Céu

Disseram-me que adoro o céu e que haja infinito azul para minha inspiração. Sim, eu gosto do céu e o azul me traz paz. Mas o meu céu é de várias cores. Às vezes ele se encontra clarinho, tão clarinho e reluzente, que doem os olhos e a alma daquele que fica, por muito tempo, tentando decifrá-lo.

Os meus céus são vários. Em minha infância ele era mais distante, as pipas coloridas sumiam numa imensidão azul. Os pássaros, sempre em bando, fugiam em franco desespero, em cantos anunciados em tempestades, e o que estava a brilhar se apagava.

No meu céu de todas as cores, tem querubins e serafins, instrumentistas cantantes, moleques arteiros e arpistas.

Os amarelados anunciam a chegada do sol, traz consigo o calor que agasalha.

Os avermelhados se despedem como cavalheiros, permitindo que a dama lua ocupe seu lugar no espaço.

Os magentas são os mais felizes – é mistura de dois céus – reluz o que mais importa – o amor em plena ebulição.

É..., o meu céu traveste-se de cores. Cores absolutas. Ele é generoso, abriga a lua, o sol, as estrelas e as musas de minhas poesias; permite, também, que outros evidenciem suas cores.

O meu céu é mágico, transforma o nada em imagens aneladas, permite amores ansiados.

O meu céu também fica zangado, e se revela chumbado. Mas quando tranquilo o azul outonal aparece e transmite esperança. Quando assustado, coitado, esconde-se no pretume de uma coberta.

Quando ele está anilado, bordado por estrelas felizes, acredita-se que está sonhando com um amor distante.

Mas hoje, exatamente hoje, ele se prateia e chora chuva.



Paulo Francisco

Arrumação

As minhas gavetas continuam desarrumadas. No desespero da dor - à procura de meu antiácido - percebo que as minhas gavetas nunca ficam arrumadas. Definitivamente não sou metódico, vivo e sobrevivo no caos.
Não sei se conseguiria ter uma vida certinha, com café da manhã em mesas arrumadas com jarros de flores e jantares na hora certa e música ambiente ao fundo.
Não tenho hora pra quase nada. Sou totalmente desorganizado e confuso.
Então, olhando para a bagunça existente, decido, num rompante, arrumar as gavetas - quem sabe esta dor danada, em meu estômago, não passe depois de uma faxina completa nestas gavetas abarrotadas de passado?

[Decisão em ebulição]

Faço isto. Começo pelas gavetas de baixo, lá estão as mais pesadas lembranças. Retiro peça por peça. Analiso cada uma delas. Não entendo como pude guardar tanta coisa inútil.
Num saco plástico preto começo, num ritual fúnebre, a depositar as peças obsoletas: um estilingue, algumas bolas de gudes, um boletim registrando a minha mediocridade intelectual, uma foto apagada em que tento descobrir o que havia e, depois de certo tempo, arrependo-me de tal esforço – era uma fotografia amarelada, apagada. Restaurá-la era perda de tempo, continuaria lá num passado distante.
Gaveta limpa. Sigo para a seguinte. São peças tão velhas e inúteis quanto à primeira. Sigo o mesmo ritual, e antes de terminá-la, preciso de outro saco. Nesta, sobrou tão pouco que resolvo guardá-las numa caixa de madeira. Esforço inútil de recordações pálidas e ressequidas.
Faço deste dia, o dia nacional de minha independência emocional, ou quase.
Sinto-me aliviado, mas não o suficiente para exterminar de vez a aguda e teimosa dor.
Enquanto as gavetas se tornam livres de um passado sombrio, meu corpo reclama de dores musculares – ele pesa, fica curvado, travado.
Chego à última, que na verdade é a primeira de cima para baixo. Olho para aquela confusão e não sei por onde começar. Tudo está tão recente. Como desfazer de algo, ainda, tão presente.

[Surge em mim um silêncio branco]

Fico indeciso, tinha resolvido limpar tudo, não deixar nada que possa aumentar ou manter esta dor desgraçada aqui dentro de mim.

[medo do vazio]

Mas como jogar fora momentos tão recentes? Como posso achar que esta dor pode ser provocada por causa desta gaveta bagunçada?. Não, não pode ser por aí.

