Prazerosamente

















A chaleira apita lá na cozinha. Saio de minha mesa e vou preparar um café. Coloco o pó no coador e despejo lentamente a água quente sobre ele. Viajo naquela transformação. A água, que antes era inodora, insípida e translúcida, se transforma num líquido marrom e aromático. Desce do coador para o bule a minha vontade, a minha alquimia.

Mas a minha viagem não para na mistura do sólido ao líquido. Eu vejo que além desta transformação a água também muda seu estado físico – ela evapora – formando uma nuvenzinha dançante, frenética, quase transparente, escapando dos meus olhos e desejos. Não ligo. O que eu quero está aprisionado no bule.

Olho para a xícara e para a caneca e, resolvo apoderar-me da caneca. Ela cabe mais café e, eu, estou sedento de vontade.

Volto para o escritório e começo a sorver lentamente aquele líquido quente e marrom. Sorvo em goles pequenos. Degusto-o como se fosse o mais sagrado dos líquidos.

Nem amargo, nem muito doce – ele está perfeito no sabor e na temperatura. Deixo tudo que estava fazendo pra ficar ali soprando aquele liquido quente e admirando minha vista da janela lateral. Ali vejo casas, pessoas, carros, montanhas e um céu alaranjado.

Deixo o líquido aquecer minha língua e garganta, percebo quando chega a meu estômago. Cada gole, um dever cumprido, uma vontade saciada.

E no último gole a surpresa no fundo da caneca, aquele liquido, nem amargo e nem doce, se mistura ao açúcar que sobrara, ofertando-me, naquele último gole, uma pasta morena cheio de afeto.

Saciado, volto à cozinha e, devolvo a caneca ao seu lugar, mas antes, lavo-a com a mesma água que antes se transformara em café e vapor.



Paulo Francisco


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Esconderijo

Nesta manhã de nuvens chorosas me guardo em pensamentos. Dia de contemplação. Contemplo o teu olhar guardado em mim.

Em manhãs cobertas por véu de noiva me deito em sonho. Transpasso meu sentir e chego do outro lado do pote de ouro. Em manhãs assim, desvario. Faço e refaço caminhos. Chego até você.

Sempre fui um grande viajante do tempo. Minhas viagens eram transcendentais. Viajava em naves espaciais com ETs criados por mim – nunca eram tão feios como nos filmes. Conseguia me ver em grandes caravanas em zonas áridas – verdadeiros desertos.

Cresci e não consegui me livrar dessas viagens transcendentais. Passaram a ser mais coloridas, mais alegres - mas eram ainda minhas viagens.

Mais tarde, já adulto, pareceu-me que este lado aluado de pensar acabaria. Que nada, ele se transformou em pensamentos desejados. Vontades a serem adquiridas - Passei a escrever. Criava paisagens, sentimentos, rostos e amores. Criava, inventava. Era real dentro das minhas possibilidades. Minha invencionice tinha relevo, curvas, brilhos e muita, muita, muita cor. Tornei-me pintor de mim mesmo.

E nestas manhãs de nuvens chorosas me guardo em abrigos. Sou mais pó. Sou fácil de ser levado ao léu. E pra que isto não aconteça, penso em asas e correntes termais. Transporto-me para além das montanhas; pra além das nuvens densas. Para além de pensamentos esquálidos. Transporto-me em luzes suaves de ton-sur-ton. Chego ao meu destino em pouso tranquilo. Deito em seu colo. Durmo em seu peito.

Mas pra que tudo isto aconteça, em dias assim, tenho que ter o seu olhar dentro de mim.

Nestas dias de nuvens chorosas me guardo em ti.



Paulo Francisco

Secretamente sim

¨ Me Leva com você¨.

Ao ler o poema dela senti uma vontade imensa de responder. Mas não podia naquele exato momento expor os meus sentimentos – estava poluído. Sim, estava poluído de outras ideias e não queria que tais pensamentos interferissem no meu pensar.

Ao ler o seu poema, senti o desejo de estar bem juntinho dela, de seguir com ela em pensamentos coloridos; sorrir com os olhos, dizer baixinho em sua orelha palavras de amor.

Sim, senti uma tremenda vontade de responder aquele poema - responder de mansinho; seguir de mãos dadas em caminhos naturais de pedras. Passear em ruas de janelas e portas coloridas. Ah! Mergulhei em suas palavras e agarrei-me em seus pensamentos. Desejei tê-la, tê-la como o pássaro tem o céu; tê-la como os peixes têm o mar; tê-la só pra mim.

Quando li o seu poema, eu sorri. Sorri com os olhos. Abracei seu coração bem apertado. Vi a lua crescendo em cores, o mar em furta-cor, o céu azul carregado de estrelas. O ar, o ar me tocava da mesma forma que a tocava: man-sa-men-te.

Sim, caminhei em ruas de pedras, becos e esquinas pensando nela.

Sim, segurei sua mão e a levei para meu coração.

Sim, repeti baixinho suas palavras de amor.

Sim, gritei em seu silêncio e escorri pelas suas veias.

Sim, carreguei em meus braços e a trouxe para mim.

Quando eu a li, viajei no imaginário; viajei na poesia da alma; viajei em barco a vela. Caminhei em estradas floridas e mergulhei em águas frescas.

Tem poema que nos invade de maneira avassaladora. Tem poema que nos transporta para um mundo virtual e tão real. Tem poema que nos faz acreditar que foi escrito exclusivamente pra nós. Tem poema que nos acaricia com beijos. Tem poema que nos cobre em cores e grita o nosso nome ao mundo.

