Constatação


Semana passada, saí de casa, decidido a comprar um par de tênis. Andei por várias lojas, namorando as vitrines. Confesso que gostei de vários modelos, mas tinha decidido o que eu queria. O calçado teria que ser igual à minha última aquisição há um ano.

Os vendedores, ávidos por uma venda, tentavam me empurrar outros modelos, mas eu já tinha registrado em minha mente e coração o que eu queria.

Por mais que eles explicassem que o modelo desejado não fazia mais parte do catálogo deste ano, eu, teimosamente, recusava os outros.

Não conseguia entender, como um produto tão bom, que se encaixou perfeitamente nas minhas necessidades, me suportou por um ano inteirinho, não era mais fabricado, era um modelo ultrapassado.
Voltei para casa com as mãos leves e as pernas cansadas. Fui direto para o meu quarto. Peguei o meu cansado e amigo tênis que, aparentemente, estava com o couro perfeito, mas, decerto, sua sola não agüentaria o tranco de minhas pisadas fortes e tortas, e guardei-os na esperança de recuperá-los.

No outro dia, acordei decidido a comprar um outro par de tênis – não podia ficar sem nenhum – entrei numa daquelas lojas que a gente pergunta sempre quando passa por elas, como sobrevivem, pois nunca tem ninguém comprando e a vendedora, coitada, quase um manequim, olha para os transeuntes com aquele olhar de promessa.

Assim que entrei, os olhos da coitada brilharam, um sorriso estudado brotou em sua face e antes que ela pudesse vir com a frase pronta, fui logo dizendo o que queria. A pobre moça se desmontou toda e repetiu o que os seus colegas me disseram no dia anterior.

Mas como eu já estava na loja e precisava de um tênis, recuperei o sorriso da moça e deixei que trouxesse vários modelos. Experimentei alguns - gostei de poucos.

Mas não querendo repetir o incômodo de ficar calçando sapatos por aí, resolvi sair dali com alguma coisa e acabei comprando três pares, para a alegria da pálida vendedora.

Chegando em casa, percebi que não adianta substituir o que a gente ama. O certo é conservá-lo, pisando leve e menos torto possível.






Paulo Francisco

Exagerado



Eu exagero em muitas coisas. Coloco mais açúcar que deveria no café, por exemplo, e aí, me obrigo a bebê-lo sem mexê-lo com a colher. Quando chego ao último gole, sinto-o mais denso e doce. Olho para o fundo da xícara e vejo que desperdicei uma quantidade razoável daquela substância tão gratificante.

Eu não consigo dosar - ou muito doce ou muito amargo. Eu sei que a quantidade de açúcar na xícara é maior que o café colocado nela, mas eu sou assim mesmo, prefiro o excesso à falta.

Nos últimos tempos, mudei o ritual do café - não começo mais pelo açúcar - coloco primeiro o líquido. Não encho até a borda da louça, tenho medo de entornar e manchar ao redor. Cuidadosamente, vou colocando o pó brilhante e aos poucos vou mexendo. Verdadeiramente, antes mesmo de colocar o açúcar, eu provo um pouco do líquido quente e amargo. Sorvo-o lentamente, sentindo-o entre meus lábios, para depois com cuidado, derramar o açúcar.

Agora, quando chego ao final da bebida, olho para o fundo da xícara e vejo uma leve mancha misturada ao pouco açúcar que restou no fundo. Percebo, então, que cheguei ao fim na medida certa, sem exagero ou falta. Sinto que o liquido que tanto gosto não foi desperdiçado. Às vezes, fica tão bom que peço uma outra dose, só para fazer o ritual todo de novo.

Claro que às vezes passo dos limites e deixo transbordar o café. Outras, a dose de açúcar é mais que necessária. Algumas, por mais açúcar que coloque estará sempre amargo.

Eu exagero em muita coisa, mas esse negócio de açúcar e afeto estou aprendendo a dosar.



Paulo Francisco