Relação

Você me tira do eixo! Ela disse a frase e bateu a porta.
Eu fiquei ali, olhando a barreira de madeira, pensando no que fazer para contornar aquela situação. Pensei: ¨ Eu a tiro do eixo! ¨
Como uma pessoa pode sair tão rápido do seu centro por causa de uma frase ou de uma palavra? Às vezes, o melhor é concordar e pronto. Tudo fica calmo, tão calmo que a monotonia invade.
Não, gosto de ventanias, de chuvas torrenciais.
Gosto da angústia da espera, mesmo na certeza da chegada.
Gosto do café bem quente, pra poder assoprar antes de sorvê-lo
Gosto do segredo, do secreto, mesmo que todos já saibam
Como eu a tiro do seu eixo? Como eu consigo descentralizá-la? Se eu disser que a amo, pronto, ela enruga a testa e fica me analisando, porque eu disse aquilo, àquela hora, sem mais e sem menos. Passa o dia todo, olhando-me desconfiada, enviesada; se passo batido uma data comemorativa, greve de dias; se digo que estou cansado, a casa cai.
Se não elogio o seu cabelo novo quase que semanal, eu não me importo; mas se elogio, lá vem a frase: o que está acontecendo?, você não é disso!; Se mando flores, recebe desconfiada, se não mando, não sou romântico. Se telefono no meio do expediente, pergunta onde estou, se fico sem ligar, não me importo mais.
Às vezes o melhor é concordar e pronto. Mas como eu já disse a monotonia invade. Praia sem ondas é banheira; céu sem estrelas é buraco negro. Eu sem ela, primavera sem flores.
"Você me tira do eixo!" Ela disse a frase e bateu a porta.
Eu estou aqui, olhando a barreira de madeira, pensando quando ela vai voltar, para eu entregar o seu presente de aniversário.
E tudo isto aconteceu porque fingi não me lembrar da data.
Mas o que seria desta comemoração, sem um pedido de perdão? Dela é claro!!!



Paulo Francisco
¨

Eis a questão

O que faço com esta sensação de perda? Já perdi tanto nesta vida. Já entrei em coma e ressuscitei - me tantas vezes que perdi a conta. Deixei de ver o nascer da primavera; de ter os arrepios de um inverno rigoroso. O que eu faço quando a solução não está em minhas mãos? Visto o meu terno cinza e vejo o meu túmulo em mármore?

O que faço com este movimento interno que me tira do prumo? Equilibro-me? Envergo-me?

Não sei...

As linhas de minhas mãos ainda estão fortes. Meu caminho ainda tem algumas paradas. Tenho que continuar minha viagem, mesmo sabendo que a volta é sempre para o mesmo lugar. E esta sensação de peito rompido? E este barulho repetitivo de asas de odonata presa em minha cabeça? Se cubro os ouvidos, um zumbido aparece ecoando em minha cabeça; se cruzo os braços, na esperança de colar a pele rompida, eles ficam presos e não querem mais voltar a se movimentar.

Quero de volta a sensação de paz que me rodeava e eu nem ligava. Quero a sensação do frescor de um sorriso vermelho, mesmo que me mordesse de vez em quando.

Quero a pele humana me esquentando nas madrugadas de zero grau. Quero ser guiado por pensamentos lascivos. Acordar de um pesadelo e ter ao lado quem me diga: ¨ durma de Novo!¨
O que fazer quando seu corpo grita em silêncio por perdão?

Não sei...

Termino este texto sem saber o que fazer pra voltar pro meu quarto, depois de ter sido expulso de minha cama, simplesmente porque ri de seus cremes.

Tudo bem! Adoro meu sofá.


Paulo Francisco

Além de meus olhos

O que não era meu, aos meus olhos parava. Olhava admirado o que não estava ao meu alcance; achava lindas as cores vivas das outras casas e que na minha ainda não tinha sido pintada pelas mãos de quem cabia. O branco é bonito, mas sempre preferi o azul.

Namorava pela grade, do lado de fora, os jardins das casas bonitas de dois andares existentes em minha rua – chamavam-nas, na época, de ¨duplex¨. ¨Os ricos moram lᨠdizíamos sorrindo e já correndo depois de tocar clandestinamente as sua campainhas.

O meu melhor amigo tinha uma casa simples. O meu segundo melhor amigo tinha uma casa simples. O meu terceiro melhor amigo tinha uma casa simples. O vigésimo quinto melhor amigo tinha uma casa simples. Eu morava numa casa simples – uma casa ¨simplex¨. As nossas campainhas não eram tocadas e sim gritadas pelo nome de quem queríamos falar.

Nunca soube como era ser um menino morador de uma casa de dois andares e com um imenso jardim à sua frente – eles não se misturavam com gente como a gente. Olhavam-nos por cima, sentados em suas sacadas e varandas enfeitadas.

