Calundu



Para Paula Barros


Era noite sem lua. Noite escura sem vaga-lumes para enfeitar. Meus olhos assustados de moleque arteiro procuravam os fantasmas das histórias contadas em tardes de chuva pela dramática e gorda vizinha que adorava nos amedrontar. Era o que tínhamos quando não podíamos brincar na rua por causa do temporal. Olhos maduros nos vigiavam para não cairmos na tentação.

Ainda procuro fantasmas e vaga-lumes em noites nubladas. Têm coisas que carregamos pra sempre. E tudo se transforma em sombra quando a noite é triste.  Hoje, em particular, meus olhos não enxergam o caminho de volta. O pretume que me acompanha empurra o meu corpo pra frente, impedindo o meu retorno ao ponto de partida. Não tenho outra escolha a não ser seguir em frente. Sigo. Simplesmente sigo. Não sei se é destino, se é fio de arame ou simplesmente terra batida.  Sei que sigo num caminho improvisado e estreito. Sigo sem saber ao certo aonde chegar. Chegarei? Ou caminharei até o corpo não mais aguentar?

As folhas enfeitavam as cabeças dos imaginários espantalhos que me seguiam de braços abertos como se fossem me pegar.  Fechava os olhos e seguia o caminho grudado na saia da minha mãe.  Ela era a luz que me guiava na floresta encantada de muitos bichos esquisitos que habitavam a minha mente de menino assustado. De olhos fechados eu só queria chegar logo. Sair do mundo encantado e ver pessoas de verdade e objetos reais. Sem o mapa nas mãos o pirata não chega a lugar nenhum. Ainda encontro espantalhos pelos caminhos que sigo.
Mesmo sabendo que não existem florestas encantadas, minhas mãos sempre procurarão a barra de uma saia pra segurar. Indo em direção ao desconhecido nunca é bom estar sozinho. Nunca se sabe o que vamos encontrar.

Hoje a noite não tem lua.


Apneia


Para Lis e Margoh



Ainda respiro. Se há oxigênio, há esperança. Mesmo que ele venha de um corpo alheio.  

Às vezes me encontro dentro de uma bolha translúcida iluminada por uma luz difusa que deixam cegos aqueles que estão do outro lado. Ninguém me vê. Eu os vejo. Posso com minhas garras rasgar a parede dessa bolha cheia de líquido? Dessa bolha que me transporta para além dos meus olhos? Certamente que sim. Mas quem disse que eu quero rompê-la? Ainda respiro. Há oxigênio suficiente para as minhas idas e vindas nesse mundo criado. Caminhos necessários a minha sobrevida.  Não sei se você me entende, entende? Esses nascimentos espontâneos, nascimentos quase que diários paridos sem dor, expelidos numa magnitude microcósmica, ar, oxigênio, bolha, luz divinal, viagens ao infinito.

Mas o mais importante de tudo isso é a respiração.  É o gás bom que gera vida na entrada e na saída no corpo dos seres vivos. Somos bichos. Pertencemos ao mesmo reino que a esponja do mar, aos sapos que hoje são tão raros, as temidas cobras e lagartixas, os belos pássaros e os mais ferozes dos felinos. Somos todos bichos que trocamos gases com outros seres verdes numa interação que só o homem não valoriza. Somos os mais ignorantes de um reino chamado animal.

É importante respirar. Mais importante ainda é ter fôlego pra aguentar essa coisa corrida que nos obriga agir no mesmo instante. Eu não quero agir por impulso. Não tenho mais a energia da juventude quando correr era preciso. Quero a tranquilidade dos passos curtos, de pés descalços numa areia fina e molhada pela espuma do mar. Refletir, agora, é mais que preciso. É capina nos emaranhados esquecidos.

Não sou e nunca fui essa parede de silêncio difícil de transpor que você vive me dizendo. A minha tagarelice fica na escrita confusa. As blasfêmias, eu as deixo nas metáforas permitidas.  Estou longe – quase inalcançável. Mas não pra tudo. A natureza me vê. Pois pertenço a ela da mesma forma que ela me pertence. Somos uno de forma assimétrica. Completamo-nos de forma livre. E é assim que tem que ser.

A invisibilidade me permite errar.

Despedida


Foi daqui, da minha varanda, que escrevi  a maioria dos meus textos.  Embalado pela rede, vislumbrava o contorno das montanhas em noites frias com seus céus carbonados. E de dia, buscava as aves de rapinas e os bandos de maritacas curiosas e assanhadas que de quando em vez enfeitavam o meu telhado.  Em dias transparentes ou em dias nublados ou com promessa de lágrimas, balançava-me na rede na esperança de poder voar. E voava. Viajava em nuvens psicodélicas que coloriam a minha alma e cobriam a minha pele.

