Previsão

Estava tudo premeditado. O dia estava premeditado. A lista de pequenas coisas estava mentalmente guardada. Tudo aconteceria como planejado, se não fosse ela – a chuva.

Chuva de inverno, chuva fininha acompanhada de vento. Olhei pela janela e, não vi viva alma entre a cortina de prata. Voltei para cama e tentei continuar o sonho que fora cortado na melhor parte quando o despertador tocou. Voltei e sonhei.

Premeditar o dia, organizar cada passo. Este não sou eu. Sempre deixo que tudo aconteça por acaso. Não gosto desta organização mental. Desta coisa metódica. Gosto mesmo do improviso. A chuva foi um acaso – ela molhou e manchou o que estava planejado.

E nesta manhã planejada, não pude andar até o parque, sentar no gramado e curtir uma leitura. Caminhar na minha trilha favorita, contemplar o panorama lá embaixo e, me sentir revigorado. Nesta manha acordei, levantei, deitei, sonhei, acordei, levantei e caminhei na insistente chuva de inverno.

Fui andar por aí.

Já na minha rua, a certeza que não teríamos novidades colhidas pelas janelas abertas em dia de sol. Quase todas estavam cerradas, as mais curiosas se permitiam um entreaberto tímido. Nenhum cão solto se atreveu acompanhar meus passos fortes e espalhador de chuva entornada. Ainda em minha rua, nenhum pássaro a cantar, nenhum gato no muro, nenhum olho mais comprido a me vigiar. Estava só.

Caminhei em ruas vazias de gente; caminhei em ruas cheias de histórias. Parei diante do amarelo transformado em verde da casa de dois andares. Tornei-me um errante que a cada passo, descobria o que já existia e, por tantas vezes, ignoradas pelos passos apressados.

Já não mais chovia, raios de sol criavam, em pequenas poças, as cores do arco-íris. Já não estava sozinho. Os meus passos se confundiam com outros apressados.

Tinha premeditado tudo, menos a chuva inesperada. Tinha tudo guardado em minha mente. Todos os horários; todos os afazeres. Quase tudo foi levado pela chuva; quase tudo foi substituído; quase tudo desmanchou-se como papel crepom. Quase tudo.

Ainda me restou o fim da tarde. E, nele, o que foi premeditado acontecera. Pude ver a transformação do claro para o escuro; pude contemplar a lua alaranjada; pude sentir o calor humano; pude ouvir: eu te amo.





Paulo Francisco

Lá fora está chovendo




Desenhei nuvens porque não havia sol.  Chovia longe, podia vê-la enfeitando as montanhas, cortinando a paisagem verde num prata cintilante.  Era assim que ela chegava até mim - numa lenta dança sensual, agitando seu véu cinza, acariciando o mundo.

Enquanto eu ficava preso em meu quarto parado à janela, numa reflexão própria de quem está perdido, ela sem medo algum, chegava molhando a terra, carregando sementes, criando caminhos, engolfando tudo.

Aprendi a desenhar flores ainda criança. Depois, foram as árvores que enfeitavam a minha tela branca. Montanhas, sol, nuvens, pássaros e caminhos sinuosos complementavam os meus pensamentos. Desisti de desenhar paisagens ainda garoto.  Troquei por algo mais abstrato que somente eu entendia. Não conseguia desenhar a chuva. Não conseguia acompanhar os seus traços. Ela sempre manchava a minha pintura.

Nas abstrações de meus traços, nas cores fortes e brilhantes, na incerteza do que era belo, criei à mão livre, o meu caminho confuso. Nunca consegui caminhar numa linha reta – sempre ficava nauseado e caía na escuridão. Sou mais feliz e mais resistente nas paralelas sinuosas e curvilíneas.

Hoje, a minha tela se manchou com os respingos da chuva. As cores se misturaram e formaram imagens não criadas por mim. Foram figuras que me remeteram ao tempo de criança, onde a bruxa era a personagem central e a megera tinha o poder de destruição.

A chuva continua. A tela já não tem mais uma imagem nítida. Transformara-se em uma mancha escura. As cores se misturaram e a paisagem existente escorreu para o chão.

Hoje, eu acordei com o barulho da chuva no telhado. Permaneci em meu quarto e desejei o sol. Tentei desenhar uma paisagem primaveril, mas a chuva a transformou num borrão.

Voltei a desenhar.

Desenhei o sol mesmo havendo chuva.



