Sensações




Acordei e já estava escuro. Fui trabalhar virado mais uma vez. Trabalhei até uma da tarde e voltei pra casa pra dormir e dormi. Acordei com a sensação cumprida. Dormi muito. Coisa rara em minha vida. Coisa rara, também, é a sensação de leveza ao acordar e ver de minha janela a lua tomando conta de mim. Geralmente estou com ela todo o tempo. Mas hoje, acordei e a surpreendi me olhando com ternura. Foi uma sensação gostosa, uma volta ao tempo em que acordava e tinham olhos a me vigiarem e, sentia-me protegido e querido por eles.
Olhos que vigiam. Às vezes, sinto-me vigiado, não pela lua de que tanto gosto, mas por olhos enigmáticos. Sim, por olhos que não sei ao certo, o que querem de mim.
Dizem por aí que a minha transparência está em meus olhos – eles me delatam. Talvez sim, talvez não. O que sei de verdade é que existem olhos que brilham no escuro e, sinto que há olhos felinos a vigiar-me; olhos rapineiros em busca do que comer; olhos que eu não gostaria de ver.
Caminhando pra casa, numa tarde dessas, vi um gavião na parte baixa de uma árvore, ele estava ali camuflado,  confundindo-se com a cor do tronco grosso da velha centenária. O danado estava à caça do que comer. Parei para observá-lo e pude ouvir do outro lado da rua, algazarras de pássaros no arbusto – pássaros apavorados, possivelmente. Tentei fotografar, mas tudo foi tão rápido que só consegui tirar uma foto quando o danado já estava no alto da árvore com o seu petisco preso em suas garras. Fascinou-me a ligeireza da faminta.
Caça e caçador. Às vezes, sinto-me uma presa fácil daqueles que me vigiam; às vezes tenho a sensação de que serei o próximo banquete da rapina camuflada se fingindo de gente.
As sensações são muitas. As incertezas ainda existem. Mas, as certezas, mesmo sendo poucas, são vitais para eu seguir caminhando com a cabeça erguida e em busca de olhos que me vigiem com amor como a lua. Quando acordei,lá estava ela velando o meu sono tranquilo.
A lua e ela. Caminhávamos em sonhos permeados de flores e certezas. Sim, de sonhos e certezas. Certezas de sermos e termos o maior amor do mundo. E tivemos. Sim, foi o maior amor do mundo. Maior que tudo. Mas um dia acordamos e o sonho que era doce se acabou. Mas só o sonho desfez-se, o amor não.
Hoje acordei com a sensação de que ela estava sentada num balanço de flores, lá longe, junto a lua, cercada de estrelas que brilhavam lágrimas e ao mesmo tempo torciam por mim.
Hoje eu acordei assim, com leveza -  como se estivesse na lua.