Foi daqui, da varanda da minha casa que sorri, chorei, praguejei, perdoei. Fiz incansáveis juras  de amor. Escrevi alguns dos poucos poemas e li centenas de livros.

Ah! Era daqui, da minha varanda, que ouvia canções de amor tingido de cabernet soauvignon  e recitava para as estrelas trechos de poemas de meus Poetas preferidos:  ¨Eu quero à doce luz dos vespertinos pálidos/ Lançar-me, apaixonado, entre as sombras das matas/ _ Berços feitos de flor e de carvalhos cálidos/ Onde a Poesia dorme, aos cantos das cascatas... ¨  SALVE, SALVE!  EUCLIDES DA CUNHA!

Era dessa varanda que eu ficava à espera de sua chegada. E quantas foram as vezes que acabei dormindo sozinho porque você não veio;  se por motivos reais ou por motivos fúteis – agora já não importa mais. Deixo de ser passional e volto a ser semente em busca de terra fértil para poder germinar.  Saio do meu vaso de barro e expando-me  em outras áreas.

Hoje, despeço-me enrolando a rede, fechando a porta, e quase sussurrando no lóbulo de sua orelha um provisório adeus. Sim, um provisório adeus, um adeus de até logo, de até já, e não um adeus de nunca mais.  Ainda vivo à esperança de ser útil, mesmo da certeza da inutilidade de meus textos. Por isso há esperança na alma de um dia, na clareza do céu, as marolas se tornarem ondas que arrebentam na rocha permitindo um estrondo com o som de amar.

Hoje, faz-se necessária a despedida. Uma despedida sem lágrimas, sem tristeza. Pois... se não mais em minha varanda, certamente estarei noutro lugar. Ainda converso com as estrelas, namoro a lua e me rendo ao sol. Ainda conjugo os verbos amar e apaixonar e tantos outros que formam meus sentimentos.

Vou andar por aí, acompanhando o vento. Vou andar sem medo por aí, abraçando o tempo. Vou andar por aí, desenhando novas rotas. Vou andar por aí sem medo de bruxas e diabos.  Vou andar por aí, levitando em brumas coloridas e descansando em novos velhos cais.

Hoje, eu deixo aqui como despedida um poema antigo que fiz sentado em minha varanda:

Da varanda da minha casa

Da varanda da minha casa, vejo o céu em movimento, montanhas em verde pleno, barulhinho de passarinhos, vento em redemoinho e a criançada a brincar.

Da varanda da minha casa, recebo o sol matutino, a brisa com carinho e a lua a me vigiar.

Da varanda da minha casa, ouço canções de amor, leio os meus autores preferidos, tomo uma taça de vinho, sorvo os meus delírios e vivo as quatro estações.

Da varanda da minha casa, despeço-me do verão e recebo de braços abertos a minha estação outonal.

Da varanda da minha casa, recarrego a minha alma e aqueço o meu corpo com os sóis invernais.

Da varanda da minha casa, vejo tudo florescer, são flores primaveris que aromatizam os meus sonhos, colorem minha vida  a cada amanhecer.

Da varanda da minha casa, escrevo os meus poemas, resolvo os meus dilemas, vivo prazeres e alguns desprazeres.

Da varanda da minha casa, intrujo as indiretas, perpassam os fantasmas, rouquejo pequenos versos guardados no coração.

Da varanda da minha casa, vejo o belo, vejo o tosco, imponentes concretos, armaduras de ferro, singelas choupanas e seus jardins eternos.

Da varanda da minha casa, vejo tua varanda, vejo-te debelando o inimigo com sorrisos e gritos.

Da varanda da minha casa, desenxovalho, desfibro o anoitecer.

Da varanda da minha casa, clareio meus caminhos, espalho sorrisos e espanejo a solidão.

Da varanda da minha casa, versejo ao tempo, versejo ao infinito, sulco em neblinas pálidas e livro-me do obscurantismo.

Da varanda da minha casa, observo os coleópteros pesados e desengonçados virados ao chão, observo os  lepidópteros diurnos e noturnos  bailarem em coreografias ensaiadas, enquanto embalo-me à rede.

Da varanda de minha casa, vigio, de minha rede, os guabirus e suas intenções inglórias.

Da varanda da minha casa, varo a vastidão.


Paulo Francisco


Mania



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Toda mania tem um dono. Ou seria melhor dizer que cada louco com a sua mania? Não importa. Até porque se ela é sua, ninguém tem nada a ver com isso. Ou teria?  Se a palavra for levada ao pé da letra, aí fica complicado. Pois, a palavra vem do grego, e significa estado de loucura. Então sou louco por isso?  Talvez seja. Quem sabe?!

