Pedaço

 



Sussurrar era necessário. Vivia, pelos cantos, murmurando em segredos. Hábito adquirido pelo medo de não poder se expressar em verdades. Época em que o sim e o não eram suficientes como respostas. Opinar era impossível; debater nem pensar. A ignorância obrigava-o a correr pelas ruas do bairro em gritos e tagarelices. Palavras e frases soltas para muitos, mas de extrema importância para o moleque que adorava viver.

O silêncio era escudo. Proteção que muitas das vezes era rasgado por gritos agudos causados por espancamentos desmedidos de quem deveria proteger.  Bastava um olhar mal interpretado para o corpo franzino receber fios de ferro – de- passar roupa, cinto com a fivela para machucar, tamanco português, ou qualquer outro objeto que pudesse marcar a carne de quem nascera para ser amado e não para ser açoitado. As nádegas eram bolsas de sangue pisado; as coxas eram tatuadas pela fivela que fazia urinar de tanta dor. As costas eram lanhadas em feridas vivas. Água com sal na bacia de alumínio era o unguento para aliviar a dor; mas de quem?

O abandono foi um presente.

A pré-adolescência chegara com o álcool e o fumo.  De casa em casa, buscava incessantemente por carinho. Abria os braços quando o sorriso era sincero. Sorria, quando o aconchego era quente e seguro, sem se importar de quem. A carência era tanta que qualquer palavra de bondade era agradecida com um olhar brilhante e sem medo.

As cicatrizes eram profundas, de quando em vez, jorrava o sangue guardado.  A solidão não o abandonara. O ardido da pele jamais passara, por mais que a brandura do relento o cobrisse por inteiro.

Aprendeu disfarçar a tristeza; a esconder as marcas; a enganar outros olhos. Aprendeu a sorrir. Tornou-se adulto - mesmo faltando-lhe um pedaço - sobreviveu.

Desábito

 

Há algo de estranho no ar. Sabe aqueles dias em que você não se reconhece? Que o clima está doido e você o acompanha sem reclamar? Pois é... uma garrafa de vinho, uma comédia romântica sobre o natal, uma manta cobrindo o corpo e o sereno lá fora, em pleno final de novembro.

Há algo de estranho no ar. Celular desligado para ninguém atrapalhar o silêncio instaurado no quarto. Nenhuma conversa fiada para desconcentrar, nenhuma notícia na televisão, nenhum corpo para cutucar. Somente eu e a minha solidão.  Nela, cavalgo a galope na esperança de encontrar, no meio do caminho, a luz dourada que me tire dessa fria escuridão, que me traga a ardência solar e claridade para me despertar.

Há algo de estranho no ar. Há sim. Ah, sim!

 

Acordo

 


Em dias cinzas, o melhor é ficar em casa. Era sempre assim. A liberdade era ceifada com uma única frase. Quer coisa pior que não poder correr pelas ruas em brincadeiras inventadas? Tortura para um moleque que sempre estava com pressa. Infringia sempre. Apanhava sempre.

Hoje, o dia chegou cinza chumbo. Lembrei-me da frase tantas vezes repetidas. Hoje, gostaria de ouvi-la novamente, só para ficar em casa entrelaçado com os meus pensamentos.

Em dias tristes, aguados, gosto de ficar no meu quarto. Não estou nem aí se o que sinto está na lista dos sete pecados. Quero mesmo é estar com os meus pensamentos, com os meus segredos, com o meu silêncio quase solidão; gosto, nesses dias quase mortos, ressuscitá-los com os meus lápis de cor.

Hoje, o dia chegou, sussurrando em minha orelha, pedindo pra ficar na cama, transgredindo, sendo cúmplice de seus pecados.

Peguei o celular e mandei uma mensagem: - Por motivo de força maior, não poderei cumprir com o nosso compromisso. Vamos marcar, mais tarde, para uma outra hora.

Quer saber, em dias cinzas, o melhor é ficar em casa. Simples assim.

Estado de ...

