Intimidade




Quem canta seus males espanta. Nunca cantei para espantar nada e nem ninguém. Até porque, só canto debaixo do chuveiro. Ou baixinho na ponta da orelha de alguém.

A professora de música odiava quando errávamos o Hino Nacional. Logo percebemos que em vez de liberdade, retumbante, se disséssemos liberdadi ou retumbanti, ela parava tudo e começava a bravejar até espumar como um cão raivoso. Adorávamos vê-la nervosa. Ação de crianças inocentes e felizes.  Sempre tinha um  ¨anjinho¨ para errar o Hino só para vê-la daquele jeito.

De repente ouço uma voz macia quase angelical cantando na ponta da minha orelha. Acordei num espreguiçar demorado e amoroso.  Tem música que dá sambinha do bom. Tem música que funciona melhor em duo. Aí eu canto, canto sim. Canto e declamo Cecília porque certamente tenho motivo para cantar.

- Paulo, você foi ao show de fulano?

- Não!

- Paulo vai ao show de sicrana?

- Não, não vou não...

Não sei se estou menos musical, ou se estou mais seletivo.  Prefiro ouvi-los na ponta da minha orelha ou num duo testemunhado pelas estrelas e corujas.

Sei que tudo isso é fase.  Como está sendo fase o fato de não estar escrevendo tanto.  Mas dizem que o silêncio também é música para muitos. Talvez seja também para mim.

Adoro estar no meu canto ouvindo o seu canto na ponta da minha orelha. Se quem canta seus males espanta, nesse meu caso, quem canta me encanta em desejos. Agora, agorinha mesmo, ouço as canções que ela deixou para mim. Talvez eu não esteja menos musical. Talvez eu só não queira misturar as estações.


Paulo Francisco

Acumulador






Abri a gaveta e levei um susto daqueles. Já não me lembrava de tantas coisas guardadas. Sempre tive a mania de guardar aquilo que achava ser tesouro. Mas depois de certo tempo   percebia que o ouro escondido era ouro de tolo. E, aí, ia tudo para o lixo. A vida é assim mesmo, pelo menos para mim. O que pensava ser de suma importância  - e talvez o fosse no momento em que o guardei - não passava de lembranças fúteis, ou ilusão de ótica de um inocente.

Antes, guardava os meus pertences em caixas de charutos. Sim, eram objetos de extrema importância para um moleque que adorava brincar. Bolas de gudes, figurinhas, soldados de chumbo, piões afiados e cacarecos mil.

Cresci e continuei guardando coisas. Guardava não somente os concretos, mas os surreais e os abstratos também. Substitui a caixa de charutos por câmaras pulsantes para guardar o invisível.

Hoje, quando abri a gaveta e descobri tantas coisas guardadas, percebi-me um acumulador de emoções. Não sei dizer se isso é uma patologia como daqueles que não se desfazem de nada.  Mas, patológico ou não, tenho, certamente, que me livrar daquelas que de uma maneira ou de outra não me fizeram bem.

 Passei a vasculhar as gavetas falando comigo mesmo:

- Retratos com dedicatórias amorosas são demais!

-  Como pude guardar tais blasfêmias?! Vão para o lixo!

- Bilhetinho em guardanapo... COMO ISSO VEIO PARAR NESSA GAVETA?

Dizem por aí o que os olhos não veem o coração não sente. Verdade. Já nem me lembrava desse tempo de amores e de ódios.  Mas dizem também que o tempo cura. Outra verdade. É impossível não cair na gargalhada com tudo isso.

Depois de uma tarde de arrumação, as gavetas ficaram livres para acúmulos futuros. Você pode estar se perguntando agora: ¨ Como acúmulos futuros?¨ Eu respondo. Respondo rindo, respondo des-ca-ra-da-men-te: Quero mais que as minhas gavetas estejam sempre cheias de emoções. Mesmo que sejam de amores impossíveis. Amores que se transformam em raivas momentâneas. O que não quero de jeito nenhum é gaveta vazia. Coração vazio, alma amortecida. Não, não mesmo. Quero todas as facetas, pontiagudas ou não, de um amor.

Às vezes, sou obrigado a guardá-los na gaveta. Guardo antes mesmo de começar. São amores impossíveis; amores bandidos. Amores difíceis de começar.  Tem um, em particular, que estou quase o transportando de mim para a gaveta.  E mesmo guardado, ainda sim, tenho medo dele.  Porque não sei o que será.

Paulo Francisco