¨Me leva com você¨.

Ao ler o seu poema senti uma vontade imensa de dizer a ela:

- Sim, venha comigo, que eu te darei todas as cores e gritarei seu nome ao universo.

Leve-me também com você!



Paulo Francisco



Revés






Acordei e não estava em minha casa. Meu joelho direito doía, minha canela esquerda ardia. Sangue escorria perna abaixo. Meu ombro doía. Não era transparente a caixa em que dormia, não havia flores dentro dela. Havia terra em minha cara, minha boca doía. O ar não chegava com facilidade aos meus pulmões.
Levantei e tentei chegar do outro lado da rua. Era noite. Era madrugada. Estava frio e meu corpo ardia. Não conseguia me movimentar com a rapidez que desejava. A dor puxava meu corpo para baixo.
Sentei-me no degrau da escadaria. Urrei de dor, mas, ninguém me ouvia. Contraí todo o meu corpo sujo e manchado. Fechei os olhos e me esqueci do mundo.
Acordei aliviado.  Ainda me encontrava vivo. Andei lento e desesperadamente até o outro lado da cidade. Trôpego, tudo era grande e distante.  Não tinha tempo pra chorar, não tinha tempo pra lamentar. Queria chegar há algum lugar conhecido. A dor voltou, o ardor voltou, o desespero tomava conta de minha alma.
O céu estava negro. As ruas estavam escuras. Uma nuvem acinzentada distorcia a minha visão. Ninguém me lia.
Meus olhos inchados pediam socorro, minhas pernas pediam amparo. Ninguém me via.
Não era mais um sonho. Eu estava acordado e perdido. Zonzo, minha cabeça pesava. Era real a dor existente. Era real o sangue esvaído. Era real o sangue cuspido.
Sentei-me no banco de madeira. A caixa não era uma caixa. Era um caixão. Lembrei-me de algumas passagens anteriores ao fato ocorrido: Eu estava preso por um cordão, as flores não eram flores - eram folhas secas e quebradiças. Eu saíra de um caixão de madeira. Ainda sonhava – já não sabia.
Abri os olhos e me vi dentro de um táxi. Seguia para a minha casa. Meu corpo sofria. Procurei a chave, abri o portão, subi a escada em passos paralíticos. Engatinhei, rastejei até o meu quarto.
Urrei de dor. Desmaiei, talvez.
Acordei e percebi que estava caído no piso gelado do banheiro. Minha cabeça pesava, meu corpo pesava, minhas pernas ardiam.
Acordei e descobri que já era dia, o céu estava azul e o sol me invadia.
Acordei e descobri que tinha sido acidentado. Mas, não me lembrava em que dia.
Agora estou aqui deitado, tentando separar o delírio da realidade.
A única certeza, de tudo isso, é que tenho minhas pernas feridas, dor pelo corpo inteiro e, que acordei pra mais um dia de atropelos.


Paulo Francisco

Vou(de novo!)

Eu sabia que ela tinha sumido porque precisava se concentrar em algo muito importante. Ela tinha que canalizar toda a sua energia em seu objetivo maior. Gosto disso. Gosto de pessoas decididas, principalmente de mulheres decididas. Mas quando o seu objetivo é o amor, ela fica tímida, com medo de ser vulgar, de ser oferecida.  -  ¨ Parem de ser oferecidas meninas!¨ Minha mãe dizia para as minhas irmãs quando estavam perto de algum garoto.  Mãe conhece os filhos que têm.

Se não fossem as meninas oferecidas, eu não namoraria nunca, tamanha a minha timidez. Benditas sejam as mulheres oferecidas que rasgam a carta das recatadas e caem em meus braços de corpo e alma

Deixe a elegância pra depois, venha sem véu, venha e me faça teu. Todos sabem que escrevo ao amor, que escrevo o que tenho em mim e o que tenho em sonho. Sou um sonhador nato. Acredito em mãos dadas, olhos que brilham em desejos e bocas sedentas em beijar. Acredito em corpos colados.

Hoje  acordei com a alma apertada, estava com saudade dela, estava com vontade de amá-la, mesmo que fosse por palavras escritas, tudo bem, eu as transformaria e a ouviria em mim. Hoje  acordei assim, um tanto tango, um tanto bolero, um tanto saudoso de um futuro que está por vir.

Ontem, minha comadre Mônica me ligou e foi logo dizendo: ¨ Tomou chá de sumiço! ¨ Ri, tinha tomado sim, estava querendo ficar aqui, isolado escrevendo poemas bobos, prosas sem nexos, ouvindo o tempo gritar através das folhas frenéticas presas as árvores e barulhinho de pingo de chuva na vidraça da porta.

Mas a saudade não pode vencer-me por inteiro. Fui à luta. Fui andar por aí. Tenho pra onde ir.

Caminhei engolindo nuvens e me molhando de estrelas.  Estava um tanto desligado de tudo, como na musica dos mutantes, cantada por tantos cantores e cantoras. Viajava sem nenhum subterfúgio, simplesmente viajava, flutuava em sonhos e galopava em desejos.

Fazer o quê? Se na minha andança eu não conseguia ver nada que não fosse o seu rosto? Tem gente que mexe com a gente dessa maneira: faz-nos de gato e sapato mesmo sem saber que faz.

Mas antes que eu me transforme em couro de tamborim e seja jogado num canto qualquer da casa, vou à luta.

Dizem por aí quem vai a roça perde a carroça. Mesmo assim, vou visitar meus compadres e afilhada por aquelas bandas. Vou sim.



Paulo Francisco