Faces ocultas

Às vezes me sinto tão mulherzinha. Faço mercado. Escolho frutas e verduras no hortifruti. Faço comidinha. Lavo louça. Lavo e passo as roupas. Varro e tiro pó da casa. E pra completar a Maria existente em mim, faço tudo isso ouvindo samba.
Só não fico uma mulherzinha completa, porque nada de lenço na cabeça e nada de avental. Faço quase tudo isto de cueca.
Às vezes me sinto tão machão. Não faço porra nenhuma em casa. Acumulo copos e pratos na pia, a máquina de lavar fica repleta de roupas sujas e, saio com as que tiro do cesto pra passar. Deixo as latinhas de cervejas na mesinha de centro e não tô nem aí para a toalha no chão do banheiro.
Às vezes estou tão normal que nem me reconheço, contrato uma diarista, recebo visitas e fico feliz.
Às vezes estou tão romântico, jantar a dois, feito por mim, vinho tinto, luz de vela e carinho até o fim.
Às vezes sou tão displicente, peço pizza e cerveja, ouvido na conversa e olhos no futebol.
Às vezes me sinto tão sozinho, fico a olhar pela janela os passarinhos a cantar.
Às vezes me sinto tão abelhudo, fico de olho na janela da vizinha só para vê-la passar.
Às vezes é tão complexo viver esta pluralidade que acabo inventando um novo ser.
O que eu posso fazer, com estes sujeitos loucos que cismam em me acompanhar?
Assim vou levando a vida, girando a manivela e vendo a noite chegar.



Paulo Francisco

Perdidos e achadaos

Raramente encontro o que eu perco, aliás, quase nunca. Não me lembro de ter encontrado algo que tenha perdido. Das seis vezes que perdi a minha carteira, nunca consegui recuperá-la. Eu, em menos de dez meses, num certo ano de minha vida, perdi três vezes os meus documentos. Na época, vivia num mundo estressado, tinha que dá conta de várias coisas ao mesmo tempo: mestrado, pesquisa, trabalho e um relacionamento totalmente conturbado.
Lembro-me de que não tinha céu, não tinha estrelas, não via a lua – estavam perdidos em algum lugar.
Sempre precisava perder algumas coisas para recuperar outras. Nunca acumulei muita coisa.
Com relação aos meus amores, nunca fui capaz de guardá-los com segurança – sempre os perdia fácil. Mas neste caso, sempre ganhava outro.
Hoje já não perco documentos e carteiras, estou mais atento.
Tenho todo um céu pra mim. E os amores...bem...os amores serão sempre perdas e danos e é, certamente, uma outra história.


Paulo Francisco

¨I just call...¨

O som do telefone se confunde com o violão de James Taylor. A casa estava respirando sons dos anos setenta quando o telefone tocou – era ela.

- Pronto! Respondi sonolento. Era fim de tarde e estava descansando depois de um dia puxado de trabalho. Acordei muito cedo e ainda sentia a diferença em meu fuso horário – Todos sabem o quanto me custa acordar cedo.

A voz do outro lado indicava que algo acontecera. Não era comum telefonema àquela hora. Sua voz pequena e curta anunciava tristeza, chuva miúda numa tarde de outono.

Fiquei esperando o seu texto. Mas pra surpresa minha, ela só queria ouvir minha voz.

Verdadeiramente, ela não só queria ouvir a minha voz, ela queria ter certeza de minha existência – segundo ela.

Depois que ela desligou, fiquei pensando como uma voz pode ter o poder de acalmar. Naquele momento James Taylor ainda invadia os cômodos de minha alma.

A voz que mais me acalmava, quando criança, era a voz de minha mãe. A certeza de sua existência, ali pertinho, deixava-me tranqüilo, não tinha medo de fantasmas e nem de ladrão.

No Hospital, a agulha da injeção, ou o estetoscópio frio não me intimidava, porque a voz dela estava ali, me acalmando.

Cresci e a voz da garota da vez era a minha certeza. Hoje, a voz de meu filho é o meu melhor calmante e, a voz de alguns amigos me tira sorrisos.

O som acabou. O silêncio também faz parte de minha vida.

Peguei o telefone e liguei pra ela. A reciprocidade é verdadeira.


Paulo Francisco

Ato falho

A mesa estava posta. Chamei-o como sempre: ¨John- John!¨. De repente percebi que estava chamando o João, que tinha preparado o café da manhã como se ele estivesse ali.
Mas ele estava ou não? Eu estava sonhando ou delirando? Ele estava deitado em minha cama, numa preguiça danada ou simplesmente não estava?
Encostei meu corpo na pedra da pia e exclamei: ¨ Meu deus!¨
Claro que ele não estava em casa; claro que ele não iria me responder.
Olhei para a mesa posta e percebi que estava acordado, não estava sonhando; não estava delirando.
Estava acordado, mas não estava em mim. Estava muito distante. Tinha regredido, voltado no tempo.
Às vezes eu atravesso a rua e só depois que estou do outro lado, me pergunto como cheguei ali. Atravessei de forma automática. Não prestei atenção. Viajei.
E é nestas viagens que eu acabo não vendo alguns amigos.
Um dos meus compadres e xará – o Paulo Henrique - já me confessou que me viu varias vezes na rua, no mundo da lua, totalmente aéreo. Juro que não me lembro.
Lapsos de memória? Tenho e não vou negar, já passei por maus bocados por causa disso. Mas isto é uma outra história.
Eu não pesquisei, mas tenho uma memória seletiva excelente. Jogo fora o que não presta rapidinho. Esqueço de rostos e nomes em segundos.
Arrumo minha gaveta interna de quando em quando. Não deixo acumular. Aprendi aos trancos e barrancos que quanto mais acumulamos lixos, mais difícil fica pra arrumar depois. Raramente eu reciclo. Às vezes, uma garrafa de vinho, um ou outro email acabam sendo reavaliados.
Mas, mesmo com todo o cuidado em não deixar a gaveta cheia, acabo me descuidando e deixando resíduos. Talvez, seja proposital; talvez, não queira ser injusto.
Ah! João, antes que eu me esqueça, é o meu filho.



Paulo Francisco






Dia Feliz


Domingo nublado. Não gosto de domingo nublado. Ele reforça a minha preguiça. Fico mais lento, mais melancólico.
Quando menino, não via a hora de chegar o domingo; de chegar às tardes de domingo. Era o meu dia predileto - tinha cinema e parque de diversão.
Não percebia se o dia estava nublado ou não, não me importava se estava chuvoso ou com ventania. Era domingo – o meu dia.
Melhor que o domingo, era a segunda-feira de novidades, gabava-me ao contar para os colegas os filmes vistos (eram sempre dois, com o canal Cem e vários trailers) recheados de guloseimas.
Ao contrário de hoje, domingo era o dia em que acordava mais cedo para aproveitar o máximo. Eu não tinha tempo a perder.
Fico tentando buscar na memória, qual motivo me levou a não mais gostar do domingo. Será que foi no mesmo momento em que acabou a sessão com dois títulos de filmes? Ou quando os parques se tornaram temáticos? Não sei.
Hoje, recebo o domingo com desconfiança. Ele é véspera da segunda. Talvez, seja porque nunca estou recuperado pra mais uma semana de brabeza. Ou simplesmente porque não tenho muita coisa para me gabar.
Acho que o domingo foi feito para as crianças. E, nós, os adultos, meros coadjuvantes deste dia encantado.


Paulo Francisco