Não venha onde estou






A maioria dos meus amigos não consegue ficar sozinho. E como eu sou um eremita nato, mas não um homem das cavernas, eu sofro com seus apelos:

- Quando você vem aqui em casa?

- Não, não acredito que você vai me deixar almoçar sozinha em pleno domingo?

- Ah, vamos até São Paulo neste fim de semana?

- Já reservei hotel pra nós dois em BH...

- Olha tem uma exposição maravilhosa no Rio, vamos?!

- Sabe aquele almoço de sexta? Transferimos para um jantarzinho... Você vem, né?

- Posso ficar aí com você?

- Estou dando uma passadinha em Terê e pensei em ficar aí com você? Eu posso né?

-  O que você estava fazendo? Liguei várias vezes e você não atendeu.

- Menino, eu não sei como você consegue ficar ilhado por tanto tempo.

- Procurei por você até no Bar do João. Fiquei preocupada. Está namorando?

- Só não fui até aí porque sei que você só atende a campainha quando quer.

Consigo ficar por aqui e esquecer-me do mundo.  Claro que eu gosto de receber amigos, fazer uma reunião de quando em vez, ou visitá-los em dias frios.

Não quer me encontrar?! Então não vá ao teatro, não vá ao cinema, não vá à livraria, não vá ao show da semana, não vá ao bar do João. Ou simplesmente não visite o Parque Nacional em dias de Sol.

Talvez, a maioria dos meus amigos não consegue ficar sozinho, ou simplesmente se incomoda, erroneamente, com o fato de eu parecer um eremita.

Quem disse que o homem consegue viver sem companhia?  Pelo menos, eu não consigo. Não mesmo. As minhas paredes sabem disso.

Não venha onde estou porque estou morrendo de amor.


Paulo Francisco





Apoquentado




Incomoda-me este tempo indeciso de pouca visibilidade, de incerteza e medo.  Nuvens fechadas, em cima da minha cabeça, alagam a minha mente de lembranças de um passado não muito distante. Que venham à luz do sol, o brilho da lua e um céu empolado de estrelas. Chega de chuva, chega de medo, chega de indefinições.

Incomoda-me reviver o horror rasgado em relâmpagos e gritos, em trovões e desesperanças. Que venha o vento pra desmanchar os monstros Cumulonimbos  em Cirrus imaginários. Que venha a esperança pintada num azul celeste quase transparente.

O que fizemos para Zeus ficar tão zangado?

O seu medo era meu também. Não entendia porque tanto pavor de trovões e relâmpagos. Ela ficava escondida no corredor da casa protegida das janelas abertas. O seu medo silenciávamos. Éramos solidários em dias molhados. Ficávamos abraçados enrolados num lençol. Ela com medo do tempo, e eu com desejo a tempo.  Nossos rostos se mostravam na claridade do raio.

Cheguei encharcado ao encontro marcado  - Zeus chorava de ciúme. Mas logo o Sol voltou para alegrar o dia. Formou-se um arco-íris em nossas cabeças.

Ela me disse que gostava de caminhar na chuva.  Eu completei dizendo que gostava de vê-la molhada pelas lágrimas de Zeus. Rimos. Corremos para o trailer e curtimos a chuva bebendo água de coco com uísque num sossego marinho e nordestino.

- Filho, sai da chuva, você vai ficar doente.

- Filho, leva o guarda-chuva, vai chover mais tarde.

Mãe tem mania de achar que é a moça do tempo.  Olhava para cima e não via uma mancha cinza no céu, mas ela acertava, chovia no final da tarde.  E eu me molhava de teimosia. Chegava encharcado de vergonha. A bronca era certa como o Sol no outro dia.

Depois foi a minha vez de repetir as mesmas frases de preocupação no meu dia a dia. Quando a gente ama não tem jeito, vamos nos preocupar.  Amar é cuidar do outro mesmo quando ele não precisa – acho que li algo parecido no cartão do casalzinho do amar é... no velho jornal de todos os dias.

