Momentos

-1-

19/07

Manhã

Uma mulher, um menino, um filhote de gato, uma casa pequena e algumas imagens fragmentadas.  A mulher era triste, o menino solitário e certamente o filhote era mais um de tantos gatos  abandonados.  E de repente todos estavam no mesmo espaço. A sensação era de angustia e de indecisões. O gato estava magro, o menino com fome e a mulher cansada. Tudo era cinza. Não havia cores. Não havia não...

O menino foi levado em desespero por outra mulher num carro conversível preto, o gato cheio de pulgas andava pela casa miando baixinho e a mulher chorava apertado sentada numa cadeira de madeira próxima a cozinha.
Acordei assustado com uma única frase na mente: Amarre as minhas mãos e salve-me de mim mesmo.

O que nós quatro estávamos fazendo ali? E o que significava aquela frase? Acordei com as interrogações em meu peito. Fiquei por um bom tempo da manhã com a magreza do gato, a fraqueza do menino e a tristeza da mulher. Sabia que tudo era somente um sonho. Mas mesmo assim as imagens fragmentadas mexeram comigo. Talvez não fosse somente um sonho; talvez fosse algo que um dia existira na minha vida. Mas não iria pensar por muito tempo. Sonho é coisa que se desmancha pelas mãos da realidade. E agora deixo esse texto porque um churrasco me espera. Mas eu volto com certeza.

-2-

20/07

Manhã

O domingo fora perfeito. Sol ameno com um céu azul e gente amiga num churrasco de confraternização.  Uma coleção de samba de primeira, cerveja gelada e carne ao ponto. Tricolores e vascaínos torcendo pelos seus times e pela grana do bolão.

O domingo fora perfeito. Alegre e tranquilo. Tem dias que são somente dias que passam em horas e rotinas. Tem outros que são de pura alegria. Ou o contrário de tudo isso. Mas ainda são dias. Hoje, a segunda nasceu preguiçosa e de céu escuro.  E adivinha? Farei companhia a ela. Dias assim me convidam pra uma leitura descompromissada e silenciosa. Nem todo dia cinza é dia de poesia triste. Nem todo céu cinzento é sinal de chuva. E caso seja, que venha lavar-me a alma pra que ela possa se vestir de mais alegria.

Porque foi num dia cinza com promessa de chuva que a encontrei parada na esquina.

Porque foi dentro da chuva de um dia cinzento que nos abraçamos mais ainda.

Tarde

Contrariando a manhã, a tarde chegou clara e azul. Repetindo o cenário de ontem, afirmando que nada é pra sempre.

Pessoa escreveu:

¨Cai chuva do céu cinzento
Que não tem razão de ser
Até o meu pensamento
Tem chuva nele a escorrer.¨

Contrário ao poema de Pessoa corre em meus pensamentos a certeza do sol. Mas o poema é lindo e continua assim:

¨Tenho uma grande tristeza
Acrescenta à que sinto
Quero dizer-ma mas pesa
O quanto comigo minto.¨

Hoje eu não estou triste. Estou tranquilo. Deixando o dia passar. Ora lendo, ora escrevendo. Ou simplesmente de papo pro ar.  Olhando revoada de passarinho. Esperando a noite chegar.

E antes de terminar o texto tenho por respeito que terminar o poema de Pessoa:

¨Porque verdadeiramente
Não sei se estou triste ou não
E a chuva cai levemente
(porque Verlaine consente)
Dentro do meu coração.¨

Gosto desses meus dias de poemas e de canções. Da falta de compromisso. Da certeza do dia. Contrário ao do poeta há alegria no meu coração.

Paulo Francisco



Leave me alone





Deixe-me em paz!
É bom acordar com a brisa segredando na orelha. É muito bom acordar com a felicidade iluminando o quarto e desejando bom dia. Acordei com a esperança vestida de flores. Por mim, ficaria aninhado no colo do dia e jogaria os compromissos para o alto e deixaria o vento encarregado de levá-los para bem longe. Mas como no meu jardim não há somente flores, e as daninhas existem e têm seus significados, levantei para mais um dia.
Às vezes temos que driblar o inimigo, usando a sua própria arma:
- Bom dia, Paulo!
- Booom diiiiia!
Gosto de quebrá-lo na incerteza.
Deixe-me em paz!
Não é uma regra, mas há dias em que prefiro ficar sozinho. Nada de gente, nada de conversas fiadas. Quem me conhece de verdade sabe.  O silêncio me basta. Mas como entender o outro não é para qualquer um; ela acha que vivo isolado demais, que não dou oportunidade de conhecer alguém legal e que o meu castelo é cercado por um fosso cheio de crocodilos. Talvez ela esteja certa. A ponte levadiça está, na maioria das vezes, levemente erguida. Mas de quando em vez o salão nobre é aberto e as festas são demoradas e o meu Burg se transforma num autêntico schloss, enfeitado de flores e cortinas vermelhas.
 Já gostei mais dessas semanas guardadas em convites e vinhos. Às vezes era melhor mentir pra não ferir.
- Onde é que você estava?
- Aqui!
- Liguei pra ti e nada.
- Estava naqueles meus dias de reclusão
- Entendi...
Deixe-me em paz!
Mas nem tudo é literal nessa frase. O desassossego está na sua falta. E que o meu deixar em paz é estar aconchegado em seu ventre. É respirar perfume de flor. É sentir a leveza aromática de suas pétalas. É saber que o tempo é regido pelo batimento cardíaco em seu peito. Que a brisa que vem da janela nos entrelaça com fita dourada. Que o sol é coadjuvante na quentura de nossos corpos. Que o infinito é o nosso teto de madeira. E que é necessário esse silêncio de nós dois. E nessa calmaria repentina, digo:
Sim, deixe-me em paz, ficando aqui comigo.
Sim, deixe-me em paz, abraçando-me em dias frios e quentes também.
Sim, deixe-me em paz, ouvindo suas gargalhadas divertidas.
Sim, deixe-me em paz, com a certeza de sua existência.
Deixe-me, deixe-me em paz, dizendo baixinho, na ponta da minha orelha, que você já sabe o meu caminho.

Paulo Francisco