Cotidiano

 



 





Não dá mais pra adiar. Entro na cozinha e vejo a louça empilhada na pia. Não tenho problema em lavar louças, até gosto. Mas tem dias que até o que gosto quero longe de mim. Como dizem por aí que quem canta seus males espanta, ligo o som e começo a lavaria – emulsificando os engordurados, dando brilho no inox. Em poucos minutos tudo lavado; a harmonia sempre volta depois do caos. Um suspiro de alívio e um sorriso de satisfação sempre chegam depois de uma tarefa feita.

Quando posso, adio mesmo. Os amigos não contam mais comigo. Convidam sabendo que dificilmente irei. Eventos corporativos nem pensar. Festinha de empresa de final de ano quando aparecia era por pura obrigação, nunca por educação. Na primeira oportunidade saía à francesa. Hoje, nem uma coisa nem outra. Simplesmente digo não. Deixo os burburinhos para os outros. Adoro meu silêncio, minha rede, minha varanda e meus livros.

Ultimamente ando procrastinando quase tudo: em visitar uns, em receber outros. Estou sempre adiando alguma coisa. Não é mesmo, Maria?!

Hoje a natureza foi minha cúmplice. A listinha de tarefas foi adiada porque choveu pesadamente e continua. Restou-me escrever o texto, assistir alguns filmes e até ligar pra a amiga Irene.

Agora estou aqui ouvindo a chuva batendo na calçada. Incidental nesse meu mundo tão previsível.

Realidade

 













Os meus sonhos recorrentes sobre a matemática cessaram faz um tempinho. Espero que seja pra sempre. Era o mesmo sonho por décadas. Se tivesse que escolher, preferiria os pesadelos com palhaços – nunca gostei da imagem desses mascarados. A palhaçaria que me perdoe, mas que dá medo... Ah! isso dá! A taquicardia causada pelo pesadelo sobre a matemática era tão forte que ao acordar não conseguia dormir de novo, era uma confusão entre o real e o virtual.

A velha gorda, moradora da casa antiga, sentada numa poltrona puída próxima à janela continua aparecendo – no entanto não me causa medo, mas pena!

Um quintal claro, florido, tão lindo e ela à sombra daquele ambiente melancólico e empobrecido. Será castigo? Punição? Um tipo de autoflagelação? Toda vez que tenho esse sonho, acordo pensativo. Pois, não consigo ver o seu rosto. Tenho a impressão que a conheço, que a velha gorda pertence ao meu passado. Não o meu passado de infância onde as mulheres eram extravagantes, quase fellinianas. Um passado mais recente. Será que ela existiu e eu apaguei da memória e agora me aparece fragmentada? Sei lá! Mas que ela é esquisita não tenho dúvidas. Será que a velha gorda, com aquele cabelo escorrido é um fantasma?!

A chuva

 


Antes que a chuva caia. Todo verão era sempre o mesmo mantra: Volte antes do temporal, ouviu! Era quase certo termos chuva no finalzinho da tarde – a famosa chuva de verão.

Estávamos quietos, deitados no chão da sala, cada qual com seu pensamento, quando o céu rompeu o silêncio num estrondo absurdo anunciando temporal. Não demorou pra chuva chegar molhando a vida.

Levantamos daquele sossego quase espiritual e fomos direto para a cozinha fazer o café da tarde. É quase um ritual prepará-lo; grãos torrados moídos na hora, passado com a água quase fervendo pelo coador de pano. A casa sempre fica impregnada com aquele aroma de café vindo da serra de Minas gerais.

Comecei a voltar no tempo, falando das chuvas que marcaram a minha infância. Ríamos de minhas travessuras, de histórias de outras pessoas testemunhadas por mim, ou simplesmente ouvidas por um garoto curioso.

Contei da minha estratégia quando o trânsito ficava parado por causa da chuva. Descia do coletivo na primeira oportunidade e parava num bar ou qualquer outro lugar que tivesse cerveja. Esperava de gole em gole a chuva passar, o trânsito fluir.

Quando a perguntei se tinha lembranças sobre a chuva, ela disse-me que adora sentir a água da chuva lavando seu corpo numa tarde quente de verão. Que o cheiro da terra molhada entrava pelos seus poros e a transportava ´por uma época alegre e ingênua. E Num suspiro profundo concluiu: Mesmo sendo caça de olhos famintos!

Voltamos pra sala e silenciosamente ficamos ouvindo a chuva lá fora. Certamente ela passará!