e encosta nos galhos de uma árvore e o alienígena não consegue vê-lo? Aquilo foi uma camuflagem.

- Legal! Tá vendo... Por isso que eu gosto de perguntar as coisas a quem entende do assunto...

Ufa! Pensei: sai da berlinda. Os meus exemplos deflagraram outro assunto- cinema.

Cada um falou do último filme a que assistira, e acabo comentando que tinha assistido na televisão ao filme Adivinha que vem para jantar? Com Sidney Pottier.  Falei que achava que era uma produção de sessenta e sete. 

Depois de alguns comentários sobre alguns filmes assistido. O nome do Leonardo DiCaprio surgiu  como um ator que evoluiu.  Quando estavam citando os últimos filmes que ele tinha trabalhado como Django Livre, O Grande Gatsby e o Lobo de Wall Street, caio na besteira de mencionar Eclipse de uma paixão produzido em noventa e cinco. Ninguém ali tinha assistido ao filme. Quando falei que era um filme baseado no relacionamento de dois poetas do século XIX e que DiCaprio fazia o papel do poeta Arthur Rimbaud, foi o suficiente para o assunto pular para arte, quando o Wanderlei  comenta sobre a era cubista.

Mas antes da discussão começar, as portas do bar foram abaixadas, anunciando que a nossa segunda-feira sem lei estava chegando ao fim. As segundas-feiras são sempre assim. Quando não é futebol o assunto, a diversidade impera. Afinal de contas, o José Francisco é Odontólogo,o  Levy é Contador,o Falcão é Advogado e Professor de história, O Carlão, Fisioterapeuta, o Antônio Carlos, Engenheiro, o Denilson é Matemático, Wanderlei, comerciário, Walmir é Farmacêutico, Renato é comerciante e muitos outros que não são frequentes mas que param para uma prosa curta.

Mas o que me deixa na bronca é que ninguém  é  bombardeado com perguntas  sobre as suas profissões do jeito que sou.  E quando não respondo as suas perguntas, principalmente do sacana do Wanderlei e do sacaninha do João, sou chamado, pelos dois,  de Biólogo genérico.

Sorte a minha que eles não sabem que eu gosto mesmo é de poesia.


Paulo Francisco

Auge



Andávamos nas pontas dos pés para não acordar o silêncio. Ainda estava escuro e com estrelas quando saímos de casa. Mais tarde o sol chegou rasgando a noite, clareando a íris, desnudando o dia. A estrada era toda nossa. Nossa e do vento que acariciava as árvores num balé frenético e ruidoso. Estávamos a caminho de uma nova aventura. Uma aventura inédita, pelo menos, para mim. Enquanto o vento cantava na estrada vazia, o meu peito gritava forte numa estranha taquicardia.

 Com os olhos vidrados para não perder nada numa piscada involuntária, registrava cada segundo daquela viagem matutina. Não sabia se iria gostar, não sabia se seria divertido, ou se seria o contrário das expectativas anunciadas – tediosamente comum.

 Mas nada importava a não ser chegar e registrar em meu peito aflito o que me fora prometido. E o clichê mostrou-se verdadeiro – a primeira vez a gente nunca esquece. E todos que estavam ali já sabiam disso. Eu era o único daquele grupo ainda não ter provado da sensação daquele momento.

As atenções se voltaram para mim. Todos queriam, certamente, reviver o passado, através da minha existência.  As perguntas chegavam tumultuadas, atropeladas pela curiosidade alheia:

- E aí, gostou?
- O que está sentindo?
- Vai, anda, fala alguma coisa...
- Está contente?
- Fala com a gente... Vai ficar aí parado sem dizer nada?

Mas as palavras chegavam longe aos meus ouvidos, porque longe eu estava.  Não iria responder ou dizer qualquer coisa. Queria guardar comigo a magia daquele momento. A sensação do instante vivido. Pensei baixinho: Esqueçam! Vocês não tirarão de mim, nem sob tortura, qualquer sensação desse exato instante.  E mudo fiquei até a chegada da lua. Porque a melhor resposta, certamente, seria o meu silêncio.

