Passagem





Tirei o edredom do varal e levei a esperança pro meu quarto.  Sim, de quando em vez a esperança entra em minha casa e canta para me acordar. Era uma esperança pequena, nasceu com certeza nesta primavera. Deixei-a livre, pousada no tecido florido. Não expulso nada que em mim habita - deixo fluir.  Como eu poderia, por exemplo, expulsá-la, se tenho na minha pele a marca da sua existência?

Ela ficou parada por um bom tempo no edredom dobrado. Mas quando dei por mim, a visitante já tinha ido. Na maioria das vezes abria os meus olhos e já não as encontrava mais ao meu lado.  Voavam certamente para outras paragens, pois por aqui, nunca foi somente mar de rosas, tem sempre algo para ser dobrado com certeza.

Dobrar e ser dobrado. Não sou tão difícil de ser dobrado, principalmente quando a esperança está pousada em mim.  Ela não me entendeu quando disse que não queria ficar preso a nada e que as minhas asas estavam sempre esticadas na horizontal e nas alturas.  Criou-se naquele momento uma desesperança em seu coração.  Pra muitos, se o coração não está preso, está despedaçado. A esperança voou para outra paisagem certamente.  Eu sei que faz parte da vida as chegadas e partidas.

A vida é de idas e de vindas. As borboletas coloridas, por exemplo, que visitam a minha varanda todas as manhãs à procura de néctar, se decepcionam quando se deparam com as flores de plástico e a água açucarada em frasquinhos decorativos, mas não aprendem e estão sempre voltando.  Possivelmente na esperança de um dia encontrar um vaso com flores verdadeiras. Outros que estão sempre por aqui à noite são os besouros e as mariposas em busca de luminosidade. Contrários dos predadores noturnos que basta uma lua pra vida ser doce, eles não gostam da escuridão.

Pensando bem, eu também não gosto da escuridão. Eu gosto da noite, da poesia que ela me recita, da possibilidade que ela me dá em imaginação e som. É... gosto da noite iluminada pelos olhos da lua, das madrugadas  que dançam ao som do vento, gosto de olhar pelo buraco da noite as silhuetas das montanhas e árvores que me cercam e me fascinam.


Nos meus passeios noturnos sempre tenho a companhia da dama da noite e a esperança pousada em mim.


Paulo Francisco

Recomeço



Voltei! Neste movimento elíptico sou um errante. Ando em círculos bêbados. Não sei andar em paralelas estreitas. Volto pra casa sempre atordoado querendo paz. Já não gosto da zonzeira etílica. Já não sei sonhar em almofadas de bali - já não quero mais. Volto ao passado criado em fumaças esverdeadas. Volto em pontos aproximados. Não tenho marco. Sou trapo remendado. Sou colcha de retalhos. Sou peça que encaixa em caixas de madeira. Sou infância imperfeita. Sou o espaço entre o violino e o piano. Sou a voz de um coral de todos os cantos.

Voltei ! Para a imprecisão retida. Para o centro da vida.

Voltei para o recomeço

Voltei para o imperfeito

Voltei em movimentos elípticos

Vago em pensamentos errantes

Volto pra terras flutuantes

Aqui eu tenho paz.




Paulo Francisco

Pra dizer adeus




Vem nem que seja só pra dizer adeus. A cantora num duo cantava melancolicamente a canção. Fiquei com a frase em minha cabeça e, cada vez que pensava nela, meu coração disparava. Fiquei perdidamente entristecido na possibilidade de um dia isto acontecer comigo. Aço só o super-homem, eu sou feito de células, tecidos e órgãos vitais – sou um eucarionte. Meus sistemas se interligam. Meu coração pulsa e jorra vida e, sem ele não sou nada. No meu peito não tem um esse de super, tem todo alfabeto que represente o amor que tenho por ela. Sou de carne e alma. Sou humano e como tal, sou um possível sofredor de amor.

Não, não venha pra me dizer adeus. Venha pra me fazer um aconchego, me colocar em seu colo e me mimar de afetos. Venha, venha sim, me fortalecer com seus carinhos e cheiros.

Aceitar um adeus quando ainda se ama é fatal. Morre-se numa sessão de tortura chinesa – é palito de bambu na unha. Descobre-se que o castelo era de areia e o calor que te aquecia agora te queima como gelo.

Venha nem que seja só pra dizer adeus. E eles disseram adeus. A canção não saía de minha cabeça.

É certo que numa relação fragilizada a possibilidade de um adeus é forte. Basta a indecisão de um dos pares. Numa dupla a sincronia é vital. Não existe a batalha do eu sozinho.

