Delírios


Lá estava ela sorrindo. Sorria pra mim, pra mais ninguém. Eu era um homem de sorte, aquela boca e aquele olhar exclusivamente meus. Andamos de mãos dadas, caminhamos de pés descalços na areia da praia – ela tem uns pés lindos.
Afaguei seus cabelos, madeixas aveludadas que acariciavam as minhas mãos. Ganhei na loteria e não sabia.
O céu era mais azul, a tarde era mais sedutora. Fogueira na praia ao anoitecer, estrelas desenhando figuras exclusivamente nossas!. Batizamos cada uma delas.
Tudo perfeito. A brisa, suave, batia em sua pele fazendo-a sentir um pouco de frio. Cedi-lhe a minha jaqueta – eu era forte.
Tudo perfeito. Cenário perfeito. Mulher perfeita. Casal perfeito. Olhava para os lados e não conseguia ver ninguém conhecido, como poderia ser tão perfeito e nenhum conhecido, nenhuma câmera e nenhum celular para registrarem este momento único.
Vejo um vulto e vou até ele. Quem sabe não tem uma câmera? Nada. Ilusão de ótica.
Ela se afasta. Vai se afastando. Cada vez mais longe. Tento correr mais a areia molhada impede os meus movimentos. Caio, me arrasto, engulo a água salgada... tento me levantar e, quando consigo não mais a vejo. Ela some na neblina densa. Fico louco, grito: Juliaaaaaaaaa!!! Juliaaaaaaaa!!!! Silêncio. Ela não mais está em meu sonho. Acordo assustado e vejo a televisão ligada e os créditos finais de Sleeping with the Enemy
Eu já tinha visto este filme antes.

Paulo Francisco


Eu sempre falei palavrão

Eu sempre falei palavrão. Quando criança, criança mesmo, com uns sete anos de idade, mais ou menos, já sabia todos os palavrões existentes. Eles ficavam na minha cabeça, nos meus pensamentos, na minha vontade.
Nunca escutei um palavrão saindo da boca de minha mãe e nunca ouvi um palavrão dito pelo meu pai. Então, como tão pequeno sabia tantos palavrões e seus significados? Simples: eu era moleque-de-rua. E continuei sendo moleque de rua por muito tempo. E era na rua que sentia as asas da liberdade. Voava alto em vocabulários chulos e poderosos.
Mas este fato de não ouvir e não poder falar nenhum tipo de palavra chula em casa me deu o equilíbrio em vocalizar de acordo com o ambiente em que eu estava ou estou, não porque eu ache que palavrão seja uma coisa feia, muito pelo contrário, às vezes, o palavrão pode vir carregado de emoção, seja na amizade ou no amor.
Não dá pra ser politicamente correto, por exemplo numa transa, aliás, ser politicamente correto numa transa é rechear entre beijos e mordidas, palavras, palavrinhas obscenas e, usando o jargão de uma amiga blogueira – a Margoh, digo: Adooooooooro!.
Quer saber!? Desonesto é transar no silêncio e virar de lado depois do ato.
Falar a mulher amada, ou ouvir dela, palavras um tanto quanto misturadas às palavras de amor é como pimenta numa peixada; é a cereja da torta - dá sabor e cor.
Hoje, eu ouço palavrão em qualquer lugar, usam o palavrão como vírgula, reticência – perdeu a graça infanto-juvenil da minha época de rebelde sem causa. Não que eu não os diga mais, ao contrário, faço uso deles em diversas ocasiões. Mas me incomoda quando ouço, por exemplo, um palavrão fora do contexto, dito simplesmente por dizer, sem nenhuma necessidade. Neste caso ele deixa de ser uma obra de arte num canto especial da sala para ser uma peça de louça comprada numa loja de produtos chineses.
Sinto muito... Falo obscenidades, concretizo em palavras os meus pensamentos e desejos. E daí? Dizem que a feiúra está na cabeça de quem escuta.


Paulo Francisco

Bailado

A dor já morava em seu corpo. Ela se contorcia; se esticava languidamente. Ninguém percebia seu sofrimento, a sua dor. Nada poderia dar errado! Cabisbaixa, em passos lentos e longos, desfilava naquele piso de madeira. Era única na arte do silêncio. De repente uma corrida em circulo, seus braços abertos pediam socorro, mas nenhum ruído além de uma suave música imaginária. Ela estava só. Só com seus pensamentos e desejos; só com sua técnica de pular, rodar, correr e sofrer sozinha. Um pulo e um susto - ela caíra desfalecida naquele negro piso. E depois de alguns segundos movimentava-se suavemente, esticava-se num espreguiçar gostoso de quem acordara de um lindo sonho e começava a rolar, a rolar, a rolar... cada vez mais rápido. A coreografia frenética se transformara num desesperado ataque de ombros e pernas – uma convulsão. Um total silêncio se fazia naquele ambiente tão hostil. Ela parara, ficara imóvel. Morrera!Tudo se tornara negro.
E quando a branca luz retornava, centenas de expectadores aplaudiam de pé a bailarina contemporânea.





Paulo Fancisco

Lágrimas


Quando olhei pra fora da janela, percebi uma cortina fina e silenciosa de chuva. Um choro miudinho escorrendo do véu da noiva – Pensei."Casamento de viúva!" Exclamei quando vi o sol rasgando a cortina de lágrimas. Mas, subitamente, o sol se foi e o choro miúdo se transformou em berros e soluços. "O noivo não compareceu!" disse rindo da frase inesperada.
É sempre assim, chove e eu me encolho, não de medo, mas para observar o seu bailado. Adoro ficar olhando para ela. Imagino-a bailarina.
Bailarina que me hipnotiza, bailarina que me fascina; Carmem e seus amores.
Como era de se esperar, choro exagerado, alívio imediato.
O sol novamente desponta. Seus raios refletidos nas poças criam manchas coloridas, manchas que aos poucos desaparecem; machas surgidas nas poças de lágrimas da noiva

Paulo Francisco

Pé-de-moleque

Pé-de-moleque. Foi assim que chamei uma mangueira repleta de meninos e meninas uniformizados perto de uma escola.
Lembrei-me, também, de minha infância, quando subíamos nas árvores frutíferas e fazíamos uma farra danada. Ficávamos pulando de galho em galho à procura das frutas mais maduras. Poderia ser uma caramboleira, uma cajamangueira, um jamelão, uma mangueira de carlotinha ou espada. As goiabas e os jambos eram roubados silenciosamente da vizinha rabugenta.
Hoje minhas reuniões não são mais em árvores frutíferas, mas em lugares mais apropriados para homens de minha idade - nos reunimos em bares. A algazarra é quase a mesma, principalmente em dias de futebol. As frutas foram substituídas por cervejas, vinhos e outras etílicas.
Os galhos que são pulados agora, são os empregos, sempre à procura de um mais resistente, que não quebre com tanta facilidade. E as frutas roubadas foram substituídas por cargos de chefia cobiçados.
Quando olho para trás, vejo tantos futuros perdidos, tantos futuros em lápides prematuras.
Quando olho para trás vejo meu futuro se construindo através de livros, castigos e sonhos.
Hoje, não reclamo do pouco que tenho, porque sei que é muito diante de tantos moleques perdidos entre armas e drogas.
Quando olho para a mangueira que mais parece um pé-de-moleque, penso qual deles sobreviverá para relembrar das frutas furtadas.





Paulo Francisco