E quantas outras primeiras vezes foram tatuadas em meu peito. Algumas reveladas em palavras e gestos e muitas outras guardadas em silêncio no peito.  
Nunca me esqueci daquele dia. Nunca comentei pra ninguém o que ficou guardado em mim por todos esses anos. E hoje, tive a mesma sensação daquele dia.  Senti o meu coração mais ritmado, as minhas pernas se envergando para frente e os meus olhos miúdos sorrindo com o vento. Eu estava vendo o que pensei ter visto há décadas. A única diferença daquela época, é que hoje não há mais a incerteza. E por mais clichê que seja a frase, sempre haverá um novo amanhecer. Mesmo depois de tantas luas.

Paulo Francisco



Balão azul

Jeitinho carioca



Adorava quando ela me chamava de crioulo. O som de sua voz chegava aos meus ouvidos, doce como a própria cana-de-açúcar na minha boca. Era um crioulo arrastado, cheio de charme e manso. Preenchia a casa, vestia-me a alma. Era impossível não atendê-la de imediato. E ela sabia que aquele chamado era ópio na veia.  Deixava-me cheio de vontade e aí  conseguia tudo o que queria. Apanhava o pote que a danada não conseguia alcançar no armário; abria os potes de conservas; entrava embaixo da cama como uma serpente desengonçada para procurar a tachinha do brinco que pulara de suas mãos. Era impossível negar qualquer coisa depois de ouvi-la com aquela canção melosa e sedutora.

Nunca tive apelido na rua. No máximo era chamado no diminutivo. Carioca adora esse sufixo afetivo - inho.  Ela também. Mas não para Paulinho, e sim para neguinho.  Não neguinho como pessoa indeterminada. Mas um neguinho apaixonado, doce, que chegava me deixar em êxtase com o tanto de carinho declarado.

O mais gostoso de tudo, é que não era a toda hora, a todo o momento.  Era de quando em vez e quando estávamos sozinhos. Do contrário, deixaria de ser uma coisa gostosa e se tornaria comum, oportunizando as outras pessoas a me chamarem assim. Era um crioulo, um neguinho, nunca gritado, mas cantado. Melodia amorosa e sedutora que me enchia de tesão. A coisa ficava melhor ainda, quando as quentes palavras vinham acompanhadas de cafuné na cabeça. Dedos raspando a cabeça era sinal de apelo amoroso. Carioca herdou o chamego dos nordestinos, que por sua vez herdaram de nossos índios. Filho de dois nordestinos, com um pé no terreiro africano e o outro nas clareiras indígenas, tem que gostar de chamegar. Impossível não gostar.

Dois episódios engraçados aconteceram com essa coisa de apelidos amorosos. Um aconteceu com uma colega de trabalho quando falava com seu marido ao telefone. Era sempre  um tal de docinho pra lá, um tal de docinho pra cá, que todos que estavam na sala se entreolhavam sempre. Até o dia que o camarada foi apresentado para nós e não perdemos a oportunidade de ficar o tempo todo chamando o homem de docinho.  Nunca mais ela o chamou assim na nossa frente. Carioca adora zoar.

O outro, menos engraçado aos olhos de quem narra esse texto, foi quando num restaurante, reunido com alguns amigos e amigas, depois de muitos risos e cervejas, chamei uma colega do trabalho de preta numa conversa distraída. E, sem perceber, acrescentei gasolina na fogueira, quando derrapou de minha garganta uma pretinha quase melódica. Não percebera a mancada até receber em casa uma sandália na testa.  O crioulo ficou roxo e levou o seu galo para o terreiro.  As cariocas são tão ciumentas.


Paulo Francisco


Coisa de casal




Em dias chuvosos a pedida é chocolate quente, filmes na televisão e cabaninha de edredom.  Será?!

- Paulo o que vamos fazer hoje?
- Hã!  
- Hã o quê?!
- O que o quê?
- Paulo, eu perguntei o que vamos fazer hoje.
- Nada...
- Tá brincannnndo? Não vamos ficar o dia todo enfurnados nessa cama... Assistindo a esses filmes antigos.
- Mas está chovendo! Tá frio! E tem chocolate quente.
- Você sabe que eu não gosto...
- Tem vinho também.

