Somente em mim




Talvez eu fale o que já sabes. Talvez eu seja repetitivo. Talvez não valha à pena.  Mas como talvez é acaso, digo: te amo demais.
E na certeza dos meus talvezes, crio em mim a incerteza do óbvio: será que te digo?
Mas se não digo, fica a incerteza como certa. E como não há meio termo para o amor, eu faço do texto, um relato. A declaração da certeza que tenho de ti.


Paulo Francisco

Em mim







Onde você está? O meu imaginário é fértil. Tem cores e cheiros. Gosto de me imaginar menino, em colos adotados, em aconchegos que me fazem sonhar. No meu imaginário tem como pano de fundo, músicas francesas que sussurram em meu ouvido palavras gentis. Não sei viver sem ela.

Os meus sonhos sempre foram de arrepiar. Acordava, quando moleque, e ficava como um índio em sua tenda, exclamando: Bem que podia ser verdade! Bem que podia ter acontecido! Sonhava que voava; que era o melhor corredor – era mais veloz que uma piscada. Nos meus sonhos tudo se podia. Voltava pra tentar, inutilmente, o mesmo sonho.

Continuo a sonhar. Mas não voo mais; não corro mais; não acordo e não me sento como um índio de pernas cruzadas. Os meus sonhos são mais próximos de minha realidade. Não ligo muito pra eles. Acordo e percebo que todas as cores, que todos os cheiros não passaram de um devaneio. Viro pro outro lado e volto a dormir.

Agora, eu sonho acordado. Assim fazendo, tenho a sensação de ser possível. Imaginar-te em passeios à beira mar é possível. Imaginar-te em noites estreladas é possível. As minhas rimas são possíveis. Encontrar um cílio em sua face é possível. Sonho acordado. Flutuo em terra firme. Minha miragem, meu desejo.

Imaginei um amor. Ele não é irreal – é possível. Tem todos os meus desejos e prazeres. Desenhei um rosto, um olhar, uma boca e transmutei para o meu coração. O meu coração é possível. Ele tem espaço pro amor, pra sedução. Ele bate em ritmo de brisa. É leve e faceiro.

Desenhei em traços fortes e cores vivas um paraíso. Um lugar especial, sem anjos, sem jardins fantásticos, sem céus impossíveis. Nada de irreal. Desenhei, em cores brilhantes, somente nós dois. Isto é possível. A paisagem fica ao acaso. Pode ser aí ou aqui. Ou quem sabe lá, entre um e outro – no meio do caminho.

Agora, fico aqui a imaginar o momento possível de encontrar este traço imaginário.

Onde você está?





Paulo Francisco

Questão de preferência



Aqui só falta você. Procuro entre todas as flores, no vaso de vidro, no centro da mesa, uma que me chame a atenção. Não a encontro. O florista esqueceu-se de por junto ao ramalhete a linda flor.

Toda vez que vejo um vaso de flores, fico olhando pra encontrar entre todas a que me desperte mais a atenção. Sempre tem uma que nos atrai. Entre botões fechados e rosas abertas, uma é mais aveludada, tem maior brilho. As rosas ainda em fase de desabrochamento, ainda se encontram num tempo transitório, ou seja, o que será dela ao desabrochar por completo? Uma rosa perfeita, aveludada, ou uma rosa com sua cor empalidecida perante as outras? Só o tempo dirá! Prefiro as que já estão formadas, com suas pétalas perfeitas, viçosas. Gosto da rosa desabrochada e cheirosa. Tem que ter perfume; tem que ter brilho; tem que me despertar desejo.

Procuro sempre entre as cores a que me chame mais a atenção. Confesso que o azul é minha cor predileta. Mas não posso negar que ao ficar manchado pelo vermelho de uma boca, fascina-me.

Tenho amigos que odeiam mulheres com batom. Eu adoro. Gosto de ser pintado por ela. Gosto de mulheres enfeitadas; de unhas pintadas e que provoquem arrepios e contrações.

Não sou diferente deles. Eu, pelo menos, confesso. Não preciso de um botão de rosa na lapela. Quero uma rosa pronta em meu travesseiro.

Não sou diferente de ninguém. Gosto do azul, de uma boca vermelha, de rosa perfeita – quer dizer, já desabrochada.

Prefiro e, não é vantagem nenhuma, frutas maduras – são mais suculentas e sua doçura é mais envolvente à fruta verde no pé que demora muito pra amadurecer. Não tenho tempo nem paciência pra cuidar e esperar o seu amadurecimento. São lindas de se ver, mas são duras de morder. Prefiro uma fruta na mão a várias no cesto.

Não sei por que eu escrevi este texto. Talvez seja porque aqui só falte você.



