Pombo-correio





Até os pombos-correio cansam! Acordei com um arrulhar familiar em minha sacada – era um pombo. Aparentemente cansado e assustado. Estava ele cansado por que o seu destino era distante? Ou estava ele assustado por que a rapina o espreitava?

Não é comum avistar-se pombos por aqui. Principalmente em minha casa. Aqui, somente aves com certo exotismo. Não que os ache feios, mas é mais comum vê-los em praças publicas sendo alimentados por velhas senhoras e assustados por crianças que cismam em agarrá-los, fazendo-os levantarem voos repentinos, sujando tudo de penas e espalhando suas fezes secas causadoras de alergia respiratória e micoses em nós- humanos.  Merda de pombo mata!

O pombo em minha sacada me fez lembrar quando morava no subúrbio do Rio e, acabei tendo uma discussão daquelas com um velho cantor aposentado (hoje morto), que me acordava de manhazinha com seu radinho estridente na sua sala que dava, infelizmente, de frente para o meu quarto. O velho cantor odiava pombo, e eu a sua mania de ouvir rádio alto às seis da manhã. Na época, trabalhava na minha tese de mestrado até altas horas e dormia na parte da manhã até ao meio dia.

Certo dia, fui acordado pelos seus berros de protestos por causa de um ninho de pombo na abertura do ar condicionado de um dos meus quartos. A discussão foi feia e aproveitei a ocasião pra despejar a bronca que estava dele e disse:

- Merda contagiosa é o seu rádio às seis da manhã! Eles vão ficar por aqui e pronto. Você vive perturbando o sono alheio e ninguém chegou até você pra te ofender. Vai balançar o seu lencinho em outra freguesia.

Eu sabia que ele estava coberto de razão. A Columba Lívia ( a pombinha da paz ) é uma ave perigosa pra nós humanos. Que o diga o LC.(não fui autorizado dizer o seu nome) que foi parar na Fiocruz depois de ter passado por vários médicos e exames. Somente no Instituto de pesquisa que o camarada soube, com certeza, que sua enfermidade adveio das fezes de pombo. Numa investigação mais detalhada veio a surpresa que sua doença foi ocasionada por ter respirado os microorganismos num quarto de motel com o ar condicionado ligado numa transa pra lá de animal. Merda de pombo mata!  Escapadelas também!

Já fui acordado com pássaro em minha cabeceira; Já fui assustado por gatos, sapos, caranguejeiras, ouriços, gambás, cobras e outros bichinhos estranhos – quem manda morar no mato, quer ser assustado por ladrão, vai morar na cidade.

As maritacas são aves que alegram-me - gosto de suas algazarras sempre em bando -, O gavião e o facão são os que me fascinam. Estava deitado em minha rede quando o gavião batia suas asas, calmamente, num voo de predador. Adoro a sua certeza no abate as suas vítimas. Ave de rapina que me fascina.

 Ela ficou, ali, girando ao meu redor por muito tempo, quase que a danada me bicou. Mas mesmo não sendo um especialista em aves – um ornitólogo - e muito menos em galináceos, consegui a tempo desmascarar a danada. Merda de outras aves também pode matar.

Mas, voltando para a ave que me fez escrever este texto, fui até a sacada e não mais a encontrei, possivelmente o bilhete não era pra mim. Certamente ele parara pra descansar e partiu para o endereço certo.

Só espero que não seja um daqueles pombos- correio que estavam levando drogas e celulares para o presídio. Já pensou!? Eu sendo preso por ser cúmplice de um pombo-traficante? Ah, mas esses pombos voavam lá no interior de São Paulo. Por aqui, eles usam o bicho–homem  para tais tarefas.  Merda humana também mata.







Paulo Francisco



O melhor possível




Meus desejos são brandos. Nada que eu não possa obter. Desejo o possível - uma maneira de realizá-lo sem me frustrar. Adquiri este comportamento ainda na infância. Nada de pedir presentes que o bolso de meu pai não alcançasse. Na rua, a passeio, os desejos eram guardados em meus olhos. Não podíamos pedir nada. Tínhamos que esperar nos oferecer. Sou assim até hoje. Só desejo o que é possível - o impossível guardo na retina.

