Exagerado



Eu exagero em muitas coisas. Coloco mais açúcar que deveria no café, por exemplo, e aí, me obrigo a bebê-lo sem mexê-lo com a colher. Quando chego ao último gole, sinto-o mais denso e doce. Olho para o fundo da xícara e vejo que desperdicei uma quantidade razoável daquela substância tão gratificante.

Eu não consigo dosar - ou muito doce ou muito amargo. Eu sei que a quantidade de açúcar na xícara é maior que o café colocado nela, mas eu sou assim mesmo, prefiro o excesso à falta.

Nos últimos tempos, mudei o ritual do café - não começo mais pelo açúcar - coloco primeiro o líquido. Não encho até a borda da louça, tenho medo de entornar e manchar ao redor. Cuidadosamente, vou colocando o pó brilhante e aos poucos vou mexendo. Verdadeiramente, antes mesmo de colocar o açúcar, eu provo um pouco do líquido quente e amargo. Sorvo-o lentamente, sentindo-o entre meus lábios, para depois com cuidado, derramar o açúcar.

Agora, quando chego ao final da bebida, olho para o fundo da xícara e vejo uma leve mancha misturada ao pouco açúcar que restou no fundo. Percebo, então, que cheguei ao fim na medida certa, sem exagero ou falta. Sinto que o liquido que tanto gosto não foi desperdiçado. Às vezes, fica tão bom que peço uma outra dose, só para fazer o ritual todo de novo.

Claro que às vezes passo dos limites e deixo transbordar o café. Outras, a dose de açúcar é mais que necessária. Algumas, por mais açúcar que coloque estará sempre amargo.

Eu exagero em muita coisa, mas esse negócio de açúcar e afeto estou aprendendo a dosar.



Paulo Francisco



Refeição





E na hora do almoço...Pronto!
- Não quero!
- Quer sim.
- Não gosto!
- Gosta sim.
- Não!
- Sim.
- Então, experimente você.
- Eu!?
- Sim.
- Mas.... tá bom! Não precisa comer.
- Ok! Posso brincar?
- Não.
-Por quê?
- Você não comeu.
- Mas você disse que eu não precisava comer.
- Sim, disse...
- Então...
-  Mas não disse que podia sair para brincar.
- Então vou fazer o quê?
- Experimente um pouquinho da comida e aí...
- Mas eu não gosto de...
-Só umas garfadas...
- Eu vou passar mal.
- Vai não.
- Vou sim.
- Ok! Pode sair. Vou preparar um sanduíche.
- Oba!
O marido chega na cozinha e se depara com aquele prato de comida à mesa e diz:
- Bom dia, amor! Prepara um sanduíche para mim também?
A mulher olha para o marido e pergunta furiosa:
- Vai me dizer que você também não gosta do meu picadinho!?







Paulo Francisco

A moça da janela



A janela estava sempre escancarada, nunca fechara. Mesmo em grandes tempestades, sempre deixara uma fresta. Jamais a trancaria por completo.
A certeza da entrada de seu príncipe – mais que perfeito – pela abertura, fazia com que tomasse o cuidado em não fechá-la nunca.
Enquanto o príncipe não surge, os verdes sapos vão se aventurando em pular para dentro do quarto da sonhadora. Depois de um tempinho, ela, sempre, os expulsava.
Numa certa noite, entra em seu quarto, o que pensara ser seu príncipe e, mais que depressa, fecha sua janela, prendendo-o para sempre.
Mas depois de algum tempo, pela ironia do destino, descobrira que se enganara, aquele não era o seu Encantado tão esperado. Era, simplesmente, o mensageiro daquele, que por tanto tempo, sonhara.
Com a janela trancada, não tinha como mandá-lo embora, pois prendera para sempre o equívoco em seu aposento. A sua única alternativa era mandar o pseudopríncipe sair pela porta da frente e, assim o fez, mesmo sabendo do risco em ficar sozinha, para sempre.
Agora, a moça fica olhando pela vidraça, rezando, para que alguém a quebre com uma pedra. E tanto faz, se será um príncipe ou um sapo o seu bem feitor.