Paulo Francisco



Iluminados




















Para Waldir e Verônica





Os meus vizinhos fabricam velas. São velas artesanais e de uma delicadeza ímpar. São velas que iluminam os nossos olhos pela beleza e aquecem as nossas almas pela ternura mostrada. Os meus vizinhos fabricam velas com amor.

Quando acabava a luz em minha casa, era uma diversão em teatro de sombras. Brincávamos com os pássaros, os lobos, as bruxas e tantas outras personagens criadas pelas nossas mãos infantis. A parede era a tela inventada, com imagens surgidas num aprendizado em sorrisos e suspiros.  Gargalhávamos pra espantar o que em nós estava escondido.

Quando ela chegou, as velas coloridas estavam acesas, a mesa posta e o meu amor aquecido em chamas dançarinas. Foi assim, o jantar que preparei para aquele primeiro encontro em minha casa. Vivemos uma noite de sonhos e delírios, registrados em sombras gigantes e tremuladas nas paredes da casa  -  noite que guardamos com carinho, depois de nossos desencontros em tardes de verão e passarinhos.  Transformamos, mais tarde, as chamas do amor em luminosidade afetiva. Dormimos, hoje, na mesma rede como dois amigos.

Quando cheguei ao sertão sergipano, estranhei o caminho, a luz da lua iluminava os nossos corpos cansados e pesados pela areia fina e branquinha que cismava em cobrir os nossos pés  estrangeiros. O céu daquele lugar era mais iluminado por estrelas azuis do que em qualquer outro lugar que eu tenha passado até então. Luar do sertão e chão de estrelas cantadas por grilos, sapos e corujas – cancioneiros nunca mais esquecidos.

 Ao chegar à casa de minha avó, sorrir com a luminosidade criada pelas lamparinas. O luar do sertão lavou-me em poesias guardadas. Passagem, em minha vida, iluminada pelo carinho de quem me amava sem me pedir nada em troca, a não ser um cheiro pela manhã, à tarde e à noitinha. Cheirinho guardado na alma de quem ainda crescia e dormia na rede com maestria.

Quando a luz acaba por aqui, não ouço aqueles gritos de decepção e nem tampouco a gritaria saudando a sua volta. Há um silêncio soturno de uma decepção tecnológica. Não há mais o teatro, suas paredes são construídas de plasma ou de led – não há mais sombras tampouco dedinhos infantis em telas inventadas.

Ontem, a luz foi embora no meu bairro lá pelas nove da noite e só voltou de madrugada, indo embora logo em seguida, só voltando de verdade no meio do dia seguinte.  Aproveitei pra iluminar a minha casa com velas aromáticas e brincar com a lua, que estava linda e grávida. Ela invadiu meu quarto, e nele, não permiti as chamas inventadas. Banhei-me de poesia lunar até ela se esconder por de trás das montanhas. Ainda posso tê-la no meu céu marinho em noites abandonadas. Nunca estarei só em minha varanda enquanto ela existir. Lua-amiga, lua-guia.

Quando criança, pedia pra que não apagassem a vela enquanto eu estivesse acordado, gostava de vê-la dançando na parede e movimentando aquele ambiente cinza e flutuante. A chama invadia a minha imaginação de garoto que gostava de inventar os seus medos e segredos.

 Os meus vizinhos, Waldir e Verônica, fabricam velas de amor. São velas coloridas e enfeitadas com laços de fita, e que muitas das vezes, dá dó em acendê-las. Mas, se não acendê-las, elas perdem o seu verdadeiro motivo que é iluminar e aromatizar uma noite mágica e apaixonada.

Às vezes eu me pergunto, se eles são bruxos; se eles põem uma porção mágica à parafina ao fabricar suas peças. Mas, como sou um eterno romântico, prefiro imaginar que as velas só ficam prontas de verdade em noites de lua cheia, quando suas almas unidas, exalam o aroma de suas paixões, impregnando-as com as cores da vida.

Os meus vizinhos fabricam velas de amor, e eu as acendo em noites cálidas e infinitas.


Paulo Francisco








Precisão

Estou triste. Sim, estou triste. Acordei com uma dor no peito. Acordei com a sensação de perdido. Não gosto desta densidade, fico viscoso e sem brilho.

Não gosto quando perco minha paleta de cores.

