Territorial


Acordei e fui logo pro sol lagartear. Fiquei ali por pelo menos uma hora, lendo e absorvendo o sol de uma manhã de inverno. Se o inverno acorda com o sol e, se neste dia eu posso curti-lo, transmuto-me em réptil. Sento-me num banco de praça ou deito na grama e me aqueço em leituras.

Hoje moro na serra de Teresópolis. Troquei o mar pela montanha; o calor pelo clima ameno; a neurose pela tranquilidade. Posso dizer que o meu calmante é o meu lar. Aqui me sinto soberano. Faço o que quero e quando eu quero. As regras (quase nenhuma) criadas por mim podem ser quebradas a qualquer momento – não tenho sindico para me multar e nem vizinho para me dedurar. Sou livre em meu espaço. Minha casa, minha oca.

Aqui recebo quem eu quero e quando há invasão, é invasão permitida. Permito turismo com bilhete de chegada e partida. Nada de green card; nada de território livre; nada de fronteiras abertas. Minha casa, meu Estado.

Mercorsul! Só em beijinhos e carícias.

Preservo minha natureza com pequenas ementas, passíveis de uma redação maior.

Confesso que nada é pra sempre. Posso mudar minhas regras a qualquer momento. Sou livre pra isso. Vantagem adquirida. Mesmo que pra isto transforme meu território em Faixa de gaza. Aqui tenho o livre arbítrio.

Afinal, Paraíso só o bairro em que moro.

Mas, por enquanto, vou lagarteando em gramas e redes, só absorvendo, só anotando, só adquirindo energia e conhecimento.


Paulo Francisco



(Ainda sem conexão)

Hibernação



Tudo nublado. Lá fora o tempo canta dia frio e apagado. Deito-me em protesto ao sol que não veio. Cubro-me para esconder-me do ar gélido que vem da janela. Todos sabem que eu não gosto de dias cinza. Torno-me mais preguiçoso que devia. Perco o meu dia entre cobertas e respiração em ar viciado.

Sou totalmente descompromissado comigo. Estou sempre no final da fila. Troco a minha senha com qualquer um que precise. Mas não me peça nada em dias opacos, cinzas e frios. Em dias assim, eu me cubro de mim mesmo, faço uma armadura medieval com a minha própria epiderme e, ninguém, mas ninguém mesmo consegue tirar-me de meu casulo.

Cumpro o mínimo de obrigações possíveis. Trabalho em pleno estado de letargia. Dou a mão aos meus amigos ursos, ouriços e morcegos - Eu hiberno. Sumo do mapa como os insetos.

Este estado meu de torpor faz-me ficar mais caseiro; consigo assistir a um filme inteiro na televisão; escuto mais; discuto menos; falo menos e obedeço mais.

Nestes dias cinza , sou mais anfitrião que visita. Tomo mais vinho que cerveja, como muito mais queijo e, em minha dieta, sempre haverá um caldo quentinho.

Neste dias frios, troco o meu quarto pela cozinha e sou capaz de até fazer um bolo e ficar ali, pertinho do forno lendo um livro.

Nestes dias em que o sol me abandona, minha dispensa fica colorida de caixinhas de chá; troco o bar pela confeitaria e um bolo de avelã substitui, sem cerimônia, petiscos apimentados.

O telefone tocou e fui atender – era a minha amiga Ascenção. Pra variar, reclamamos da ¨friaca¨ de hoje.

Neste dias de torpor, tenho sorte de ter alguns amigos que não suportam o frio de seus habitats e migram como as aves aqui pra casa que é mais quentinho.

Sabe de uma coisa! Até que não é tão ruim assim, dias nublados, cinzas e frios.

Teremos queijos e vinhos e muita música boa.

Paulo Francisco

Dádivas



Ganhei um cachecol. Minha amiga Marize Barros fez um cachecol lindo pra mim. Tinha me prometido no inverno passado, mas acabou fazendo este ano. É muito bom ter amigos que se lembrem da gente em momentos comuns, sem ser aniversário ou qualquer outra data comercial. Ganhar um cachecol é mais que um presente é um carinho. É uma preocupação com seu bem-estar.

Toda vez que uso o cachecol é como se ela tivesse me abraçando. O frio diminui na derme e o cachecol aquece o coração.

Amigo a gente guarda de várias maneiras. Eu os guardo em pequenos sachês de seda e fita vermelha. Tenho uma boa coleção de aromas.

Amigo tem cheiro bom. Tem cheiro de confiança; de verdade. Posso dizer que os meus amigos têm cheiro de flor do campo. Brisa tem cheiro? Tenho uma amiga que tem cheiro de brisa, quando ela chega refresca o meu rosto, me tranqüiliza. Outra, é pura margarida, vivemos no bem-me-quer e mal-me- quer, e certamente, sempre paramos no bem-me-quer.

Nos primórdios o homem utilizava mais o poder de seu nariz. Ele sentia ao seu redor pelo cheiro. Hoje, só os animais utilizam o cheiro para defender-se ou procriar-se – é o tal feromônio.