As nossas sacadas eram as mangueiras, goiabeiras, caramboleiras e tantas outras. Avistávamos o horizonte comendo os frutos da época. Lambuzávamo-nos em sonhos escorridos.

Éramos um bando de pés cascorentos  e de bocas sujas que vadiavam pelas ruas e campos, com sacos de bolas-de-gudes, pipas ou pião de madeira, dependendo da ordem do dia. O vento era o nosso caminho.

Não tínhamos os melhores sapatos, nem precisávamos, tínhamos asas em nossos pés que nos levavam para junto dos pássaros; não tínhamos as melhores roupas, nem precisávamos, tínhamos os nossos peitos nus para amparar o vento e refletir o sol.

Não nos protegíamos da chuva em varandas enfeitadas com mesas e cadeiras de ferro pintado de branco; éramos os próprios pingos respingando o mundo – éramos a sua chuva de todos os dias em seus caminhos secos e sombrios.

O menino branquinho, impecavelmente vestido, ficava nos olhando pela grade de seu portão; a menina de cabelos cacheados, na sacada de seu quarto, nos olhava assustada, com sua boneca enfeitada em suas mãos; no interior da sala, um casal de frente para a televisão – Família perfeita, nenhuma confusão.

O que não era meu, a minha alma pertencia. Desejava intimamente as cores do mundo.

Calava-me diante da incerteza e sorria com o que restava perante meus olhos. O sorriso é o melhor remédio para as dores embutidas.  Resguardava em silêncio o que desejava em sonhos.

Éramos construtores de sonhos e reciclávamos os nossos dias – transformávamos o nada em tudo.  E tudo era divino e maravilhoso como o chocolate comprado aos domingos.

Sempre que passava pela rua enfeitada de casas bonitas, eu sorria para aquele garoto branquinho que me observava atrás das grades do portão -  ele retribuía-me com um tímido aceno.

Estava indo para o meu compromisso de domingo. Ele, eu não sabia o que fazia às tardes dominicais. Nunca o vi no cinema, nunca o vi no circo, ou brincando com um amigo sequer.

Talvez ele fosse uma criação; uma coisa imaginada, parada, aos meus olhos de menino.



Paulo Francisco

Tudo ou nada a ver

Um dia desses, estava esperando o ônibus, encostado à parede, lendo um livro, quando percebi que todos que ali estavam tinham a mesma cara – de tédio.

Ninguém gosta de esperar. A espécie é aflita. Todos querem chegar logo ao seu destino, seja ele seu lar, sua escola ou trabalho. Não importa se o destino é agradável ou não. O mais importante é chegar, chegar logo. O homem não gosta de ficar parado; ele não pode ficar parado – ele se desequilibra e cai.

Na vida temos que chegar a algum lugar.

Quando é domingo eu quero que chegue logo a sexta. Mas como não é possível pularmos de um dia para o outro. Eu faço de cada dia o meu domingo.

Vivo a minha manhã sem pensar na tarde. A minha tarde é inteiramente exclusiva, nada de pensar na noite. Mas quando sou coberto por estrelas, não penso em mais nada a não ser em vivê-la intensamente. Não, não preciso estar acompanhado, às vezes minha companhia me basta. Gosto de estar comigo mesmo. Não sofro de consciência pesada. Faria Yoga tranquilamente se não fosse tão preguiçoso. Adoro pensar e recordar tempos passados, sem o tão mal falado saudosismo. Lembro-me de que:

Numa dessas noites de pseudodomingo, quando esperava uma amiga, me peguei com cara de tédio, parado, quase caindo.

Estava totalmente distraído quando, do outro lado da calçada, passou tão bela quanto antes, uma feiticeira. Não, não estava bêbado, não tinha fumado nada fora da validade, era ela, a feiticeira do meu coração.
Feiticeira que me deixou esperando sem nenhum aparato para recostar-me.

Feiticeira que hipnotizou minha alma e fez dela sua serva.

Feiticeira que transformou meus sentimentos em um só – angústia.

Feiticeira que depois que usou jogou fora.

Mas como já disse, a espécie humana não sabe esperar. Mais uma vez a feiticeira me hipnotizou, deixando-me paralisado, grudado naquela parede branca. Coração acelerado e boca seca. Tentei gritar seu nome mais a voz fora guardada num pote mágico.

Ali, preso a brancura existente, totalmente atônito, vi quando a bela feiticeira seguiu em sua vassoura céu adentro. Juro que vi.

A moça chegou um pouquinho depois do acontecido, salvando-me daquele feitiço. Sorri, peguei-a pela cintura e fomos para a nossa festa à fantasia – era a minha primeira festa à fantasia na casa de um amigo.

Ela estava vestida de fada e, como era de se esperar, eu estava vestido de prisioneiro.


Paulo Francisco

Passatempo


Enquanto eles não chegam, eu fico aqui entre uma palavra e outra.  Esperava ansioso a chegada de meus amigos em minha casa. Eu era um anfitrião-mirim dos mais agitados em dias de chuva. Se a rua estava molhada, escolhíamos a casa de um de nós, para dela se transformar em nosso quintal. ¨- Melhor assim! ¨  Diziam elas comparando as ruas com a segurança do lar.