Incomoda-me esse tempo aquoso, de pouca luz e sem você.


Paulo Francisco


Sensações




Acordei e já estava escuro. Fui trabalhar virado mais uma vez. Trabalhei até uma da tarde e voltei pra casa pra dormir e dormi. Acordei com a sensação cumprida. Dormi muito. Coisa rara em minha vida. Coisa rara, também, é a sensação de leveza ao acordar e ver de minha janela a lua tomando conta de mim. Geralmente estou com ela todo o tempo. Mas hoje, acordei e a surpreendi me olhando com ternura. Foi uma sensação gostosa, uma volta ao tempo em que acordava e tinham olhos a me vigiarem e, sentia-me protegido e querido por eles.
Olhos que vigiam. Às vezes, sinto-me vigiado, não pela lua de que tanto gosto, mas por olhos enigmáticos. Sim, por olhos que não sei ao certo, o que querem de mim.
Dizem por aí que a minha transparência está em meus olhos – eles me delatam. Talvez sim, talvez não. O que sei de verdade é que existem olhos que brilham no escuro e, sinto que há olhos felinos a vigiar-me; olhos rapineiros em busca do que comer; olhos que eu não gostaria de ver.
Caminhando pra casa, numa tarde dessas, vi um gavião na parte baixa de uma árvore, ele estava ali camuflado,  confundindo-se com a cor do tronco grosso da velha centenária. O danado estava à caça do que comer. Parei para observá-lo e pude ouvir do outro lado da rua, algazarras de pássaros no arbusto – pássaros apavorados, possivelmente. Tentei fotografar, mas tudo foi tão rápido que só consegui tirar uma foto quando o danado já estava no alto da árvore com o seu petisco preso em suas garras. Fascinou-me a ligeireza da faminta.
Caça e caçador. Às vezes, sinto-me uma presa fácil daqueles que me vigiam; às vezes tenho a sensação de que serei o próximo banquete da rapina camuflada se fingindo de gente.
As sensações são muitas. As incertezas ainda existem. Mas, as certezas, mesmo sendo poucas, são vitais para eu seguir caminhando com a cabeça erguida e em busca de olhos que me vigiem com amor como a lua. Quando acordei,lá estava ela velando o meu sono tranquilo.
A lua e ela. Caminhávamos em sonhos permeados de flores e certezas. Sim, de sonhos e certezas. Certezas de sermos e termos o maior amor do mundo. E tivemos. Sim, foi o maior amor do mundo. Maior que tudo. Mas um dia acordamos e o sonho que era doce se acabou. Mas só o sonho desfez-se, o amor não.
Hoje acordei com a sensação de que ela estava sentada num balanço de flores, lá longe, junto a lua, cercada de estrelas que brilhavam lágrimas e ao mesmo tempo torciam por mim.
Hoje eu acordei assim, com leveza -  como se estivesse na lua.





