Diversidades








Gosto da amplitude do olhar; da vastidão à frente; do admirar de cima para baixo e vice-versa. Mas o que me fascina de verdade são os pequenos detalhes. O quase invisível. Perceber e transformar um instante numa tela imensa e cheia de cores, mesmo que elas sejam matizes de cinza.

Suas mãos denunciavam sua aflição. O seu grito parou na garganta e o seu olhar encharcou aquele instante. Paralisou-se diante do mundo. Seus pensamentos seguiram por caminhos nublados difíceis de serem alcançados. Correu ajudada pelo vento. Revisitou seu passado para certificar-se que ainda estava viva. Criou coragem e se debruçou em seu desejo mais carnal. Sim, ela estava viva. Sua mucosa brilhava. Seus olhos brilhavam. Seu coração acelerava a cada segundo chegado.  O seu corpo exalava vida. Ela tinha cheiro de flor.

Gosto do gesto largo; do sorriso frouxo ou do acanho tingido nas faces dos tímidos. Mas o que me encanta são alguns movimentos inesperados. Como a folha que vai caindo lentamente como se quisesse chegar ao chão num pouso suave e definitivo. Como a formação de um redemoinho no chão coberto de areia.

Ela chegou mansa. Seus gestos felinos denunciavam sua curiosidade quase infantil. Procurava, no som da minha fala, a ponta do fio que teceu a minha alma. Tentava a todo custo decifrar-me – coisa que ainda não consegui. Olhava-me como se fosse pela primeira vez. Às vezes, também me olho assim.

Gosto do dourado do verão. Da certeza da chuva no final da tarde. Dos corpos seminus passeando descontraídos na areia da praia. Mas é no outono que me sinto bem. O céu é mais azul. As árvores desnudam-se parcialmente, nos ofertando um pouco de sua sombra. Gosto da indecisão do tempo; da incerteza do dia; da surpresa a cada hora existente.

De repente o céu entristece. O sol vai embora. A noite chega clara. O vento molha o corpo. E ela chega como raio dizendo-me:

- Tenho saudade.

De repente o telefone toca. O coração fica em dúvida. A conversa fica engraçada. Transforma-se numa cantada. E a despedida é uma incógnita.

De repente o gato preto salta do muro. O passarinho voa alto. O vento bate em minha cara devagarinho. Tulipa Ruiz faz barulhinho na sala. O carteiro grita meu nome. O sorriso estampa na alma. E ela se convida a ir a minha casa, mandando-me duas garrafas de vinho.


De repente tudo fica parado à espera de um resultado que só depende de mim.





Paulo Francisco

Lembranças





Momentos guardados podem ser esquecidos. Pessoas também.  Quando a olhei depois de tanto tempo levei um susto. Perdi-me entre as nuvens carregadas que chegaram de repente. Tinha guardado uma imagem que não mais existia. Ela tornou-se uma fotografia apagada e corroída. Meus olhos duros - sem nenhum disfarce  -  procuravam por algo que não estava mais ali. Dentro, buscava sentimentos antigos e não encontrava. Revolvia, desesperadamente com as mãos, as paredes do coração na certeza de sentir as cicatrizes que pensava ainda existir. Tudo apagado.  A mágoa evaporara e eu não percebera. Olhava-a como se a estivesse vendo pela primeira vez. Outra imagem surgia do escuro.

Há momentos que valem à pena ser vividos. Esse foi um instante revelador. Curei-me sem dor. Não houve absolutamente nada – o céu não sangrou. De repente ela não fazia mais parte de minha vida antiga. Foi um suspiro longo de alívio e ressurreição.  Mesmo percebendo de quando em vez, pelo aço da porta à nossa frente, os seus soslaios sem importância, não deixei de sorrir. A megera fazia parte de um passado pulverizado pelo tempo e levado pelo vento.  Vida nova, personagens novas - pensei.  A vida continua. O agora é o momento pra ser vivido - continuei pensando. E seguimos, certamente, caminhos opostos numa bifurcação além do muro.

Momentos guardados podem se transformar em tesouro. Pessoas também.  Toda vez que nos encontrávamos era uma alegria sem fim. O céu ficava pintado de nuvens brancas e miúdas. Momentos curtos guardados a sete chaves. Gostava de seu sorriso, de sua alegria quase infantil, de sua vontade de viver. Paisagem de cores fortes e ao mesmo tempo de uma delicadeza sem fim. Pessoa bonita que acariciava a minha alma e me deixava solto, leve como a vela de uma jangada ao mar. Seguíamos abraçados  sem olhar pra trás. Porque mais a frente sempre tinha algo para se aprender. Caminhadas curtas, sem grandes expectativas de futuro, porque o agora era o que tinha pra ser vivido.

 Já se passou tanto tempo desde o nosso primeiro encontro, e continua sendo uma festa a cada novo encontro. E será sempre assim – música pra se dançar. E será sempre assim o nosso encontro - claro como a paisagem de uma primavera de outubro. Porque é etéreo o que sentimos.



Paulo Francisco