 

E quando tudo está uma bosta?!  Acordei num espreguiçar malandro, sem a menor vontade de levantar. Tentei enganar o tempo cerrando os olhos e escurecendo o dia com o lençol amassado cobrindo a minha cara. Fiquei por uns minutos na posição fetal tentando expulsar a minha alma para um outro plano. Queria o levitar do sono; queria um sonho sem me importar com as teorias freudianas ou junguianas – só queria a paisagem de um sonho qualquer.  Precisava, com certeza, era ganhar tempo, mesmo que fosse com um pesadelo que me levasse para longe daquela realidade de merda.

Não funcionou. A realidade estava mais acordada que nunca. Tinha direção certa. A rota estava traçada.

Sentado à beira da cama, cocei a cabeça, contei as manchas antigas encrustadas no assoalho e, por um longo tempo, acreditei que estava sonhando. Mas se fora um sonho, ele acabara no momento em que a água morna batera nas minhas costas. O chuveiro sempre fora meu companheiro nas melhores e piores horas. Não diria o mesmo do espelho. Sempre frio e impiedoso. E foi nele que encarei a verdade.

Aqueci o corpo e tingi a alma com uma caneca de café. Assumi o meu fracasso; assumi a minha solidão e transformei a tristeza em esperança. Rasguei o silêncio com as minhas músicas preferidas. E como um alquimista amador, transformei a bosta em fertilizante.

Gritei:

- Obtuso é o caralho!

Certeza

 


O dia acompanhou a noite e a água continuou a lavar a terra e a alma deslavada dançou nua no acinzentado terreiro. Pés descalços, peito nu e sorriso escancarado. A esfinge que fingia ser uma simples mulher, batia suas asas criando um vendaval. Mas o corpo, quase nu, rodopiava lutando contra o vento que vinha do Sul e a falsa mulher sucumbiu-se, dobrando-se diante da pureza que rodopiava de braços abertos no centro da terra molhada. E a noite recebeu o dia encharcado de esperança.

Sob a lua, sobre nós

 


De repente a lua azul pousa no pico da montanha. A imagem, vista da minha cama, provocou-me um suspiro profundo e uma vontade danada de estar ao seu lado. Pena… estou isolado de tudo e de todos – culpa da peste que não quer ir embora e se aproveita da estupidez humana, que insiste em ignorá-la, para mutar a cada instante.

Sabe aquela canção do Roberto que diz: minha alegria é triste? Pois é, estou assim nesse mundo diferente, cheio de estranhezas e lágrimas. Está bem nem tudo é triste nem tudo é tão estranho assim. A lua azul, por exemplo, é alegria espontânea; o ser mais ranzinza do mundo – que não sou eu - vai esquecer da sua condição de ser chato para admirar essa coisa de Deus.  Hoje, não causa estranheza a ninguém, ver e ouvir um líder de um país regurgitar suas demências e suas maldades. Quem mandou colocá-lo no poder! Não é mesmo?!

Mas esse texto não é para falar de mediocridades. Depois de tanto tempo sem escrever uma linha sequer, não faria isso comigo tampouco com você.

Sim, a lua é merecedora de estar nos poemas de Fernando Pessoa, Cecília Meireles, Mário Quintana, Vinicius e de tantos outros; ela é merecedora de estar nas canções de Caetano, Gil, Exaltasamba, Chico Buarque e muitos outros.  Ela é merecedora de contemplação em todas as suas fases e cores. Quem não fica paralisado, mesmo que seja por alguns segundos, quando a lua de sangue ocupa o palco celeste? 

Comecei o texto, dizendo que queria estar ao seu lado para contemplar o luar. Comentei sobre a nossa condição atual, do distanciamento imposto, de canções e poetas.

Comecei o texto pensando em você e vou terminá-lo pensando em você.

A lua é cheia, não é azul. Mas ainda assim, aparece sempre linda do meu quarto, provoca-me suspiros e lembranças de ti. Embora não seja um dançarino, arriscar-me-ia alguns passos de bolero com a canção de Adoniran e Hilda Hilst: Quando te achei.

Ah! once in a blue moon... que a expressão não seja verdadeira para nós dois. E que possamos amar na urgência do luar.