E este amor tão frágil precisa fortalecer-se pra que não haja adeus.

Trago em meu peito o seu nome, não sou eu quem vai dizer adeus.

Trago em meu peito a certeza de você, não sou eu quem vai dizer adeus.

E a musica não acabava... Repetia-se em minha cabeça, deixando-me mais inseguro que aquele amor. Amor de papel, com pouca base; amor ainda em construção; amor em gema que não se transformou ainda em botão. Como florir?

E no final da canção o silêncio se instaurou em mim. Mas como eu já dissera, tenho alma. Corri para o telefone e disse com todas as letras: ¨ Te amo.¨

Ela não atendeu para me dizer adeus. Ela não me disse adeus. Simplesmente sorriu. Sorrimos juntos até a próxima canção.


Paulo Francisco

Noturno



O meu céu sempre será da cor do metileno. Terá sempre brilhos estelares em signos. Não consigo ficar sem a vida noturna. Posso até acordar cedo, mas a noite é minha menina. É nela que piso em letras. Adoro observar os notívagos que vagueiam em destinos diversos em luzes artificiais. Não sei se a luz natural me cega, mas é com a luz artificial que mais enxergo.

A penumbra é de certa forma, o véu cor-de-chá da noiva romântica; o véu rendado da viúva negra; o véu vermelho que cobre a cabeleira da cigana. A penumbra é a claridade dos notívagos. É nela que surgem os personagens marginais de uma sociedade fascista.

É na penumbra que encontro carros em velocidade mínima, com faróis baixos, pneus quase arriados em desejos encubados; é na penumbra que o senhor distinto em seu terno, aperta a coxa da trabalhadora vadia; é na penumbra que duas mãos trocam interesses mútuos. É entre o claro e o escuro que a outra metade aparece.

Embaixo deste céu noturno, todas as bocas são vermelhas; todos os seios são duros; todas as pernas em saltos, ou não, são tortas. No azul de metileno, todas as cores são pardas, e todo gato tem seu peixe pra vender.

Neste céu insone, faço e refaço caminhos estrangeiros; colo panfletos em postes encarnados; quebro vidraças alheias; banho-me em chafariz iluminado por luz neon; piso em pétalas quebradiças; durmo em caixa de papelão; fumo pontas de cigarros perdidas no chão.

Neste céu de duas luas, encontro-me sempre numa encruzilhada romântica. Entre o bem e o mal, carrego sempre o meu pão embrulhado em papel de seda e, no meu terço de couro, tem cinquenta e cinco contas, cada uma numa cor.

O meu céu sempre será da cor do metileno. Terei sempre almas para destecer.



Paulo Francisco


Manhã






Eu já tive medo do escuro. Sim, morria de medo do escuro, ficava vendo coisas. Depois descobria que era uma roupa pendurada, um chapéu no espaldar da cadeira. Mas tinha uma coisa comigo: nunca disse a ninguém que tinha medo. Segurava sozinho. Menino não demonstra medo; menino não chora.

Absurdamente não chorava; absurdamente não declarava os meus medos – e eram tantos. Cresci e continuei achando que homem não podia chorar e nem tampouco sentir medos. Acabei numa paranóia que hoje chamamos de síndrome do pânico. Detalhe: tive que me curar sozinho. Sabe aquela coisa de que homem não chora, não pode ter medo? Pois é, foi com estes princípios que curei a minha paranóia. Custou. Custou-me anos de solidão, mesmo cercado de gente que me amava; custaram-me amores; custaram-me amizades. Custou-me a liberdade que tanto primava.  Então, resolvi que tinha que sair daquele buraco negro. Entretanto o que fazer, se não pedia ajuda a ninguém? Pois bem, resolvi tirar as garras do monstro de minhas entranhas, fazendo o inverso. Passei a frequentar lugares obscuros não por prazer e sim por desafio.

Conheci o outro lado da história e quase fui sugado por ela. Porém o que me curou mesmo foi ter admitido que sentia medo e que podia chorar sem culpa. Aí, a dor surgiu tão aguda que o meu próprio grito atingia o meu peito como farpa longa e pontiaguda. Aprendi a sofrer e gritar. Nunca mais escondi os meus sentimentos. Hoje já não sofro como antes. Sofro, sofro sim: por amor, por saudade, pelos outros. Sou feliz por amor e por lembranças. Hoje, sou tão normal quanto qualquer pessoa.  Sinto raiva, a indignação ainda me pertence e os medos são tão naturais que o meu choro deixou de ser miúdo para ser declarado Eu já tive medo do escuro.Hoje meus olhos clareiam qualquer caminho.



Paulo Francisco