Auge



Andávamos nas pontas dos pés para não acordar o silêncio. Ainda estava escuro e com estrelas quando saímos de casa. Mais tarde o sol chegou rasgando a noite, clareando a íris, desnudando o dia. A estrada era toda nossa. Nossa e do vento que acariciava as árvores num balé frenético e ruidoso. Estávamos a caminho de uma nova aventura. Uma aventura inédita, pelo menos, para mim. Enquanto o vento cantava na estrada vazia, o meu peito gritava forte numa estranha taquicardia.

 Com os olhos vidrados para não perder nada numa piscada involuntária, registrava cada segundo daquela viagem matutina. Não sabia se iria gostar, não sabia se seria divertido, ou se seria o contrário das expectativas anunciadas – tediosamente comum.

 Mas nada importava a não ser chegar e registrar em meu peito aflito o que me fora prometido. E o clichê mostrou-se verdadeiro – a primeira vez a gente nunca esquece. E todos que estavam ali já sabiam disso. Eu era o único daquele grupo ainda não ter provado da sensação daquele momento.

As atenções se voltaram para mim. Todos queriam, certamente, reviver o passado, através da minha existência.  As perguntas chegavam tumultuadas, atropeladas pela curiosidade alheia:

- E aí, gostou?
- O que está sentindo?
- Vai, anda, fala alguma coisa...
- Está contente?
- Fala com a gente... Vai ficar aí parado sem dizer nada?

Mas as palavras chegavam longe aos meus ouvidos, porque longe eu estava.  Não iria responder ou dizer qualquer coisa. Queria guardar comigo a magia daquele momento. A sensação do instante vivido. Pensei baixinho: Esqueçam! Vocês não tirarão de mim, nem sob tortura, qualquer sensação desse exato instante.  E mudo fiquei até a chegada da lua. Porque a melhor resposta, certamente, seria o meu silêncio.

E quantas outras primeiras vezes foram tatuadas em meu peito. Algumas reveladas em palavras e gestos e muitas outras guardadas em silêncio no peito.  
Nunca me esqueci daquele dia. Nunca comentei pra ninguém o que ficou guardado em mim por todos esses anos. E hoje, tive a mesma sensação daquele dia.  Senti o meu coração mais ritmado, as minhas pernas se envergando para frente e os meus olhos miúdos sorrindo com o vento. Eu estava vendo o que pensei ter visto há décadas. A única diferença daquela época, é que hoje não há mais a incerteza. E por mais clichê que seja a frase, sempre haverá um novo amanhecer. Mesmo depois de tantas luas.

Paulo Francisco



7 comentários:

  1. Que lindo, o seu silêncio diz tudo, é uma magia a vida e tem de ser vivida bem assim, cada momento único, mas que tem seu encanto e nada e nem ninguém pode entender ou sentir e perceber isso, somente quem vive é que sabe!
    Tens uma sensibilidade ímpar!
    Amei ler o conto!
    Abraços amigo sempre querido!

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  2. Ah, que lindo...
    Há coisas ao nosso respeito que ninguém nunca saberá e nunca deverá saber...
    Particularidades nossas... coisas que nunca ninguém conseguirá tirar de nós, momentos vividos, seus sabores...
    Lembranças de amores... Instantes mágicos...
    E em um breve momento você conseguiu descrever isso...

    Amei ler-te amigo, diante de tantas coisas que li hoje, teu escrito foi o que mais me tocou.

    Beijos no coração, e uma ótima noite!

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  3. Oi Paulo,
    Bravo e Aplausos.
    Um conto metafórico lindo demais. Entrei em devaneio do começo ao fim.
    Beijos no coração

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  4. Olá Paulo,

    Maravilhosa prosa poética. Fiquei altamente envolvida com a leitura e encantada com as belas expressões poéticas. A frase final pode ser clichê, mas é uma assertiva incontestável..."sempre haverá um novo amanhecer. Mesmo depois de tantas luas."
    Parabéns, Paulo! Você nasceu para escrever.

    Também sempre fui perfeccionista. Imagine o quanto de desconforto eu passei por causa disso no exercício da minha profissão. Lia e relia minhas petições, contestações e recursos diversas vezes, sempre procurando melhorá-las. Enquanto na chefia, cobrava demais, sem pensar nos limites de cada um. Mudei (um pouco-rsrs), mas continuo tentando. Acredito que o perfeccionismo exacerbado devora o nosso tempo, além de nos levar ao stress.

    Feliz semana.

    Beijo.

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  5. Poxa...que lindo texto...quanta magia em suas letras, fiquei encantada!!!abraço, ania..

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  6. ...cada vez que entro aqui
    perco-me de encantos!


    Namastê! _^_

    Beijos, meus!

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  7. Nossa, que maravilha! Sou apaixonada por uma bela escrita. Momentos mágicos, guardamos, pois apenas nós conhecemos a grandeza de seu valor. É impossível revivê-los, mas sempre haverá a possibilidade de conhecermos outros, ainda mais intensos. Bjs.

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