Vinte minutos de silêncio

- Paulo?
- Hã !
-  Você abre a garrafa de vinho pra mim?
- Claro, traz até aqui...
- Não acredito que você não vai levantar e ...
- Ok, o filme já está acabando...
- Deixa! Eu abro.
- Ok...
- Eu não aguento quando você  usa esse seu okey só pra não entrar numa discussão...
- Hum, hum
- Você está me ouvindo?
- Hum-hum.
- Viu! É assim que você faz

Alguns minutos de silêncio

- Pronnnnnto o filme acabou.
- Verdade?!
- O final foi emocionante... Adoro rever esses filmes dos anos sessenta.
- Eu detesto!
- O que você quer de verdade?
- Eu queria sair, ver gente, tomar ar puro...
- Mas está chovendo!
- Eu sei... Mas podemos pelo menos ir até o shopping... Eu tenho que comprar umas coisinhas.
- Tá explicado.

Silêncio profundo

- Você não vai...
- Claro que vou! Podemos jantar depois?
- Com certeza.  Ah! Eu li o seu texto Álibi.
- O que achou?

Silêncio por meia hora.



Paulo Francisco


Pra lá de Marraquexe




Sobre a mesa da varanda havia um gato. E sob ela um cão.  Enfeitando a parede branca, duas casinhas de passarinho de cada lado da porta de vidro colorido.  Sempre que passava em frente  à casa, fosse na ida ou na volta da escola, parava por alguns segundos  para admirá-la. Gostava  da aparente harmonia entre os bichos de cerâmica enfeitando a varanda da velha senhora  sentada olhando o nada. Nunca me esqueci dessa paisagem.

Outras paisagens se eternizaram em minha alma. Como da mulher baixinha, apelidada por nós, moleques da rua, de dona borboletinha Ela vendia as cocadas mais gostosas do mundo.  Nossa boca salivava todas as vezes que passava por nós com o seu cesto de vime. Sabíamos do tesouro escondido sob aquele pano branco.  Como poderia esquecer-me do menino de olhos coloridos, um de cada cor. Do outro que tinha os dedos anelar e mindinho unidos por uma membrana.  Arrepiava-me todas as vezes que ia brincar em sua casa e via pendurada na parede da sala uma palmatória que de quando em vez, era usada. Do carroceiro com sua égua chamada piranha. Quando eles passavam, era uma festa, uma algazarra só, gritávamos em coro o nome da égua. O animal nos dava a liberdade de transgredirmos, mesmo que inocentemente.

Algumas outras paisagens se tornaram referências de uma época. Como os caminhões e jipes do exército trafegando pelo bairro e soldados verdes com seus cassetetes em cada esquina. Éramos avisados o tempo todo pra não falar com gente estranha e muito menos aceitar balas ou qualquer outra coisa de quem a gente não conhecia. Mais tarde descubro o porquê de tantos avisos – era por causa dos comunistas que podiam nos raptar. Santa ignorância! Não éramos alvos e sim o motivo de tudo aquilo.  Falar com estranhos era perigoso – mal eles sabiam que o perigo rondava-nos há muito tempo, na falta de conhecimento, na pouca esperança de uma linha invisível.

Tudo isso veio à tona hoje, décadas depois, por ter passado em frente a uma casa com varanda onde sobre a mesinha branca de ferro tinha um gato malhado sentado e ao seu lado um cão marrom dormindo sobre um tapete listrado. Penduradas na parede de fora da varanda duas gaiolas com pássaros coloridos dentro. Foram eles que me chamaram a atenção para dentro da casa. Lá estava uma velha senhora sentada no meio da sala olhando para fora, olhando para o nada, olhando para mim.

Agora, em minha varanda nua, termino este texto olhando para a tela eletrônica, pensando nas velhas, pensando nos gatos, pensando nos cães, pensando nos pássaros. E nessa epifania colorida, vejo os meninos com heterocromia e sindactilia, geneticamente felizes.

Paulo Francisco