Mas o que é o possível e o que é o impossível? Claro que desejar ter um carro popular é mais fácil que desejar uma Ferrari; um apartamento de dois quartos que uma cobertura. Mas nem a Ferrari, nem a cobertura são desejos impossíveis. Podem ser desejos difíceis de serem alcançados, mas não impossíveis – não vou entrar no mérito da questão.

Mas existem coisas que são tão possíveis de serem impossíveis, e outras tão impossíveis de serem possíveis. Redundante? Acho que sim.

Mas o amor é redundante. Ele sobrevive na abundância, no excesso. Amor calmo é amor descansado. Amar cansa, é exercício diário.

Exercito todos os dias o amor que tenho dentro de mim.





Ontem, a Maria pediu para eu ligar pra a Valéria. Ligar pra ela é tão possível; ir a sua casa é tão possível e, às vezes, ficamos somente pelo computador em frases curtas.

Hoje, acordei com vontade de fazer coisas possíveis – liguei pra Val. Liguei pra minha irmã Ana, liguei pra mãe de meu filho e não brigamos – uma coisa quase impossível de acontecer. Tirei um livro da estante para reler, fiz um poema. Possivelmente vou sair daqui para almoçar no sobradinho e, garimpar livros no sebo e passear entre as gôndolas da livraria da Cidade.

Aprendi a transformar o impossível em possível. Na impossibilidade de minhas mãos não alcançarem as estrelas eu as desenho num papel azul. Na possibilidade de meus olhos não alcançarem os seus, eu fecho os meus e sonho com os dela.

Hoje, eu acordei assim: impossibilitado de não pensar em ti.


Paulo Francisco

Não venha onde estou






A maioria dos meus amigos não consegue ficar sozinho. E como eu sou um eremita nato, mas não um homem das cavernas, eu sofro com seus apelos:

- Quando você vem aqui em casa?

- Não, não acredito que você vai me deixar almoçar sozinha em pleno domingo?

- Ah, vamos até São Paulo neste fim de semana?

- Já reservei hotel pra nós dois em BH...

- Olha tem uma exposição maravilhosa no Rio, vamos?!

- Sabe aquele almoço de sexta? Transferimos para um jantarzinho... Você vem, né?

- Posso ficar aí com você?

- Estou dando uma passadinha em Terê e pensei em ficar aí com você? Eu posso né?

-  O que você estava fazendo? Liguei várias vezes e você não atendeu.

- Menino, eu não sei como você consegue ficar ilhado por tanto tempo.

- Procurei por você até no Bar do João. Fiquei preocupada. Está namorando?

- Só não fui até aí porque sei que você só atende a campainha quando quer.

Consigo ficar por aqui e esquecer-me do mundo.  Claro que eu gosto de receber amigos, fazer uma reunião de quando em vez, ou visitá-los em dias frios.

Não quer me encontrar?! Então não vá ao teatro, não vá ao cinema, não vá à livraria, não vá ao show da semana, não vá ao bar do João. Ou simplesmente não visite o Parque Nacional em dias de Sol.

Talvez, a maioria dos meus amigos não consegue ficar sozinho, ou simplesmente se incomoda, erroneamente, com o fato de eu parecer um eremita.

Quem disse que o homem consegue viver sem companhia?  Pelo menos, eu não consigo. Não mesmo. As minhas paredes sabem disso.

Não venha onde estou porque estou morrendo de amor.


Paulo Francisco





Apoquentado




Incomoda-me este tempo indeciso de pouca visibilidade, de incerteza e medo.  Nuvens fechadas, em cima da minha cabeça, alagam a minha mente de lembranças de um passado não muito distante. Que venham à luz do sol, o brilho da lua e um céu empolado de estrelas. Chega de chuva, chega de medo, chega de indefinições.

Incomoda-me reviver o horror rasgado em relâmpagos e gritos, em trovões e desesperanças. Que venha o vento pra desmanchar os monstros Cumulonimbos  em Cirrus imaginários. Que venha a esperança pintada num azul celeste quase transparente.

O que fizemos para Zeus ficar tão zangado?

O seu medo era meu também. Não entendia porque tanto pavor de trovões e relâmpagos. Ela ficava escondida no corredor da casa protegida das janelas abertas. O seu medo silenciávamos. Éramos solidários em dias molhados. Ficávamos abraçados enrolados num lençol. Ela com medo do tempo, e eu com desejo a tempo.  Nossos rostos se mostravam na claridade do raio.