Paulo Francisco

Faces



Não sei o que é pior, ser vigiado ou ser ignorado. Eu sabia a hora exata em que ela passava pela rua onde eu morava. Adorava aquele jeitinho todo carioca de andar. Ela era uma graça.
- ¨Paaauuulooo! Sua deusa está passando! ¨
Corria pra vê-la da janela do apartamento, não dizia nada, apenas sorria quando percebia aquele seu olhar de soslaio. Foi assim por um bom tempo. Tempo bom, tempo de sonhos e aventuras.
Olhava as estrelas no céu como se elas fossem minhas. Sentia uma sensação absurda quando via uma estrela cadente – acreditava nos pedidos feitos. Era um explorador de nuvens.
Sentado no colo de minha mãe, eu namorava a lua enquanto ela e a vizinha conversavam sentadas no portão de casa. Dormia hipnotizado pelo brilho azul marinho celeste.
No final da semana passada, a lua estava absurdamente linda. Cheia e bela. Eu adoro quando a vejo assim: voluptuosa, transbordando sedução e, ao mesmo tempo, cercada por pequenas estrelas e ela, a minha lua, é a principal para os meus olhos gulosos e sedentos de amor.
No hotel, abri os olhos e percebi que ela ainda não tinha dormido, estava me observando, analisando, pensando, concluindo, ou sei lá o que mais. Eu abria os olhos e ela fechava os seus rapidamente. Deixei-a pensar que me observava secretamente. Precisava aliviar a queimação interior que me invadiu de repente. A dor da desilusão era maior e mais significante àquele momento.
Eu estava sendo vigiado e não sabia. Quando se aproximou de mim, ela já tinha a minha ficha completa. Não a condenaria se a aproximação fosse verdadeira e não uma tática pra pegar mais uma presa. Sim, ela era caçadora. Uma colecionadora de cabeças humanas. Agora anda por outras regiões farejando possíveis presas. Ser mitológico que nos transforma em sal. Escapei por pouco da medusa.
Eu ficava ali tomando conta das posturas dos dípteros. Não dormia vigiando cada fase larval, cada troca de muda, e a minha própria ecdise só aconteceria bem mais tarde.
Quando eu percebi, já estava isolado de todos e de tudo, fechado numa forma de cápsula. Ela transformou-me num eremita moderno, morador de uma caverna de concreto. Uma tática de quem me conhecia profundamente e sabia que eu jamais atingiria a quem amava. E eu a amava. Depois não. Acabei diluindo meus sentimentos. Mas continuei não querendo atingi-la. Pra quê? Já não valia mais a pena.
Entro em casa e ligo o computador e lá estava um recado nada agradável:
¨ As suas dores físicas são castigo de Deus, pelas dores emocionais que você nos transmite. ¨
A outra queria me vigiar, tomar conta de minha vida. Mas eu me transformara num ermitão dopado de noites vazias de estrelas e de luas nuas. Não queria mais algemas em meus pulsos.
A pupa era dura com pouco ar. Meu metabolismo era lento e angustiante. O movimento corporal se dava internamente e uma palidez cobria totalmente a minha derme mulata. Eu descorava a cada dia. Eu sabia que o meu corpo intumescido e desmaiado, a qualquer hora, reagiria e romperia aquela cápsula de quitina. Cripta aberta, alma liberta.
Busquei minha carga genética, lutei por ela, perdi alguns genes perfeitos, tornei-me débil, imbecilizado por um ar virulento. Minhas pernas atrofiaram-se, meus braços encurtaram-se e meu cérebro tornou-se aquoso. Vegetei num mundo de olhos grandes, bocas ferinas e mil tentáculos com ventosas nocivas. Trafeguei em dias nebulosos e em noites frias em total escuridão, meus pés sentiram a umidade lodosa de um pântano verde e cinza.  Mas transgredi o mal.
Saí da fase pupóide em que entrei. Rasguei com minhas mandíbulas as camadas existentes e as engoli, nutrindo-me do que já era meu. Sobrevivi de minha própria alma. Não mais me importavam as pernas perfeitas, os braços que a alcançavam. Minha mente ainda sã comandava as asas brotadas em minhas costas. Alçei voo pra nunca mais rastejar como verme ápodo em sua própria gosma. Tornei-me alado, livre, polinizador de flores e com elas, me perfumei e me nutri. Nunca mais ignorado, nunca mais vigiado por olhos de serpente.
Neste exato momento, acendo um cigarro com meu computador apoiado em minha coxa esquerda levemente levantada. Meus óculos tortos atrapalham-me a ter uma visão ampla de meu quarto. Estou enquadrado por duas lentes arranhadas e necessárias a minha sobrevivência. Sou cego de mim mesmo? Não me vejo por inteiro? Só eu sei. Preciso parar e fumar.
Não estou mais preso numa transição metamórfica lenta e abstrata. Sou um mutante em plena evolução. Sou gente se transformando em gente. Sou um homem adquirindo rugas e manchas. Meus medos não são mais químicos, são medos mecânicos, são medos palpáveis. Tenho medos, mas também tenho sonhos. Sim, ainda sonho; sim, ainda penso. Sim ainda quero.
Leio literaturas clássicas, revista científica e jornais de ontem. Caço palavras dentro dos olhos de quem me olha. Sinto a dor do mundo. Fujo da dor do mundo. Revolto-me com a dor do mundo. Torno-me cego diante da dor do mundo. O mundo dói e machuca.
Sou o próprio louco que ao ver a chuva cair em seu quintal fica nu para lavar a derme encardida de um passado negro e fétido. Os loucos também pensam.
Já não consumo leite como fórmula de diminuir o fogo existente em meu aparelho digestório. Fui células que se transformaram em tecidos e em órgãos – sou o resultado de vários sistemas que trabalham juntos em harmonia – sou um ser que vive, sou um ser-vivo.
Meu cérebro se agiganta e rompe o meu couro cabeludo. Sinto dores que cobrem toda a minha cabeça. Irradio sentimentos diversos. Fecho os meus olhos para enxergar-te melhor. Refaço-me e resgato-te.
Ouço uma voz:
- Paaauuuloooo! Sua deusa foi embora!
Quando abri os olhos, percebi que ela não mais existia.
Morro mil vezes e renasço mil vezes. Morro a cada dia, a cada hora, a cada segundo; morro a cada instante que ainda não veio. Renasço na mesma ligeireza. Tenho sede de alma, tenho sede de corpos. Tenho sede e fome de nuvens e estrelas. Grito ao mundo os meus temores. Grito aos deuses do tempo e da vida – Estou aqui! Estou vivo! Eu quero viver!
E vivo.
Sou o dono deste texto e subscrevo-me em metáforas, em histórias reais e ilusórias. Você decide por qual prisma que quer me ver.
Afinal, a interpretação é livre. E é assim que tem que ser.