Quando menino, se me sentisse triste, corria para um colo feminino para me aconchegar, seja ele de minha mãe ou não. Não mudei muito, não. Ainda, hoje, quando estou assim, corro para um colo quentinho.

Mas ultimamente, eu não quero qualquer colo – estou mais seletivo - quero o colo de quem vai poder dar-me mais que um lugar quente.

Quero um colo seguro, um que não vai logo embora;

quero um colo com cheiro de flor e gosto de mel;

quero um colo que me faça desejar seu cheiro;

quero a maciez e a segurança de um colo que me aqueça em dias frios;

quero um colo para ser embalado em sonhos.

Hoje, acordei com uma vontade de ter um colo pra poder ficar quieto, sem me mexer, parado e vendo a tristeza passar.

Hoje, acordei assim, triste por não ter seu colo perto de mim...



Paulo Francisco

Água e sabão

O que para muitos é sacrifício, para mim é terapêutico.  Faço de algumas tarefas domésticas a minha terapia ocupacional. Lavo louças, ouvindo música. Tornou-se um hábito transformar a minha cozinha a extensão de minha varanda. Faço dela meu templo budista.

Acordei e fui direto para a área de serviço: roupas na máquina, algumas de molho com alvejante - tarefa que aprendi com a minha mãe – lembro-me da boneca de anil , das roupas  dançando no varal e o corre – corre no quintal, quando o céu se transformava em cinza. Achava engraçado o ¨tchoque-tchoque¨ da água espirrada com as mãos, tirada da bacia, para deixar a roupa sempre molhada enquanto quarava. Não entendia o tamanho sacrifício daquelas mulheres que entre a água e o sabão riam das conversas codificadas, difíceis de serem decodificadas por mim. ¨ Lençóis brancos, corpos limpos. ¨

Saí da área de serviço e fui direto pra cozinha. Sorri, quando me deparei com as cubas lotadas de louças.  



Ensabôo os utensílios e a minha alma. Tiro as impurezas dos objetos e de carona os meus pensamentos embarcam entre espumas e água corrente.

A metodologia empregada segue o ritual aprendido desde criança. A primeira etapa são os copos seguidos dos pratos e travessas de vidro. Os copos são ensaboados com uma esponja especial e exclusiva. É sempre assim: esqueço-me em bolhas de sabão. Volto no tempo e preencho as lacunas existentes em pensamentos que flutuam. É lavando louças, que ponho em ordem a minha agenda mental; é lavando louças, que converso comigo mesmo e discuto assuntos pendentes. Coloco em ordem a desordem existente entre copos em carreirinha.

Não me dê uma vassoura, dê-me uma esponja – faça-me feliz.
Quando criança não via nenhum homem ajudando nas tarefas domésticas – Era coisa de mariquinhas – diziam os machistas nos seus jogos de sinuca e carteado.

Hoje, os meus amigos, entre uma partida e outra de futebol, aspiram, lavam, dão banho em seus filhos e muitos são os chefes de suas cozinhas. Tarefa repartida, noite mais divertida.



Perco-me entre os saponáceos. Encontro-me na imagem refletida do aço lustrado. Sou egoísta nessa tarefa:

- O que você está fazendo?



- Lavando as louças...



- Mas por quê?



- Porque aqui é a minha casa, oras!

Ela achou que deveria fazer as tarefas domésticas por estar ali. Mas se eu quisesse uma doméstica, contrataria uma diarista, no mínimo. Escrava somente aquela parada em minha cozinha – branca e gelada.

Entre em minha casa e sinta-se à vontade – a casa é sua; mas não mexa na minha pia.

Estava na casa de praia de minha amiga Ascensão, conversando depois do almoço, quando percebi que ela estava indo em direção a pia. Bateu-me um desespero. Sabia que ela tinha levantado pra lavar a louça, e, eu, não teria a chance de viajar entre os copos e os pratos alheios. Imediatamente me ofereci para tal tarefa. Ganhei o dia. Surfei em ondas biodegradáveis e naveguei em barcos redondos.

Ontem, fui visitar o Marcos e a Sandra – um casal de amigos. Depois de um verdadeiro rodízio de pizza pra criançada, paramos pra conversar na cozinha. Enquanto conversávamos, Sandra lavava a louça. Eu fiquei ali olhando suas mãos sendo envolvidas pela espuma do detergente. Fiquei com água na boca. Não gosto muito de pizza, mas adoro o que vem depois – a louça.




Paulo Francisco