Em cores





Visto-me de rosa na esperança de alegrar o frio. Acho engraçado como o preto e o cinza predominam nesta época do ano. Ao entrar na sala da Direção, não me contive e fui logo perguntando:
- Alguém morreu?
Todas as viúvas presentes soltaram suas gargalhadas estridentes. Exceto uma que exclamou baixinho:
- Palhaço!
Saí da sala rindo por dentro e com esperança de um futuro mais colorido.
Ando olhando para os lados e para cima à procura de flores e passarinhos.  Não tenho paciência, nem compaixão com quem apaga o colorido existente, mesmo que temporariamente.
Manhã sem passarinhos cantando e sem cheiro de flor é manhã sem cor em meu quintal.  Acordei com uma manhã pálida e fria; sem a claridade dourada provocada pelo sol. Estava tudo nublado – um mau-humor matinal. Tentei resolver a palidez diurna chamando-a para clarear a minha retina. E o dia se transformou em cores e risos.
Há aquelas que não percebem a mudança e continuam com a mortalha invernal.
Ela era monocromática. Segundo ela, o preto lhe caía bem. Aos meus olhos, era um disfarce inútil revelado ao se despir. Era mais bela e verdadeira nas cores renascidas pela lua que invadia o meu quarto.
O amor não faz dieta e muito menos é monocromático. O amor é um prato colorido, com sabores e aromas diversos. Ele alimenta o corpo e faz bem pra alma.
Visto-me de rosa para alegrar o inverno e ser, inevitavelmente, gozado pelos colegas do trabalho.
Respondo rindo as suas gozações com uma única palavra:
- Machistas!
Hoje, amanheceu cinza e pesado. Abri a gaveta e lá estava uma blusa novinha esperando para alegrar o meu dia.
Quando ela chegou foi logo me dizendo:
- Adoro vê-lo de rosa!
Pensei baixinho:
- Que bom não ter escolhido a azul.

Paulo Francisco


Acordo dos tempos





¨Eu sei que vou te amar...¨ A música inundava na sala e eu ao telefone com o João. Insistia em vê-lo. Mas o camarada não estava nem aí. Eu não era tão importante naquele momento. Os amigos, as brincadeiras, o shopping eram mais importantes. ¨ Em cada despedida eu vou te amar¨. Cedi. ¨desesperadamente¨ O que argumentar? Eu era tão importante assim? Não, não era. A música invadia minha alma.

¨A cada ausência tua eu vou chorar¨ desliguei dizendo: Tudo bem, filho.

A música já tinha terminado, outra melodia invadia a sala, mas Tom continuava em minha cabeça. Não adianta, o moleque estava certo. Eu sou pai, estarei sempre por aqui, ou em qualquer outro lugar e ele sempre poderá contar comigo. A música insistia: ¨ Mas cada volta tua há de apagar ¨ Não me desligava da música.

Lembrei-me de meus treze anos - não era diferente do João. Tinha o meu pai a qualquer hora do dia ou da noite, então porque teria que ficar com ele quando podia estar com os meus amigos. Meu pai não iria entender as minhas atitudes, as minhas transgressões. Não conseguiria seguir os meus passos.

O que eu não sabia ou nem imaginava era que a minha presença era vital pra ele quando me chamava. Não sabia que um chamado dele era um pedido de socorro, por estar sozinho, carente, achando que o mundo iria acabar. Eu não tinha discernimento para tanto. Eu era um moleque com gana de brincar, de ser livre pra voar num mundo em que ele não podia estar. Só entendia o que me era dito. Não lia nas entrelinhas, não sabia que a vida é uma metáfora para poucos. Que canções não eram somente feitas para dançar. Não entendia aquele abraço apertado que quase sufocava.
¨ Filhos se não tê-los como sabê-los ¨ Lembrei-me do poema de Vinícius. Como entender o que foram os nossos pais se não passarmos pelos seus caminhos?

Hoje eu entendo meu filho e entendo mais ainda o que foi o meu pai. Os anos passam e tudo muda a nossa volta. Mas, é certo, a relação pai e filho tem uma base que não muda nunca – o amor.

Amanhã ligarei novamente pra ele, mas já tenho um plano B. Se Maomé não vai à montanha, a montanha vai a Maomé.

E a vida continua...

(Hoje eu executei o meu plano B. Foi ótimo!)


Paulo Francisco




Eu Sei Que Vou Te Amar by Caetano Veloso on Grooveshark

Ícaro





Homens maus não sabem voar. Era um deus nos acuda na hora de escolher a personagem. Todos queriam ser o herói que voava com a sua capa mágica. A brincadeira demorava pra começar - ninguém queria ser o vilão. Mas, numa brincadeira de bandidos e mocinhos, um grupo terá que usar a máscara preta do bandido.