Mas acredito que a química do cheiro ainda exista em nós – uns mais e outros menos. Quantas vezes já nos pegamos admirados com casais tão diferentes. Ali, pode acreditar, tem cheiro, tem química.

Casais duradouros não estão preocupados com a visão da águia. Eles são borboletas, são atraídos pela beleza do cheiro.

O mais engraçado que minha amiga Marize é alérgica a cheiros fortes de perfumes. Ela tem cheiro de bebê – usa colônias fraquinhas. Este é seu cheiro.

Ganhei um cachecol com cheirinho de bebê.
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Paulo Francisco

Barulhinho besta







O vento bate insistentemente em sua janela. Aquele tremor, cadenciado, não a deixa dormir. Corpo cansado, pálpebras pesadas, calcanhares doloridos, não quer levantar para fechar a estúpida e irritante janela. Tateia sua mão no escuro até o criado-mudo à procura de seu remédio. ¨Maldita cabeça! Esqueci de ligar para a farmácia!¨ - Exclama a cansada mulher.
Travesseiro cobrindo a cabeça, travesseiro separando os joelhos. Tira lençol, coloca lençol – não consegue relaxar. O som ecoa por todo o cômodo. Vencida pelo barulho insistente, levanta, acende o abajur, vai até a teimosa e a cala por completo.
Abre a gaveta do criado-mudo, vasculha a bolsa, vai até o armário de seu banheiro e nada. Não encontra o remédio que a faria apagar por longas horas.
Caminha até a cozinha, faz um chá. Volta para seu quarto e em sua confortável cama, delicia-se com o sabor e a temperatura daquele liquido. Olha para a janela – agora silenciosa – sorrir o sorriso do vingador.
Ajeita-se, vira-se para um lado, pernas dobradas, pernas esticadas, braços juntos ao corpo, braços na cabeça, travesseiro cobrindo-lhe a cabeça, vira para o outro lado, travesseiro entre os joelhos... e nada - ainda acordada.
O silêncio absoluto do quarto a obriga escutar os seus próprios pensamentos. Não era mais um barulhinho cadenciado do vento batendo na janela. Cada vez mais inquieta, percebe que não vai conseguir dormir com o silêncio total daquele quarto. Então, levanta e vai em direção da janela, deixando-a como antes, entreaberta. O barulhinho besta que antes era angustiante aos poucos, transforma-se num acalanto para os seus ouvidos, para a sua alma, fazendo-a dormir como um anjo.



Paulo Francisco

Mãe





Quando ouvi Mãe de Caetano Veloso na voz de Gal Costa pela primeira vez, eu fiquei paralisado. Até hoje a música mexe comigo de uma maneira singular. Eu gostei tanto da música, que não pensei duas vezes, quando a professora pediu para a classe, como tarefa da semana, uma versão em espanhol de uma música brasileira, eu escolhi Mãe.

Todos ficaram curiosos o porquê daquela música. Não disse. Não era pra dizer, era pra sentir. Hoje pensei em fazer uma crônica para o dia das mães. Mas tudo que eu fosse escrever por aqui, alguém já disse, e bem melhor.

Falar da certeza do amor materno, do desejo de tê-la por perto, das palmadas e dos castigos, do bolo e dos presentes, dos afagos e do colo, das mãos que nos seguravam evitando-nos os abismos, dos olhos que nos vigiavam e nos serviam como lanternas no escuro frequente, das histórias contadas sobre o vento e das músicas assopradas nas noites sem estrelas; tudo isso é mais que justo, mas não seria inédito. E mãe é inédita, é única, não tem cópia, foi desenhada sem papel carbono por baixo pra cada um de nós. Sem essa de dizer que mãe é tudo igual, não, não é não, e sabemos disso. Minha mãe, tua mãe, nossa mãe, a mãe dele.

Pensei até em não escrever nada que fosse maternal, achei que seria mais interessante passar pela data e escrever algo que fugisse ao tema. Mas, não seria justo comigo, com ela e, principalmente, com as mães que me leem.

Então, pra não ser piegas e repetitivo, escolhi pra homenagear, a minha, a tua e a mãe deles, na letra da música de Caetano:  Mãe

Palavras, calas, nada fiz
Estou tão infeliz
Falasses, desses, visse não
Imensa solidão
Eu sou um Rei que não tem fim
Que brilhas dentro aqui
Guitarras, salas, vento, chão
Que dor no coração
Cidades, mares, povo, rio
Ninguém me tens amor
Cigarra, camas, colos, ninhos
Um pouco de calor
Eu sou um homem tão sozinho
Mas brilhas no que sou
E o teu caminha e o meu caminho
É um nem vais nem vou
Meninos, ondas, becos, mãe
E só porque não estais
És para mim que nada mais
Na boca das manhãs
Sou triste, quase um bicho triste
E brilhas mesmo assim
Eu canto, grito, corro, rio
E nunca chego a ti.






Com relação ao trabalho em espanhol, tirei dez e a professora, numa versão bem brasileira, transformou-se na mãe de meu filho.


Paulo Francisco