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O espelho foi feito para lembrar-nos de que o tempo passa.  Hoje, pela manhã, ao fazer a barba, lembrei-me do poema retrato de Cecília Meireles e pensei:  Também não tinha Cecília, este rosto de hoje.  Com a cara branca de espuma, restaram-me antes da navalha, meus olhos profundos e meus lábios sedentos de amor. Eles ainda não estão vazios, ainda não estão amargos – pensei parado com a lâmina no ar.

Minhas mãos seguiram ainda firmes, o caminho da espuma. Continuei recitando, silenciosamente, o poema de Cecília:

¨Eu não tinha este rosto de hoje,
Assim calmo, assim triste, assim magro,
Nem estes olhos tão vazios,
Nem o lábio amargo.

Eu não tinha estas mãos sem força,
Tão paradas e frias e mortas;
Eu não tinha este coração
Que nem se mostra.

Eu não dei por esta mudança,
Tão simples, tão certa, tão fácil:
- Em que espelho ficou perdida
a minha face?¨

Também voltei no tempo, além do espelho, quando achava engraçado as caretas do meu pai  diante de um pequeno espelho redondo. Sua face antes assustadoramente negra de pelos encontrava-se lisa e vermelha depois das precisas navalhadas na carne. Cena que mais tarde meu filho repetia em gestos teatrais ao ver-me nesse rito matinal. Hoje, restaram-me o riso e o ardor da saudade.

Talvez o espelho não mostre somente a passagem do tempo; talvez ele não exista somente para nos olharmos. Talvez ele exista para revelar aquilo que não queremos ver ou ser.

Não acreditei quando me vi no espelho. Estava babando de ódio. Vermelho e deformado como se estivesse possuído. Uma energia negativa que jamais tinha sentido. Fiquei exausto em poucos segundos. Fui para debaixo do chuveiro e ali fiquei por muito tempo. Livrei-me daquela armadura do mal e ali mesmo pedi perdão a Deus. Não sabia, até então, que era capaz de acumular tanta energia.  Um Big Bang emocional. Fiquei com medo de o que vira no espelho fosse a minha outra alma -  aquela que só Jacobina de Machado tinha visto.


Surgiram outros espelhos em minha vida. E neles, sempre me vi por inteiro. Mas foi nas retinas dos olhos de meu filho que mi vi mais verdadeiro.

Paulo Francisco

Menino do vento





O vento sempre esteve em seu caminho. Mas era o vento oeste que mais o fascinava. Talvez fosse pela delicadeza de Zéfiro de Bouguereau seduzindo a deusa Chloris.

Foi através do vento que a sentiu pela primeira vez. O seu perfume penetrara suavemente pelas suas narinas fazendo-o virar a cabeça em sua direção. E lá estava ela exalando sedução. Seria zéfiro presenteando-o com tão bela imagem?

Sentado na sacada de seu quarto nas longas madrugadas frias, ele sentia as mãos geladas e pesadas de Bóreas.  Nunca gostara do vento norte. Sempre achara que foi ele que a levou para sempre, numa noite sem estrelas. E por muito tempo, sentado em sua sacada, recitava a mesma poesia de Florbela – Cantigas leva-as o vento...:

¨A lembrança dos teus beijos
Inda na minh´alma existe,
Como um perfume perdido,
Nas folhas de um livro triste,

Perfume tão esquisito
E de tal suavidade,
Que mesmo desapar´cido
Revive numa saudade!¨

Mas o vento sempre fora mais alegre do que triste. E os moleques do bairro chamavam o vento numa canção típica da região:

¨Vem vento caxinguelê,
Cachorro do mato qué te mordê.¨

E o vento vinha e as pipas subiam ao céu para a alegria da molecada.

Mas quando o vento chegava forte e repentino, as mulheres corriam até o quintal para pegar os lençóis branquinhos cheirando a anil. Ficava parado, olhando-os dançando freneticamente no ar, dificultando as suas retiradas. De quando em vez uma saia subia para a alegria de seus olhos curiosos.

Em casa, adorava fabricar assovios estranhos assoprando contra as paletas do ventilador de metal. Perdia-se em namoro a espera do vento gelado do lento vaivém do disco gradeado. Enfeitava o metálico com fitas de plástico somente para destruir o silêncio gelado. Ouvia dos mais velhos o perigo da mutilação causada pelas hélices do aparelho. Então, escondido na sua própria sombra, empunhando uma vareta de bambu, tentava a qualquer custo – até mesmo por uma surra -  parar o perigoso gerador de vento, numa imaginária aventura épica entre o homem e o dragão.  Mas o grito do monstro sendo abatido ecoava pela casa delatando sua aventura. Corria para bem longe de seu crime, numa tentativa inútil de ser inocentado. Mas o seu nome, levado pelo vento, atravessava toda a casa esbarrando nos móveis pesados e brilhantes de todos os cômodos até o escuro de seu armário. Todos sabiam quem era o culpado das piores travessuras daquele lugar.

- Pauloooooooooooooooooooooooooooooo!!!!!!!!!!!!!


O vento sempre esteve presente em seu caminho.

Paulo Francisco