Maria me liga:

Papo vem, papo vai, e boom! Veio à pergunta que não queria calar:

- Paulo, você respeita as manias dos outros da mesma forma como gostaria que respeitassem as suas?
Confesso que nunca tinha pensado nisso e demorei pra entender o que ela estava querendo dizer naquele momento.  Respondi que não estava entendendo e não conseguimos continuar com aquele assunto tão complexo. Só depois, muito depois, fui entender que estava atrapalhando-a, mais uma vez, a assistir sua novela.  Será uma mania brasileira? Ou por ser coletiva deixa de ser mania.

Lembro-me de ligar para uma amiga:

- Oi fulana! Tudo bem?

- Tudo. Você pode me ligar depois. Estou vendo a novela.

- Ok.

Nunca ligue para um fanático de futebol as quartas-feiras e ou aos domingos na hora do jogo. Mesmo que os times que estão jogando não sejam o time que ele torce. Mania brasileira?

- E aíí camarada, tudo bem?

- Pô cara! Tô vendo o jogo.

- Mas você é vascaíno... Quem tá jogando é o flamengo.

- E a torcida contra?

Calo-me diante da pergunta. Vai entender os maníacos pelo futebol.

Voltando lá para o primeiro diálogo, penso que talvez Maria tenha se confundido. Não são manias o que tenho, são comportamentos que fogem ao padrão normal. Sou um antissocial por isso? Acredito que não. Mesmo não atendendo ao telefone, não gostando de celular, odiando cerimoniais, preferindo reuniões com poucas pessoas, evitando aglomerações, não comemorando aniversário, não curtindo as festas de final de ano, e só recebendo em minha casa, aqueles que realmente eu gosto de tê-los próximos a mim, não me considero um ser antissocial e sim seletivo.

Incomodo as pessoas por isso? Devo incomodar.  Fico incomodado também? Não mesmo.  Afinal de contas, cada qual com as suas manias.

As minhas verdadeiras manias, eu as guardo só pra mim. Têm algumas, confesso, que acabo divido com quem está mais próximo.


Maria me ligou hoje.  Ela, eu sempre atendo. Uma mania – é quase um vício ouvi-la todos os dias.




Paulo Francisco 

Diversidades








Gosto da amplitude do olhar; da vastidão à frente; do admirar de cima para baixo e vice-versa. Mas o que me fascina de verdade são os pequenos detalhes. O quase invisível. Perceber e transformar um instante numa tela imensa e cheia de cores, mesmo que elas sejam matizes de cinza.

Suas mãos denunciavam sua aflição. O seu grito parou na garganta e o seu olhar encharcou aquele instante. Paralisou-se diante do mundo. Seus pensamentos seguiram por caminhos nublados difíceis de serem alcançados. Correu ajudada pelo vento. Revisitou seu passado para certificar-se que ainda estava viva. Criou coragem e se debruçou em seu desejo mais carnal. Sim, ela estava viva. Sua mucosa brilhava. Seus olhos brilhavam. Seu coração acelerava a cada segundo chegado.  O seu corpo exalava vida. Ela tinha cheiro de flor.

Gosto do gesto largo; do sorriso frouxo ou do acanho tingido nas faces dos tímidos. Mas o que me encanta são alguns movimentos inesperados. Como a folha que vai caindo lentamente como se quisesse chegar ao chão num pouso suave e definitivo. Como a formação de um redemoinho no chão coberto de areia.

Ela chegou mansa. Seus gestos felinos denunciavam sua curiosidade quase infantil. Procurava, no som da minha fala, a ponta do fio que teceu a minha alma. Tentava a todo custo decifrar-me – coisa que ainda não consegui. Olhava-me como se fosse pela primeira vez. Às vezes, também me olho assim.

Gosto do dourado do verão. Da certeza da chuva no final da tarde. Dos corpos seminus passeando descontraídos na areia da praia. Mas é no outono que me sinto bem. O céu é mais azul. As árvores desnudam-se parcialmente, nos ofertando um pouco de sua sombra. Gosto da indecisão do tempo; da incerteza do dia; da surpresa a cada hora existente.

De repente o céu entristece. O sol vai embora. A noite chega clara. O vento molha o corpo. E ela chega como raio dizendo-me:

- Tenho saudade.

De repente o telefone toca. O coração fica em dúvida. A conversa fica engraçada. Transforma-se numa cantada. E a despedida é uma incógnita.

De repente o gato preto salta do muro. O passarinho voa alto. O vento bate em minha cara devagarinho. Tulipa Ruiz faz barulhinho na sala. O carteiro grita meu nome. O sorriso estampa na alma. E ela se convida a ir a minha casa, mandando-me duas garrafas de vinho.


De repente tudo fica parado à espera de um resultado que só depende de mim.





Paulo Francisco