Paulo Francisco

Azul-de-metileno



Era inverno. O dia estava nublado e frio. Resolve, então, acender a lareira. Silêncio absoluto na casa – era tudo de que precisava: o calor do fogo, o vinho tinto e uma boa leitura.
Sentado em sua poltrona preferida, volta a ler o livro que encontrara em sua estante – não lembrava em que época o tinha comprado - era um livro antigo pela data de edição, mas novo por nunca ter sido aberto. Um livro de Clarice Lispector. Ele pouco leu a autora – não era o tipo de leitura de que gostava. Mas, sem saber o porquê se interessara por aquela em especial.
Olha para a lareira e fica hipnotizado pelo bailar das chamas e o estalar da madeira.
Batem na porta – uma batida forte e rápida - ao abri-la, depara-se com um sonho: O que estaria ela fazendo ali parada à sua frente? "Estou sonhando!" "Será que aconteceu alguma coisa?" – pensa atônito.
Sem dizer-lhe qualquer coisa, a linda mulher atira-se em seus braços e o beija ardentemente. Ele sorri. Sem nenhuma palavra, retribui aquele desejo com mais desejo ainda - Eles se amavam e ali, na sala, diante da lareira acesa se amaram como nunca fizeram antes.
As chamas do fogo denunciam seus corpos aquecidos e nus projetados em silhuetas gigantes na parede branca da sala – uma imagem em preto e branco. Amaram-se como dois adolescentes. Tudo era permitido no isolamento daquela casa.
Risos... juras de amor... e silêncios telepáticos – eles se amam – Nada mais importa..
Conversam baixinho, em sussurros:
- O que deu em você? Não era pra está em sua casa de campo?
- Sim... mas tivemos uma discussão e..
- Resolveu voltar sozinha..
- Sim... não iria ficar naquela casa fingindo ser um casal exemplar.
- Mas e agora?
- Bem... eu não vou voltar nem para a casa de campo e nem para o apartamento..
- Como?
_ Resolvi me separar e ficar aqui com você.
- Mas você sabe que não pode... e seus filhos
- Eles entenderão.
- Será?
Neste exato momento, um estrondo e uma corrente de ar invadem aquele espaço, trazendo frio e medo. Os dois, nus, se assustam. A porta bate fortemente contra a parede. Ele corre imediatamente para fechá-la e sente o vento envolvendo todo o seu corpo. Era um ar gelado – prenúncio de uma grande tempestade. Quando se volta, ela sumira...
O homem sai de seu transe e percebe que sonhara. Sonhara com seu amor proibido; sonhara com quem está distante de sua vida.
Tudo continua igual, nada mudou, a sala permanecia como antes, acesa e quente.
Levanta e nota que o seu livro caíra no tapete. Ao pegá-lo, percebe que a taça de vinho também fora derrubada manchando a capa. O liquido derramado, tingiu num tom róseo o seu titulo: ¨ Felicidade clandestina¨.
Sorri – a porta abriu com a força do vento. Antes de fechá-la, para por alguns segundos e, vê que há lá fora uma cortina de fumaça impedindo sua visão." Está tudo nublado..."
Já é noite.
Não há lua nem estrelas no céu.
O céu fora coberto pelo cinza de um inverno solitário e sombrio.
Dentro daquela sala tudo estava em preto e branco, como uma fotografia antiga e desbotada. As chamas já não aqueciam mais aquele ambiente.
De repente, lá fora, o som de um carro chegando. Ele abre a porta e percebe que já não há mais neblina e o céu voltou com a sua cor azul de metileno e a lua que há pouco não se via, apareceu inteira e prateada...


Paulo Franciso

Branco



- Não quero mais...
- Eu quero você PORRA!!
- Mas eu não quero mais viver assim...
- Você não entende! Eu quero você...
- Eu preciso viver! Quero ter a minha própria vida...
- Mas você tem... eu quero ...MERDA! você sabe que eu gosto de você. Eu vou melhorar...
- Não! Estou cheia de promessas... vai embora! Por favor... me deixe..
- Não posso! Eu sei que você me quer
- Eu te quero sim! Mas não assim!
- Mas eu vou mudar
- Não muda NUNCA!
- Mudo sim
- Então prove!
- Como assim?
- Jogue fora o que você tem no bolso.
- Eu não tenho NADA no bolso!
- Tá vendo, cê não quer outra vida
- Quero sim..
- Me deixe... me largue... quero minha vida de volta
- Mas eu juro que não tem nada no meu bolso
- Então prove
- Acredite... vai... acredite em mim...
- NÃO!!!!
Ela corre desesperada sem olhar para trás.
Ele permanece parado, olhando ela seguir.
Ela corre. Corre para um futuro branco, claro como o algodão
Ele permanece ali, parado, paralisado com seu presente negro como o asfalto em seus pés e branco como o da morte em seu bolso.



Paulo Francisco