Ela não voava. Não conseguia pegar carona nas asas dos meus delírios. Ria muito quando eu era forçado a aterrissar em solo firme. Não deveria ter sido nada fácil aturar-me naquelas viagens insólitas e solitárias. Ela era a minha heroína de máscara preta que tentava, a todo custo, puxar-me pra realidade. Demorei pra guardar a capa do sonhador; demorei pra descobrir que homens bons também sabem caminhar em solos pedregosos.

Às vezes eu ficava imaginando como seria a vida, a minha vida, sem a fantasia da incerteza. Não me ensinaram que a realidade é sólida como uma rocha, e que os sonhos são nuvens em construção. E como não tinha aprendido, no tempo certo, discernir um do outro, desenvolvi a síndrome do sonhador. Eu era, e não me envergonhava de ser, um sonhador nato. Usava as rochas duras da realidade para me puncionar em voos solitários e coloridos.

Certamente não me enquadrava em seu mundo perfeito e concreto. Enquanto ainda pensava que podia voar, ela já estava com os dois pés fincados em seus objetivos práticos e certeiros. Eu não estava nem de longe próximo ao seu alvo. Ela me enxergava, eu a sonhava.

Ainda continuo sonhando. Ainda continuo evitando as rochas pesadas e sombrias. Talvez eu nunca consiga caminhar por muito tempo em solo firme. Talvez nunca deixe de pensar que ainda posso voar.  Pois mesmo com os dois pés atolados ao chão a minha cabeça continua no mundo da lua.

Dizem por aí que homens maus não conseguem voar. Não sei se eles voam, se eles ao menos flutuam; só sei que viajar em brancas nuvens me faz muito bem.

Sentado no banco de trás do carro da Malu, depois de um happy hour com vinhos e risos, viajei com a canção que estava tocando – Billy Paul é tudo de bom.


De repente o celular toca acordando-me de um sonho não tão impossível. Ao desligar o aparelho, penso: Homens maus não devem voar.


Paulo Francisco

Desgarrado







Estou em falta com você. Estava tomando um cafezinho, na minha padaria preferida, quando vejo um sorriso à minha frente – era meu amigo Marcos que há meses não o via. Eu, querendo ficar por aqui, escondido, curtindo um céu azul em minha rede na varanda; ele, atarefado, com filhos, esposa e uma vida pra refazer depois dos contratempos do tempo que andou mexendo com várias famílias daqui nos últimos anos.E a dele, foi uma delas.

Não adianta, vai ter uma hora em que o afastamento é inevitável. Mas somente os corpos se afastam, os corações continuam juntos.

- Paulo, eu liguei pra ti, a semana toda, e não te encontrei. Viajou?

- Não, eu estava aqui mesmo... Não queria falar com ninguém...

- Ah, tá! 

 Tem hora que é necessário desaparecer pra aparecer. Eu explico a contradição: Quando tudo parece estar cinza, sem cheiro, sem brilho, pesado, com pouco ar,simplesmente, entro na minha ¨cápsula revitalizante¨ e só saio dela, quando há mais cores, o cheiro é bom e o brilho reflete. Quem me conhece já sabe e não se assusta com a minha invisibilidade.

Quando não estou bem, não perturbo ninguém.

Fico guardado em lembranças e planejamentos futuros.

- Menino! Quase chamei o corpo de bombeiro pra invadir a sua casa. Viajou?

- Sim e não (risos)

- Ah, ta!

Às vezes o meu desaparecimento é simplesmente por pura distração. 

Pego na encruzilhada da vida outro caminho em busca de paisagem nova e me esqueço de avisar aos mais chegados que a caminhada é longa

- Esperei você para o almoço e acabei almoçando sozinha...

- Ihhhhhh, esqueciiii... 

Tínhamos combinado né!

 - É. Não gosto de agendar nada com muita antecedência. 

Certamente mudarei de idéia e vou deixar alguém na bronca. Sou movido pela impulsão, mas não sou impulsivo. Só às vezes. - Paulo o Festival de Jazz vai começar no dia seis, vamos? 

 - Calma, ainda estamos no dia dez, deixe chegar mais próximo, ok? 

 - Ah, sim, esqueci que tem que ser na hora agá. (risos) Mas tem momentos, em minha vida, que planejo e torno-me ansioso até a conclusão do evento.Seja ele de que ordem for.

Como aquele combinado e definido e ela, me deixou a ver navios horas antes de viajarmos. Mochila pronta pra ficarmos uns dias numa cidadezinha do interior e acabei na mão. Ela desistiu de ir comigo e só me avisou quase na hora de partir.

Um dia do caçador, outro da caça – fazer o quê? Tenho consciência de que já deixei muita gente a pé por aí.
- Vem lanchar comigo hoje?

- Não dá, vou ao... No Marco Antônio ( meu dentista).

 - Depois?

