A desenhista




Sempre gostou de desenhar. Ela desenhou uma nuvem e ganhou um doce; desenhou uma noite enluarada e ganhou um cão. Mais tarde, desenhou uma casa e ganhou uma boneca. Já mocinha, desenhou um coração e ganhou um amor, Suspirosa, desenhou uma aliança e ganhou uma família.
Subitamente, parou de desenhar - ficou com medo de desenhar o próprio caixão. Vai comemorar, no próximo mês, seus oitenta anos.
Fez bem em parar de desenhar.
Sabe-se lá!


Paulo Francisco

Catalepsia



Perdeu todas as cores. Acordou sem sangue, ele estava pálido, morto-vivo. Seu quarto, antes colorido, encontrava-se invadido por uma claridade que o impedia de identificar qualquer coisa. Tudo era estranho; tudo estava muito estranho. Cego, pela intensidade daquela luz leitosa, permanecera congelado – não movia um músculo – por segundos eternos.
Ao fundo, em algum lugar, cantos gregorianos chegavam como complemento de sua angustia. O som cada vez mais forte e mais melancólico, deixava-o cada vez mais perdido naquela imensidão branca. Sem saber o que fazer, tentou gritar e, para seu desespero, não saía nenhum som de sua garganta. Tentou levantar, mas sua cabeça pesava toneladas, igual a suas pernas e braços – ele não se movia, estava paralisado diante do nada.
Sem argumentos; sem perspectivas; sem o cheiro das flores; sem o olhar amigo, ele fecha os olhos e, em lençóis encarnados, viaja para o desconhecido.
O seu silêncio era branco.


Paulo Francisco

Sobressalto


Quando criança não sabia repartir. Cresceu e continuou não sabendo. Individualista, não soube compartilhar o amor. Não soube ser amiga; não soube ser filha; não soube ser mulher. Agora está num dilema – vai ser mãe.


Paulo Francisco

Atitude



Ela sempre o esperava linda e perfumada, na esperança de um convite surpresa dele . Depois de certo tempo, mesmo decepcionada com a atitude do companheiro, ela continuou linda e perfumada, mas quem espera, agora, todas as noites, é ele.

Paulo Francisco

No meio do caminho


Subindo as escadas ele para e olha para cima e, depois, olha para o chão e num inclinar de ombro, olha para trás. Percebe, então, que já caminhou a metade. Respira... e segue em frente.

Paulo Francisco