Paulo Francisco

Faces



Não sei o que é pior, ser vigiado ou ser ignorado. Eu sabia a hora exata em que ela passava pela rua onde eu morava. Adorava aquele jeitinho todo carioca de andar. Ela era uma graça.
- ¨Paaauuulooo! Sua deusa está passando! ¨
Corria pra vê-la da janela do apartamento, não dizia nada, apenas sorria quando percebia aquele seu olhar de soslaio. Foi assim por um bom tempo. Tempo bom, tempo de sonhos e aventuras.
Olhava as estrelas no céu como se elas fossem minhas. Sentia uma sensação absurda quando via uma estrela cadente – acreditava nos pedidos feitos. Era um explorador de nuvens.
Sentado no colo de minha mãe, eu namorava a lua enquanto ela e a vizinha conversavam sentadas no portão de casa. Dormia hipnotizado pelo brilho azul marinho celeste.
No final da semana passada, a lua estava absurdamente linda. Cheia e bela. Eu adoro quando a vejo assim: voluptuosa, transbordando sedução e, ao mesmo tempo, cercada por pequenas estrelas e ela, a minha lua, é a principal para os meus olhos gulosos e sedentos de amor.
No hotel, abri os olhos e percebi que ela ainda não tinha dormido, estava me observando, analisando, pensando, concluindo, ou sei lá o que mais. Eu abria os olhos e ela fechava os seus rapidamente. Deixei-a pensar que me observava secretamente. Precisava aliviar a queimação interior que me invadiu de repente. A dor da desilusão era maior e mais significante àquele momento.
Eu estava sendo vigiado e não sabia. Quando se aproximou de mim, ela já tinha a minha ficha completa. Não a condenaria se a aproximação fosse verdadeira e não uma tática pra pegar mais uma presa. Sim, ela era caçadora. Uma colecionadora de cabeças humanas. Agora anda por outras regiões farejando possíveis presas. Ser mitológico que nos transforma em sal. Escapei por pouco da medusa.
Eu ficava ali tomando conta das posturas dos dípteros. Não dormia vigiando cada fase larval, cada troca de muda, e a minha própria ecdise só aconteceria bem mais tarde.
Quando eu percebi, já estava isolado de todos e de tudo, fechado numa forma de cápsula. Ela transformou-me num eremita moderno, morador de uma caverna de concreto. Uma tática de quem me conhecia profundamente e sabia que eu jamais atingiria a quem amava. E eu a amava. Depois não. Acabei diluindo meus sentimentos. Mas continuei não querendo atingi-la. Pra quê? Já não valia mais a pena.
Entro em casa e ligo o computador e lá estava um recado nada agradável:
¨ As suas dores físicas são castigo de Deus, pelas dores emocionais que você nos transmite. ¨
A outra queria me vigiar, tomar conta de minha vida. Mas eu me transformara num ermitão dopado de noites vazias de estrelas e de luas nuas. Não queria mais algemas em meus pulsos.
A pupa era dura com pouco ar. Meu metabolismo era lento e angustiante. O movimento corporal se dava internamente e uma palidez cobria totalmente a minha derme mulata. Eu descorava a cada dia. Eu sabia que o meu corpo intumescido e desmaiado, a qualquer hora, reagiria e romperia aquela cápsula de quitina. Cripta aberta, alma liberta.
Busquei minha carga genética, lutei por ela, perdi alguns genes perfeitos, tornei-me débil, imbecilizado por um ar virulento. Minhas pernas atrofiaram-se, meus braços encurtaram-se e meu cérebro tornou-se aquoso. Vegetei num mundo de olhos grandes, bocas ferinas e mil tentáculos com ventosas nocivas. Trafeguei em dias nebulosos e em noites frias em total escuridão, meus pés sentiram a umidade lodosa de um pântano verde e cinza.  Mas transgredi o mal.
Saí da fase pupóide em que entrei. Rasguei com minhas mandíbulas as camadas existentes e as engoli, nutrindo-me do que já era meu. Sobrevivi de minha própria alma. Não mais me importavam as pernas perfeitas, os braços que a alcançavam. Minha mente ainda sã comandava as asas brotadas em minhas costas. Alçei voo pra nunca mais rastejar como verme ápodo em sua própria gosma. Tornei-me alado, livre, polinizador de flores e com elas, me perfumei e me nutri. Nunca mais ignorado, nunca mais vigiado por olhos de serpente.
Neste exato momento, acendo um cigarro com meu computador apoiado em minha coxa esquerda levemente levantada. Meus óculos tortos atrapalham-me a ter uma visão ampla de meu quarto. Estou enquadrado por duas lentes arranhadas e necessárias a minha sobrevivência. Sou cego de mim mesmo? Não me vejo por inteiro? Só eu sei. Preciso parar e fumar.
Não estou mais preso numa transição metamórfica lenta e abstrata. Sou um mutante em plena evolução. Sou gente se transformando em gente. Sou um homem adquirindo rugas e manchas. Meus medos não são mais químicos, são medos mecânicos, são medos palpáveis. Tenho medos, mas também tenho sonhos. Sim, ainda sonho; sim, ainda penso. Sim ainda quero.
Leio literaturas clássicas, revista científica e jornais de ontem. Caço palavras dentro dos olhos de quem me olha. Sinto a dor do mundo. Fujo da dor do mundo. Revolto-me com a dor do mundo. Torno-me cego diante da dor do mundo. O mundo dói e machuca.
Sou o próprio louco que ao ver a chuva cair em seu quintal fica nu para lavar a derme encardida de um passado negro e fétido. Os loucos também pensam.
Já não consumo leite como fórmula de diminuir o fogo existente em meu aparelho digestório. Fui células que se transformaram em tecidos e em órgãos – sou o resultado de vários sistemas que trabalham juntos em harmonia – sou um ser que vive, sou um ser-vivo.
Meu cérebro se agiganta e rompe o meu couro cabeludo. Sinto dores que cobrem toda a minha cabeça. Irradio sentimentos diversos. Fecho os meus olhos para enxergar-te melhor. Refaço-me e resgato-te.
Ouço uma voz:
- Paaauuuloooo! Sua deusa foi embora!
Quando abri os olhos, percebi que ela não mais existia.
Morro mil vezes e renasço mil vezes. Morro a cada dia, a cada hora, a cada segundo; morro a cada instante que ainda não veio. Renasço na mesma ligeireza. Tenho sede de alma, tenho sede de corpos. Tenho sede e fome de nuvens e estrelas. Grito ao mundo os meus temores. Grito aos deuses do tempo e da vida – Estou aqui! Estou vivo! Eu quero viver!
E vivo.
Sou o dono deste texto e subscrevo-me em metáforas, em histórias reais e ilusórias. Você decide por qual prisma que quer me ver.
Afinal, a interpretação é livre. E é assim que tem que ser.





Paulo Francisco