- Vou fazer algo (risos)

Já na cadeira do dentista, a Magui, secretária do Dentista, entrega-me o telefone, era a minha amiga Maria dizendo que ia me pegar pra lancharmos juntos.

Fui ao lanche. Tinha programado uma coisa e acabei fazendo duas coisas. Melhor assim.

Quando desapareço e você não me tem por inteiro; quando somente o meu corpo está presente; quando meus olhos olham, mas não vêem; quando o que falo perde-se no ar; quando o ar é só pra respirar; quando tudo se resume em querer desaparecer. Deixe-me nesta hora, faça de contas que eu parti e viajei sem me despedir, mas que voltarei. Porque eu sempre volto, mesmo que arrebentado e arrependido.

- Oi, estou na cidade, posso ir até aí te ver?

- Claro, por que não?

- Posso!?

- Traz o rango, estou sem nada por aqui

- Levo o quê?

- Massas, o vinho eu tenho aqui. (Risos)

Quando a minha canção não é ouvida, quando o meu poema é concreto, quando o que eu desenho é abstrato, quando o que eu falo ninguém entende. Deixe-me, então, aqui deitado, viajando baixo, certamente irei partir.

Estou em falta com você. Parado no ponto de ônibus, lendo Clarice, depois de ter ido ao correio numa busca vã do livro da escritora Michele Pupo, sou surpreendido com a frase: ¨ Não acredito!!!¨ Era a amiga Ascenção, depois de mais de dez dias sem contato, depois de várias tentativas de me encontrar, ela esbarra na minha distração daquela tarde fria. Sorrimos e conversamos enquanto me deixava em casa de carro.

Quando volto a vê-la? Qualquer hora dessas distraído ou não.

Estou em falta com você.  Minha irmã Ana me liga, preocupada com o meu silêncio. Estou em falta com você. Minha mãe me liga, preocupada com o meu silêncio.

Estou em falta com você. Ela me liga e diz que o meu silêncio é o grito que precisava ouvir.

Sabe... Eu estou em falta comigo mesmo. Vou andar por aí. Não preciso de muito. Basta uma mochila. O destino eu vou traçando, porque o meu silêncio é sempre branco. E, de branco, vou manchando o céu, vou marcando o chão, vou confeitando os sonhos. E no branco da tela de meus textos,vou pintando o que ainda resta pra pintar.

Ah, já avisei a ela que vamos ao Festival de Jazz.

Paulo Francisco

Sobressalto




Acordei assustado. Não gosto de acordar e sair da cama num salto mortal. Até porque não acordo – torno-me um ser sem direção, totalmente zonzo.

O meu acordar requer uma ducha quente e uma boa xícara de café. É no banho que coloco minha agenda mental em ordem e, é no café que leio as noticias de ontem.

A água que cai em meu corpo não só tira a impureza de minha pele, lava a minha alma. O café quente não só muda o gosto em minha boca, aquece-me por dentro.

Ultimamente ando acordando como se dormisse em cama elástica – quando me vejo já estou fora dela e em pé. Demorei pra descobrir que o motivo deste comportamento alucinado era ela. Geralmente, durmo depois de nos falarmos, saber como foi tudo com a gente durante o dia. Mas nas últimas noites ela não quer falar comigo – está zangada.

Sabe aquela história do mesmo lado da cama, a mesma poltrona de leitura, o mesmo lugar à mesa? Eu sou assim, não posso me acostumar que depois fica difícil pra desapegar. Fazer o que se sou assim? Sou cola de selo que gruda na mão.

Vivia andando assustado. As minhas noites não estavam ficando completas, a lua estava sempre pela metade e as nuvens cobriam sempre as estrelas. Acordava como um raio – como se estivesse atrasado para um compromisso qualquer. Não gosto de começar o dia em plena agitação – sou água fria que se prepara pra ferver.

O telefone tocou e o meu alô, ou melhor, o meu ¨- pronto!¨ Foi de acordo com o meu estado de espírito – rápido como um flash. A voz do outro lado da linha contrária a minha, era doce; era angelical. Meu pronto foi quebrado por um : ¨Alô Paulo, tudo bem?¨ Que há muito não escutava. Pensei: ¨Agora sim!¨. Mas respondi do meu jeito: "Tudo."

Descobri que o apego não só me pertencia. Descobri que também sou desassossego por aí – sou selo na mão de alguém.

Depois de uma conversa guiada em pista molhada, fui obrigado estacionar e esperar a pista secar. Dirigir em estradas perigosas é um risco que não quero passar. Mas aceitei continuar de maneira prudente a viagem.

Hoje, acordei assustado. Levantei e fui direto para o banho e fiquei em dúvida com relação a noite passada, não me lembrava de lua e estrelas – não abri a janela pra conferir.

Arrumei-me como um flash. E quando percebi, estava colhendo flores em pleno inverno.


Paulo Francisco