Lua amiga

 










A Lua encantava as noites quentes de verão. Adorava aquela convivência quase tribal. As esteiras de taboa improvisavam os nossos colchões. Todos no quintal, de papo pro ar, numa prosa sem fim. Observava as estrelas sem a pretensão de entendê-las, apenas as observava com olhos de menino. Os olhos no céu e as orelhas nas conversas dos adultos.

- Paulinho, tá vendo a Lua? Essa é Claudia, querendo compartilhar a emoção de vê-la brilhando no seu céu.

- Paulo, a Lua está tão linda. Você consegue vê-la daí? Essa é Irene a mais de cem quilômetros de distância compartilhando sua alegria lunar.

Ainda hoje, a Lua encanta as minhas noites de verão. Hoje, a Lua está em quarto-crescente – gosto de vê-la se transformando a cada noite até está totalmente cheia e linda. Hoje, já não deito em esteiras de palha. Aconchego-me na rede, observo as estrelas e a Lua e adormeço embalado por ela.

Ainda hoje, olho para o céu com os olhos de um menino.


Certezas

 











O vento chegou forte. Corri para fechar as janelas e portas. Com ele, veio a chuva. Com ela, vieram as trovoadas e relâmpagos rasgando o céu cinzento. Durou menos de uma hora, mas o suficiente para que as lembranças antigas brotassem da minha mente.

Os espelhos eram cobertos, as tesouras eram guardadas, as tomadas dos aparelhos elétricos eram desplugadas e o fósforo e um maço de vela ficavam esperando em cima da mesa caso a luz fosse embora de repente. Geralmente ia.

Engraçado, depois de décadas a eletricidade ainda cai quando há relâmpagos. É claro que desligo tudo, no entanto, as velas foram substituídas por lanternas.

Confesso que em dias assim de muita chuva, fico mais absorto, desligo-me do caos lá fora e visito os mais profundos dos pensamentos. Lembro-me dela rezando baixinho a cada trovoada ou relâmpago. Achava estranho um adulto sentir tanto medo de uma coisa tão natural. Hoje, entendo o seu pavor. Só quem passa por determinadas situações provocadas por temporais sabe a força que a natureza tem.

Um dia desses, Gabriela – amiga do trabalho - alertou-me sobre as quedas frequentes de energia na cidade e que era interessante eu usar aparelhos contra surtos de energia. Saí comprando vários desses dispositivos. Melhor prevenir que remediar, já dizia os antigos.

Sempre que chove forte na cidade, Maria liga pra saber se está tudo bem comigo. Antes, achava divertida tamanha preocupação. Hoje, se ela não liga sinto falta. Só quem passa por determinadas situações sabe a força que uma amizade verdadeira tem.

Estou aqui, escrevendo o texto e esperando o celular tocar. Sei que ele vai tocar.

Cena

 













Ele olhou pra mim e metralhou:

- Veja bem! Não estou nem aí pra determinadas coisas. Faço-me de desentendido pra não me aborrecer com tanta imbecilidade. Quem conversa com porta é maluco.

"Quem dera fosse verdade!"

Continuei a ouvi-lo. Falou de futebol, do trânsito, de políticos, praguejou a sua ex-mulher, reclamou do filho mais velho e de repente:

- Você não fala muito né?

Olhei para aquela cara vermelha de nariz pontudo e o respondi com um sinal apontando para minha garganta e falando baixinho e rouco:

- Garganta inflamada.

O vermelho abanou o braço pra cima, resmungou alguma coisa e saiu falando sozinho.

Olhei sério para o dono do bar do outro lado do balcão, e depois de alguns segundos, danamos a rir.

Falei alto e bom som:

- Desce uma cerveja bem gelada pra tirar a poeira da garganta.

A mocinha sentada perto de  mim exclamou:

- Vixe! dá trela pro senhor vê.

Gargalhei mais uma vez.

Cotidiano

 



 





Não dá mais pra adiar. Entro na cozinha e vejo a louça empilhada na pia. Não tenho problema em lavar louças, até gosto. Mas tem dias que até o que gosto quero longe de mim. Como dizem por aí que quem canta seus males espanta, ligo o som e começo a lavaria – emulsificando os engordurados, dando brilho no inox. Em poucos minutos tudo lavado; a harmonia sempre volta depois do caos. Um suspiro de alívio e um sorriso de satisfação sempre chegam depois de uma tarefa feita.

Quando posso, adio mesmo. Os amigos não contam mais comigo. Convidam sabendo que dificilmente irei. Eventos corporativos nem pensar. Festinha de empresa de final de ano quando aparecia era por pura obrigação, nunca por educação. Na primeira oportunidade saía à francesa. Hoje, nem uma coisa nem outra. Simplesmente digo não. Deixo os burburinhos para os outros. Adoro meu silêncio, minha rede, minha varanda e meus livros.

Ultimamente ando procrastinando quase tudo: em visitar uns, em receber outros. Estou sempre adiando alguma coisa. Não é mesmo, Maria?!

Hoje a natureza foi minha cúmplice. A listinha de tarefas foi adiada porque choveu pesadamente e continua. Restou-me escrever o texto, assistir alguns filmes e até ligar pra a amiga Irene.

Agora estou aqui ouvindo a chuva batendo na calçada. Incidental nesse meu mundo tão previsível.

Realidade

 













Os meus sonhos recorrentes sobre a matemática cessaram faz um tempinho. Espero que seja pra sempre. Era o mesmo sonho por décadas. Se tivesse que escolher, preferiria os pesadelos com palhaços – nunca gostei da imagem desses mascarados. A palhaçaria que me perdoe, mas que dá medo... Ah! isso dá! A taquicardia causada pelo pesadelo sobre a matemática era tão forte que ao acordar não conseguia dormir de novo, era uma confusão entre o real e o virtual.

A velha gorda, moradora da casa antiga, sentada numa poltrona puída próxima à janela continua aparecendo – no entanto não me causa medo, mas pena!

Um quintal claro, florido, tão lindo e ela à sombra daquele ambiente melancólico e empobrecido. Será castigo? Punição? Um tipo de autoflagelação? Toda vez que tenho esse sonho, acordo pensativo. Pois, não consigo ver o seu rosto. Tenho a impressão que a conheço, que a velha gorda pertence ao meu passado. Não o meu passado de infância onde as mulheres eram extravagantes, quase fellinianas. Um passado mais recente. Será que ela existiu e eu apaguei da memória e agora me aparece fragmentada? Sei lá! Mas que ela é esquisita não tenho dúvidas. Será que a velha gorda, com aquele cabelo escorrido é um fantasma?!