Paulo Francisco

A curiosidade quase matou o gato



Comigo-ninguém-pode. Lembro-me como se fosse hoje. Numa tarde qualquer estava agarrado às barras da saia de minha mãe, sempre atento as suas conversas – adorava ouvir os adultos e, era sempre expulso por um deles com a seguinte frase: "Vai brincar menino, isto não é conversa de criança!" - Pois bem, estava grudado em minha mãe voltando pra casa depois de uma visita a uma amiga dela, quando outra amiga a encontra no meio do caminho e seguiram juntas a conversar. Um papo dali, outro papo daqui e, eu atento, não deixava escapar uma vírgula.

Quando passamos por um velho conhecido terreno baldio, ouvi de uma delas: ¨ Como pode, um terreno deste abandonado, sem uma cerca e cheio de mato.¨ a outra: ¨ um perigo! Olha! e está cheio de comigo-ninguém-pode, um veneno!

Fiquei com o nome da planta manchada em minha cabeça e com aquela palavra saltitando em minha mente: Veneno! Toda vez que passava próximo ao terreno ficava a namorar aquelas folhas largas e convidativas, até que uma tarde resolvo saber se era verdade que planta era venenosa e mastiguei-a com gosto. Pra encurtar esta história, foi o único dia que uma travessura minha não acabou em chineladas, mas em compensação me fizeram vomitar até as tripas. Fiquei mole por uns bons dias e ainda ouvi sermão de todo mundo. Senti saudades da chinelada Era mais rápido e curava logo.

Eu era assim, o revés da obediência. Ouvia que não podia e aí que eu queria. Tomava banho de chuva, fugia à noite pra brincar na rua, andava de trem até a quinta da boa vista, ia ao cinema depois da aula.

Hoje já cumpro mais com os meus deveres e obrigações. Mas a curiosidade em querer saber das coisas sempre foi o meu fraco. Por este complexo sentimento caí em algumas ciladas.

Hoje me comporto com cautela. Olho a folhagem pintada e no máximo mostro-me em desejo. Estou mais cuidadoso – gato escaldado. Descobri que o fogo aquece, mas também, pode queimar; a água sacia, mas pode afogar; nem todo vento é brisa.

Assim vou levando minha vida de curioso. Observo primeiro, estudo um pouco e depois sim ponho a mão. Nem tudo que está à vista é pra ser tocado. Nem tudo que vem ao vento é pra ser agarrado.

Aqui em casa, por exemplo, as miúdas e graciosas marias-sem-vergonha estão sempre florindo. São estudadas pela medicina. Enfeitam. Mas quem disse que não são tóxicas?






Paulo Francisco

Dependência




Não espere de mim mais do que eu tenho pra dar. Quando a professora, no final da aula, entregava o boletim, eu ficava tenso, angustiado, tornava-me pedra pra não revelar a minha aflição. Não queria um dez, não queria um nove, não queria nada além do possível, bastava-me um boletim azul, pra eu sair daquele transe mortificado. Vermelho respingado, azul manchado. Tinha, tínhamos, naquela época, vergonha de uma nota abaixo da média.

Na vida, tentei ter o meu boletim sempre com notas azuis, mas como a escola do mundo é pra sempre, é quase impossível não manchá-lo com alguns respingos vermelho e amarelo.

Como recebíamos o boletim fechado num envelope pardo, o suspense era maior, principalmente quando era entregue pelas mãos da Professora com um ar sério ou de reprovação. Um sorriso dela era o sinal de que não tínhamos ido mal.

Quando cheguei a minha casa e vi seu rosto fechado, seus olhos cabisbaixos, seu andar arrastado, percebi que estávamos abaixo da média.  Nossa relação estava no amarelo e há qualquer deslize chegaria ao vermelho. E chegou. Fui reprovado sem o direito de recuperação.

Não entendia a compreensão do amor. Era difícil pra mim, o doar, o aceitar, o resignar. Não entendia que tínhamos que caminhar numa via de mão dupla. Não decodificava; não abstraía. Tudo era erroneamente um todo. Não compreendia as etapas da vida, seguia numa linha reta, sem parada pra descanso, sem parada pra reabastecer a máquina, sem uma revisão de tempos em tempos. Não revisava a vida.

Ah, fui reprovado tantas vezes na disciplina do amor que quase desisti da matéria. Passei um bom tempo afastado da classe. Achava que não era possível acompanhar toda metodologia aplicada. Era complicado decorar todos aqueles termos, conceitos e definições no tempo exigido pelo sistema.

Mas como seguir sem a compreensão da base da vida? Como entendê-la se não vivê-la? E se vivê-la, como aceitá-la?

Tornei-me autodidata. Segui o caminho do construtivismo.

Sigo num aprendizado sem fim. Entre erros e acertos, defino-me, conceituo-me e não chego e nem devo concluir-me, pois a cada dia, há na vida, elementos novos, pra colocarmos a prova. Somos a nossa própria experiência.

Experimento-me.

Não exija de mim, o que eu não tenho para dar.

Se vermelho ou se azul, com ou sem segunda época, o boletim é da responsabilidade de cada um.




Paulo Francisco