Off


Acampei na sala de estar. Cheguei com vontade de ouvir Bob Dylan. E ouvi. O meu corpo pedia paz, minha mente exigia descanso. Entre as almofadas viajei. Viajei numa tarde de sol, entre montanhas e nuvens azuis.

Cigarros e taças de vinho acompanharam-me. Criei imagens em nuvens só minhas. Abracei o sol e escorreguei em montanhas gigantes. Sorri. Gargalhei sozinho. Cantei com o Bob e, dormi ao som de sua gaita.

Dylan por toda casa. Fiz de minha sala de estar o meu Woodstock. Imagens psicodélicas na parede somente nos quadros existentes. No incensário fumaças perfumadas bailavam em figuras surreais. Acampei e dormi.

Os meus acampamentos sempre foram para trabalhos científicos, nunca para prazer. Não comi macarrão instantâneo, nem tomei café solúvel com leite condensado. Meus luaus eram de um dia e a minha cama sempre estava me esperando no final de tudo.

Acho interessante quando ouço que fulano foi acampar por puro prazer. Fico imaginando, ele chegando ao local desejado, armando a barraca, olhando ao redor com um sorriso de fazer inveja a cara do mais alegre dos palhaços. O vizinho mais próximo se encontra a dezenas de distância numa outra barraca.

Acho muito interessante este espírito aventureiro de tomar banho de rio ou cachoeira, dormir em colchonete e comer comidas improvisadas. Lambuzar-se todo de repelente, fazer fogueira para espantar bichos e numa rodinha ao redor dela ficar ouvindo o som de violão. No inverno, então, dormir em saco de dormir, acordar e molhar a cara em águas geladas, saudar a natureza e ficar desejando um dia bom.

Acampei em minha sala de estar. É o melhor que sei fazer.


Paulo Francisco

Limite

Eu descia tão distraído à rua que não a vi me esperando com seu jeito de menina do outro lado da pista. Levei um susto de alegria ao vê-la. Dois anos, três anos, nem sei mais. Fazia tanto tempo e continuava com o mesmo sorriso tranquilo nos olhos. Perguntei o que estava fazendo por ali e ela me respondeu que estava levando um exame ao seu médico. Tinha se casado e estava fazendo tratamento para engravidar. Sorri com o fato de ter se casado.  Era o que mais desejava – eu me lembro de como queria ser esposa e mãe. Um pedaço de seu desejo tinha se concretizado e o outro estava num envelope em suas mãos. Conversamos mais um pouco e nos despedimos com um abraço forte e demorado.  Não foi preciso olhar para trás. Guardei o seu telefone no bolso.

Segui o meu caminho com sorriso nos lábios. Gosto de encontrar com amigos e saber que estão felizes. Ela estava feliz e esperançosa. Eu? Bem... eu continuo caminhando e fazendo novos amigos por aí.  Sigo em frente olhando para os lados. Ainda há esperança em meus olhos.

Alguns minutos depois desse encontro casual cheguei ao meu encontro marcado. Não era um encontro de amor, era um encontro de dor. Ele chorava como uma criança. Chorava o mundo. Chorava em desespero espalhado. Meu amigo tinha acabado de se separar. Tinha em suas mãos a desesperança em uma mala. Tinha em seus olhos o desespero de um menino que perdera o jogo de futebol no último minuto – não tinha volta. Ele estava perdido - eu sabia o que ele sentia. E por saber daquele sentimento fiquei aflito. Tornei-me propositadamente passivo e o ouvi, ouvi e ouvi,  ouvi com os ouvidos da experiência. Ele não parava de falar e eu passivamente concordava com a cabeça e mais nada. Não tinha o que fazer naquela hora sombria. Permaneci neutro, ouvindo, ouvindo o homem xingar, chutar, esmurrar o vento, lavar o chão. Permaneci sentado assistindo a um flash-back em 3D.

Quando a ordem se estabeleceu, eu simplesmente lhe disse:

- Camarada, é a quarta separação da sua vida.

E ele me responde:

- Mas esta é a primeira vez que a separação não veio de mim.

Pensei em dizer-lhe  ¨ Então agora você vai saber o que as outras sentiram, seu babaca ¨, mas me limitei em dizer:

- Sempre tem uma primeira vez.

Depois de tudo calmo, voltei pra casa olhando para os lados a procura de fantasmas.  Não gosto de saber da infelicidade do outro. Prefiro ser solidário em sua alegria.  A felicidade não me incomoda, a tristeza sim. A felicidade do outro é volátil em mim, enquanto a tristeza gruda em minha alma. Torno-me triste por solidariedade. Uso preto e fico de luto. Torno-me carpideira de calças e choro até a última camada de terra. 

 Talvez seja por isso que pouco divido as minhas dores e as minhas tristezas.  Prefiro espalhar alegria.

Já estava pronto para dormir quando o telefone toca. Estava esgotado com tudo que aconteceu durante o dia. Ouvi, simplesmente ouvi, não queria conversar, não queria ser indelicado, mas acabei sendo. Uma terceira pessoa no mesmo dia eu não aguentaria.  Meu corpo é fraco, minha alma já tinha inquilino. Hoje não, hoje não!  – pensei em desespero. A ligação foi interrompida, o sinal ficou ocupado e os fantasmas dançaram de felicidade em meu quarto.

Demorei mas aprendi. Não me telefone no meio da noite pra falar de sua desgraça. Ligue para me fazer rir. Quero voltar a dormir com sorriso nos lábios e não com o cenho franzido.


Se eu moro sozinho, eu escolho as minhas companhias.


Paulo Francisco