Paulo Francisco

Off


Acampei na sala de estar. Cheguei com vontade de ouvir Bob Dylan. E ouvi. O meu corpo pedia paz, minha mente exigia descanso. Entre as almofadas viajei. Viajei numa tarde de sol, entre montanhas e nuvens azuis.

Cigarros e taças de vinho acompanharam-me. Criei imagens em nuvens só minhas. Abracei o sol e escorreguei em montanhas gigantes. Sorri. Gargalhei sozinho. Cantei com o Bob e, dormi ao som de sua gaita.

Dylan por toda casa. Fiz de minha sala de estar o meu Woodstock. Imagens psicodélicas na parede somente nos quadros existentes. No incensário fumaças perfumadas bailavam em figuras surreais. Acampei e dormi.

Os meus acampamentos sempre foram para trabalhos científicos, nunca para prazer. Não comi macarrão instantâneo, nem tomei café solúvel com leite condensado. Meus luaus eram de um dia e a minha cama sempre estava me esperando no final de tudo.

Acho interessante quando ouço que fulano foi acampar por puro prazer. Fico imaginando, ele chegando ao local desejado, armando a barraca, olhando ao redor com um sorriso de fazer inveja a cara do mais alegre dos palhaços. O vizinho mais próximo se encontra a dezenas de distância numa outra barraca.

Acho muito interessante este espírito aventureiro de tomar banho de rio ou cachoeira, dormir em colchonete e comer comidas improvisadas. Lambuzar-se todo de repelente, fazer fogueira para espantar bichos e numa rodinha ao redor dela ficar ouvindo o som de violão. No inverno, então, dormir em saco de dormir, acordar e molhar a cara em águas geladas, saudar a natureza e ficar desejando um dia bom.

Acampei em minha sala de estar. É o melhor que sei fazer.


Paulo Francisco