Cheguei encharcado ao encontro marcado  - Zeus chorava de ciúme. Mas logo o Sol voltou para alegrar o dia. Formou-se um arco-íris em nossas cabeças.

Ela me disse que gostava de caminhar na chuva.  Eu completei dizendo que gostava de vê-la molhada pelas lágrimas de Zeus. Rimos. Corremos para o trailer e curtimos a chuva bebendo água de coco com uísque num sossego marinho e nordestino.

- Filho, sai da chuva, você vai ficar doente.

- Filho, leva o guarda-chuva, vai chover mais tarde.

Mãe tem mania de achar que é a moça do tempo.  Olhava para cima e não via uma mancha cinza no céu, mas ela acertava, chovia no final da tarde.  E eu me molhava de teimosia. Chegava encharcado de vergonha. A bronca era certa como o Sol no outro dia.

Depois foi a minha vez de repetir as mesmas frases de preocupação no meu dia a dia. Quando a gente ama não tem jeito, vamos nos preocupar.  Amar é cuidar do outro mesmo quando ele não precisa – acho que li algo parecido no cartão do casalzinho do amar é... no velho jornal de todos os dias.

Incomoda-me esse tempo aquoso, de pouca luz e sem você.


Paulo Francisco


Sensações




Acordei e já estava escuro. Fui trabalhar virado mais uma vez. Trabalhei até uma da tarde e voltei pra casa pra dormir e dormi. Acordei com a sensação cumprida. Dormi muito. Coisa rara em minha vida. Coisa rara, também, é a sensação de leveza ao acordar e ver de minha janela a lua tomando conta de mim. Geralmente estou com ela todo o tempo. Mas hoje, acordei e a surpreendi me olhando com ternura. Foi uma sensação gostosa, uma volta ao tempo em que acordava e tinham olhos a me vigiarem e, sentia-me protegido e querido por eles.
Olhos que vigiam. Às vezes, sinto-me vigiado, não pela lua de que tanto gosto, mas por olhos enigmáticos. Sim, por olhos que não sei ao certo, o que querem de mim.
Dizem por aí que a minha transparência está em meus olhos – eles me delatam. Talvez sim, talvez não. O que sei de verdade é que existem olhos que brilham no escuro e, sinto que há olhos felinos a vigiar-me; olhos rapineiros em busca do que comer; olhos que eu não gostaria de ver.
Caminhando pra casa, numa tarde dessas, vi um gavião na parte baixa de uma árvore, ele estava ali camuflado,  confundindo-se com a cor do tronco grosso da velha centenária. O danado estava à caça do que comer. Parei para observá-lo e pude ouvir do outro lado da rua, algazarras de pássaros no arbusto – pássaros apavorados, possivelmente. Tentei fotografar, mas tudo foi tão rápido que só consegui tirar uma foto quando o danado já estava no alto da árvore com o seu petisco preso em suas garras. Fascinou-me a ligeireza da faminta.
Caça e caçador. Às vezes, sinto-me uma presa fácil daqueles que me vigiam; às vezes tenho a sensação de que serei o próximo banquete da rapina camuflada se fingindo de gente.
As sensações são muitas. As incertezas ainda existem. Mas, as certezas, mesmo sendo poucas, são vitais para eu seguir caminhando com a cabeça erguida e em busca de olhos que me vigiem com amor como a lua. Quando acordei,lá estava ela velando o meu sono tranquilo.
A lua e ela. Caminhávamos em sonhos permeados de flores e certezas. Sim, de sonhos e certezas. Certezas de sermos e termos o maior amor do mundo. E tivemos. Sim, foi o maior amor do mundo. Maior que tudo. Mas um dia acordamos e o sonho que era doce se acabou. Mas só o sonho desfez-se, o amor não.
Hoje acordei com a sensação de que ela estava sentada num balanço de flores, lá longe, junto a lua, cercada de estrelas que brilhavam lágrimas e ao mesmo tempo torciam por mim.
Hoje eu acordei assim, com leveza -  como se estivesse na lua.





Paulo Francisco