[decisão em ebulição]

Não vou jogar nada fora. A dor que se dane.
Eu aguento!


Paulo Francisco

Desengano

É engano! Desligo o telefone e fico pensando na frase que dei para aquela voz feminina e macia.

E quantos enganos cometemos nesta vida de Deus. Não foi um engano ter dito pra ela que era engano? De não ter dito que eu não era o Pedro, mas que poderia ajudá-la mesmo assim?

Já me enganei tantas vezes, que perdi a conta.

Já desci no ponto errado e tive que andar duas quadras, simplesmente, por te me enganado.

Já mandei cartão de aniversário para a pessoa errada e tive que rezar um rosário para explicar o tremendo engano.

Já achei que tinha encontrado um amigo, e quando bato em suas costas, vejo que a cara não é a mesma.

Já dei meu telefone errado, por um algarismo trocado e, deixei de receber um sim, para um encontro

Já cheguei atrasado ao dentista vinte e quatro horas depois.

Já me enganei, achando que iria fazer sol e não levei comigo o guarda-chuva.

Foram tantos enganos: uma amizade errada, uma catarse desnecessária, uma porrada na mesa, um adeus precipitado...

[silêncio]

Era ela de novo, perguntando pelo Pedro.

Marcamos nos falar mais tarde, depois que ela disser pra ele que foi um engano.


Paulo Francisco

A chave segredo

Cadê a chave!? Todos os dias eu uso a mesma frase. Não aprendo. Eu nunca sei onde o meu molho de chaves está. Incrível como ele desaparece tão rápido.

Por causa desta falta de organização, deste meu lado bagunceiro e displicente, eu acabo ficando em apuros.

No trabalho quando chego com a cara de atleta que acabou de cruzar a linha de chegada, todos já sabem e dizem: – ¨Não encontrava a chave, por isso do atraso!¨

Coitados dos courrier, motoboy, carteiro e amigos. Atendo da sacada já gritando:

- Oi! tô descendo. (O cara acredita).

Dano a procurar a chave. Mentalmente, eu retorno ao meu portão na noite anterior e, tento fazer o caminho, passo a passo, pra vê onde eu deixei o bendito chaveiro. Nada. Volto pra sacada e digo:

- Peraí, to procurando a chave... um instante!. (E ele espera).

Volto de novo à sacada, angustiado e preocupado com o camarada a minha espera, grito:

- Aí, bacana, não tô encontrando a porra da chave, espera mais uns segundinhos que eu já vou descer.

Visto uma bermuda, porque, geralmente, quando toca a bendita campanhinha, eu estou na boa, tranquilão.

E quase sempre tenho que pegar a encomenda pelo muro ou, peço para o entregador deixar do lado de fora do portão. Assino a entrega e volto à procura da infeliz.

Subo, sempre, dizendo:

- Onde eu botei a bosta da chave!

Eu estou sempre procurando:

- Cadê a chave?

- Cadê o livro?

-Cadê a minha bolsa?

- Onde eu deixei aquele documento?

Agora, estou tentando policiar-me, assim que chego, tento deixá-la num lugar específico, mas é difícil, muito difícil, uma atitude metódica, pra quem sempre foi desorganizado.

Nesta tentativa de me livrar de alguns caos em minha vida, acabei encontrando outra chave. Uma chave pequena, que estava perdida há muito tempo, mas que abre um compartimento imenso.

Corri até uma das gavetas e peguei um cordão antigo e a prendi nele.

Agora ele anda sempre em meu pescoço e ela bem próximo do meu peito. Toda vez que alguém tenta trancar o meu coração, eu vou lá e abro de novo.



Paulo Francisco

A maçã

A menininha tirou do bolso de meu casaco o meu segredo: a maçã escondida.

Guardo comigo as lembranças de minha infância em papel de seda roxo: bruxas e fadas, maçãs e poções mágicas, heróis e vilões, apaches e caubóis, padres e vampiros, fantasmas e casarões antigos – ficávamos hipnotizados, ouvindo a mulher gorda e caolha a nos contar histórias antigas e assombrosas. Descobrimos a eletrostática, antes mesmo, de irmos à escola – ficávamos de cabelos em pé ouvindo a velha senhora com a sua voz rouca. Medos escondidos de olhos fechados em quartos escuros. 

