Coisa de casal




Em dias chuvosos a pedida é chocolate quente, filmes na televisão e cabaninha de edredom.  Será?!

- Paulo o que vamos fazer hoje?
- Hã!  
- Hã o quê?!
- O que o quê?
- Paulo, eu perguntei o que vamos fazer hoje.
- Nada...
- Tá brincannnndo? Não vamos ficar o dia todo enfurnados nessa cama... Assistindo a esses filmes antigos.
- Mas está chovendo! Tá frio! E tem chocolate quente.
- Você sabe que eu não gosto...
- Tem vinho também.

Vinte minutos de silêncio

- Paulo?
- Hã !
-  Você abre a garrafa de vinho pra mim?
- Claro, traz até aqui...
- Não acredito que você não vai levantar e ...
- Ok, o filme já está acabando...
- Deixa! Eu abro.
- Ok...
- Eu não aguento quando você  usa esse seu okey só pra não entrar numa discussão...
- Hum, hum
- Você está me ouvindo?
- Hum-hum.
- Viu! É assim que você faz

Alguns minutos de silêncio

- Pronnnnnto o filme acabou.
- Verdade?!
- O final foi emocionante... Adoro rever esses filmes dos anos sessenta.
- Eu detesto!
- O que você quer de verdade?
- Eu queria sair, ver gente, tomar ar puro...
- Mas está chovendo!
- Eu sei... Mas podemos pelo menos ir até o shopping... Eu tenho que comprar umas coisinhas.
- Tá explicado.

Silêncio profundo

- Você não vai...
- Claro que vou! Podemos jantar depois?
- Com certeza.  Ah! Eu li o seu texto Álibi.
- O que achou?

Silêncio por meia hora.



Paulo Francisco


Pra lá de Marraquexe




Sobre a mesa da varanda havia um gato. E sob ela um cão.  Enfeitando a parede branca, duas casinhas de passarinho de cada lado da porta de vidro colorido.  Sempre que passava em frente  à casa, fosse na ida ou na volta da escola, parava por alguns segundos  para admirá-la. Gostava  da aparente harmonia entre os bichos de cerâmica enfeitando a varanda da velha senhora  sentada olhando o nada. Nunca me esqueci dessa paisagem.

Outras paisagens se eternizaram em minha alma. Como da mulher baixinha, apelidada por nós, moleques da rua, de dona borboletinha Ela vendia as cocadas mais gostosas do mundo.  Nossa boca salivava todas as vezes que passava por nós com o seu cesto de vime. Sabíamos do tesouro escondido sob aquele pano branco.  Como poderia esquecer-me do menino de olhos coloridos, um de cada cor. Do outro que tinha os dedos anelar e mindinho unidos por uma membrana.  Arrepiava-me todas as vezes que ia brincar em sua casa e via pendurada na parede da sala uma palmatória que de quando em vez, era usada. Do carroceiro com sua égua chamada piranha. Quando eles passavam, era uma festa, uma algazarra só, gritávamos em coro o nome da égua. O animal nos dava a liberdade de transgredirmos, mesmo que inocentemente.

Algumas outras paisagens se tornaram referências de uma época. Como os caminhões e jipes do exército trafegando pelo bairro e soldados verdes com seus cassetetes em cada esquina. Éramos avisados o tempo todo pra não falar com gente estranha e muito menos aceitar balas ou qualquer outra coisa de quem a gente não conhecia. Mais tarde descubro o porquê de tantos avisos – era por causa dos comunistas que podiam nos raptar. Santa ignorância! Não éramos alvos e sim o motivo de tudo aquilo.  Falar com estranhos era perigoso – mal eles sabiam que o perigo rondava-nos há muito tempo, na falta de conhecimento, na pouca esperança de uma linha invisível.

Tudo isso veio à tona hoje, décadas depois, por ter passado em frente a uma casa com varanda onde sobre a mesinha branca de ferro tinha um gato malhado sentado e ao seu lado um cão marrom dormindo sobre um tapete listrado. Penduradas na parede de fora da varanda duas gaiolas com pássaros coloridos dentro. Foram eles que me chamaram a atenção para dentro da casa. Lá estava uma velha senhora sentada no meio da sala olhando para fora, olhando para o nada, olhando para mim.

Agora, em minha varanda nua, termino este texto olhando para a tela eletrônica, pensando nas velhas, pensando nos gatos, pensando nos cães, pensando nos pássaros. E nessa epifania colorida, vejo os meninos com heterocromia e sindactilia, geneticamente felizes.

Paulo Francisco