Mas o que eu gostava mesmo, era de ficar na chuva e fazê-la minha companheira. Por que parar a pelada se a chuva era passageira, e se já estávamos de corpos nus? Por que deixar de ir ao parque se o sol vem logo depois? A chuva nunca fora motivo para desistirmos de nada. Já tomaste banho de mar com os pingos da chuva de verão em sua cabeça? Eu já. E é muito bom.

Ela não quis molhar os cabelos – não queria ficar comum depois de horas no cabeleireiro. Uma pena, por que o que eu queria mesmo era chuva de chuveiro e corpos molhados e trêmulos em gozos quentes – era tempo de amar e não de esnobar.

Enquanto os meus amigos não chegam, eu vou escrevendo uma coisa e outra nesta tela branca do computador. É o que me resta neste tempo ocioso.

Adorava rabiscar em guardanapos enquanto conversávamos. Ficava ali ensimesmado em meus desenhos psicodélicos. Éramos abstratos demais, não conseguíamos concretizar nada juntos. Num segundo tudo mudava, saíamos de uma alegria plena para um obscurecer profundo. 

Era tudo muito doido e doído. Uma loucura desejada e uma pseudorealidade pretendida. Tudo era ilusão. Tudo era muito confuso, tínhamos sonhos divergentes.  Caminhos contrários a serem percorridos. Juntos, nos tornávamos heterogêneos. Éramos estradas paralelas com vontade de cruzar. 

Nosso único sentido era o que um poderia dar ao outro naquele momento: o capital e a mercadoria.

Mas o que eu queria mesmo era estar com os pés no chão para poder viajar, viajar de verdade, com mochilas nas costas e grana no bolso, mesmo sendo pouca.  Estava ficando chato aquele ir e vir em viagens insólitas.

Talvez eu faça uma pequena viagem na próxima semana, uns dez dias fora das montanhas – talvez eu veja o mar, ou os mares, ainda não sei. Não gosto de sair de casa em feriados prolongados. Fica tudo tão confuso. Perdem-se muito tempo em estradas, filas de mercados e restaurantes. Prefiro as semanas comuns para tais passeios. Em feriados eu fico em casa. Prefiro a minha rede na varanda e o meu céu azul. Gosto de minha casa e o que ela representa – Paz.  Paz que conquistei aos poucos, depois de muitas batalhas internas. Finquei o mastro em meu quintal e curto hoje o tremular da bandeira branca.

Barraco? Confusão? Discussões intermináveis? Nem pensar.  Tudo bem de uma discussãozinha de quando em vez para apimentar o clima, mas não mais que uma pequena discussão. Nada de cara amarrada, virar pro lado, ficar de mal. No máximo um beicinho pra eu desmanchar em sorrisos.

Confesso que gostava dos seus beicinhos; ela ficava igualzinha as menininhas birrentas e patricinhas. Desmanchava rapidinho, aquela cara-fechada em sorrisos reluzentes.

Esta ficando chato e esquisito, eu aqui, sentado, tomando água mineral e escrevendo nesta máquina. O garçom já me perguntou duas vezes se quero mais alguma coisa. Claro que quero, quero saber onde estão todos.

Quando ficava sozinho em casa por um motivo qualquer, o tempo demorava pra passar, A casa ficava só pra mim, mas não tinha graça, era como seu estivesse numa caverna ouvindo somente os meus passos – era triste.  Aproveitava o silêncio para inventar fantasmas.

Mesmo gostando dessa vida de eremita, gosto de ter companhia em minha casa de quando em quando. É preciso trocar energia, fazê-la fluir – energia acumulada pode se tornar numa bomba perigosa.

A moça sem nome, aquela que mora perto da praia, por passar um bom tempo no computador, acabou criando, para ela, um mundo tecnológico e frio.  Não entendo pessoas que não se aceitam; que não conseguem levar numa boa os seus problemas e defeitos. Qual a vantagem de fingir ser outra pessoa? Roubar o nome da irmã e viver numa ilusão vinte e quatro horas do dia?  Ela sabe que precisa de tratamento. Eu tentei ajudá-la, mas ela recusou a minha ajuda.  Qualquer hora ela explodirá – eu sei.

Acho que estou misturando os temas.

Mas era sempre assim quando me via sozinho, viajava em paisagens distintas. Ora tudo estava cinza, ora tudo se transformava num colorido forte e intenso. Como faço agora neste texto sem pé nem cabeça, mas que me distrai e me recupera de momentos vividos.

Os amigos estão chegando...

Vou parar por aqui, senão vão descobrir que eu escrevo e que tenho essa vida paralela.

Fazer o quê? Cada um tem o seu segredo. Não é mesmo?




Paulo Francisco