O menininho sentia dor, era intenso o seu lamento – era quase um mantra do desespero. Os seus olhos lacrimejantes e sua face pálida nos pediam socorro. E mesmo estando o menino aconchegado ao colo de sua avó, sua imagem era de sofrimento e abandono. Eu não aguentei a dor exposta, sou covarde às dores alheias, retirei-me em silêncio por sentir-me inválido diante do invisível. Voltei ao trabalho com pesar. Voltei para a minha realidade menos sofrida.

As minhas dores eram intensas. Chorava miúdo, andava pequeno e curvado. Meu choro era seco – um verdadeiro lamento. Lamentava-me por não ter o colo de quem eu amava para aquecer-me e curar-me naquele momento de dores intensas e invisíveis. Caminhava a passos curtos à procura da cura.

Em meu quarto, somente a penumbra me entendia e acariciava-me com mãos que afagam. Em tempo de dor, o sol permanecia lá fora, bem longe de meus olhos chorosos. A solidão, naquele momento, era a maior dor do mundo. Menino perdido num tempo ditado por uma linha dura.

Quando ela chegou, acompanhada de sua mãe, com ele nos braços, e entregou-me como se fosse um fardo pesado demais pra elas, eu chorei. Chorei pela dor existente; Chorei pela negligência velada; chorei pela distância provocada. Acalentei-o até a sua dor passar. Emprestei meu colo para aquecê-lo, cantei música de ninar até o sono chegar. O amor cura mais que tudo – ele pode curar o mundo; ele pode curar-me também.

Quando elas voltaram para apanhá-lo, ele já sorria - estava mais forte e muito mais bonito. Chorei miudinho, choro abafado, pra que ninguém escutasse a saudade guardada de uma vida inteira. Fiquei ali, vendo-os afastarem-se mais uma vez de mim. Horizonte perdido aos olhos de quem ama. O sol deu lugar para lua e as estrelas solidárias cobriram e aqueceram o meu corpo pálido. Deitei-me no colo materno e fui acalentado por mãos que curam.

A avó se mantinha calma diante da dor do netinho. Acalentava-o, com voz de passarinho - admirável amor avoengo.

A menininha, toda maquiada - se achava mocinha - comia pelas mãos pacientes de sua avó. Eram colheradas de amor pra alimentá-la por toda a vida. Avito-amor.

As correntes se arrastavam naquele terreno que um dia foi senzala – escutávamos os elos rangerem na voz da velha gorda contadora de histórias. Nossas caras assustadas e nossos corpos encolhidos, naquelas noites frias de lua azulada, eram a recompensa que a caolha esperava. Nossos medos, sua alegria.

Tudo era mágico, até o banho de tanque pra tirar o pretume de um dia de futebol e pipa. Mãos calejadas que esfregavam sem dó o corpo de menino-sujinho. Mãos de avó, sabão e muito choro hidrofóbico, compunham aqueles finais de tardes de estios. Retrato da vida em preto e branco – lembranças jamais esquecidas.

E, naquela tarde, a menininha deu-me tchau e sorriu. E, naquela mesma tarde, o menininho não chorou mais – acabaram as suas dores tão sofridas e reais.

E, naquela noite de lua alaranjada, retrocedi na minha linha do tempo, sai da condição de pai e virei filho e, neste caminho, encontrei-me neto e franzino; descobri-me amado, levado, triste e feliz. Sentimentos turbinados por ventanias repentinas.

E, sujo ou limpinho, eu tinha todo o carinho do mundo, mesmo com pesadas palmadas na bunda - registros do bem e do mal – a escolha era sempre minha. Se as mereciam? Aí já é outra questão. Não vou dá, agora, a minha mão a palmatória.

Olhei para o meu casaco pendurado no cabide e fui até ele sorrindo, tirei de dentro de seu bolso, o meu segredo: a maçã que tinha guardado escondido da menininha. Mordi-a e a saboreei com muito gosto todas as minhas lembranças. A menininha devolveu ao bolso de meu casaco o meu segredo: Lembranças embrulhadas em papel de seda.

Paulo Francisco