Café da manhã

Rasguei o pão e o levei a caneca de café com leite. Estávamos sentados à mesa da cozinha para tomarmos o nosso café. O meu ritual de um único cafezinho pela manhã, não existe quando ele está comigo. João me olhou e fez uma cara de nojo com a minha atitude de rasgar o pão e molhar no café com leite. Sorri e perguntei: você nunca fez isso? Ele respondeu com uma cara estranha, como se aquilo que tivesse visto fosse a coisa mais nojenta de sua vida.

Fiz-lhe outra pergunta: Você nunca colocou o pão no leite quente com bastante açúcar? Ele novamente balançou a cabeça e mais uma cara de nojo. Ri de novo.

Não entrei em detalhes com ele. Sei que um dia ele vai repetir este gesto e vai lembrar-se de mim.

Toda vez que molho o pão no café com leite lembro-me de minha infância. Adorava molhar o pão repleto de manteiga no café quentinho. Minhas irmãs me olhavam e diziam em coro: que nojo! O meu filho também exclamou por dento.

Não sei se acontece com todo mundo, mas tenho atitudes que trago de minha infância. Era proibido, por exemplo, levar pra casa qualquer coisa que não fosse nossa, mesmo que achássemos no chão. Tentava argumentar com minha mãe, mas vinha logo a velha frase: "É seu? Não! Então deixe aí."

A nossa pasta escolar era vistoriada quase que todos os dias. Tínhamos que estar com tudo em ordem. Não existiam desculpas de uma borracha ou um lápis emprestado de um amiguinho na pasta – era castigo na certa.

Assim eu fui sendo moldado.

Mas eles se esqueceram de me dizer que no amor era diferente. Quando encontrado tinha que ser levado. As minhas paixões até então eram platônicas. Escrevia clandestinamente cartas de amor e deixava nas pastas das meninas que me fascinavam – não tínhamos sites de relacionamento. Demorei pra transgredir.

Ainda sou tímido. Mas tenho dois amigos que andam comigo e me ajudam nestas horas de extrema timidez. Os meus olhos delatam-me.

Rasguei minha timidez e a molhei em palavras – faço poemas.


Paulo Francisco

A lua de Tossan












A noite chegou nua de estrelas. O vento trouxe consigo um frio inesperado. A lua cobria timidamente sua outra metade com nuvens chumbadas e agitadas. E eu, ainda esquecido do tempo, gozava da companhia de um livro e um bom vinho tinto português. O silêncio daquele ambiente somente era interrompido, pelo som das folhas passadas de quando em quando pelos meus dedos úmidos e tingidos.

A noite chegou cobrindo meu corpo com seu manto negro. Minha alma, acanhada, não queria ser refletida pelos aços polidos das peças expostas - fechei meus olhos para sentir-me verdadeiro. Tentei, mas não consegui escrever uma linha sequer - nada de poema, crônica e conto. Minhas mãos estavam mudas. Meus olhos não alcançavam além da vidraça da porta-corrida.  Restavam-me então o livro e o vinho.

Tudo estava calmo demais.  A monotonia surgida obrigou-me a querer barulho. O silêncio estava insuportavelmente irritante. Espalhei por toda casa, blues, jazz e outros sons que pudessem expulsar o medo invadido, que pudesse transformar o cinza em cores vivas.

Quando garoto eu cantava para espantar o medo. Ouvir a minha voz era escape pra disfarçar o meu coração acelerado e aflito.  Ainda canto, e cantarei sempre – mesmo que em silêncio – para disfarçar os terrores ainda existentes.

Voltei pra casa com a música de despedida nos meus ouvidos. Sabia que aprontaria assim que eu me afastasse de seu cenário inventado. Dito e certo.  Caminhou pelo lado obscuro do pântano tramado.  Gargalhei ao ouvir a música fúnebre que tocou por alguns dias em sua cabeça de anuro. Gargalhei por não ter sido agarrado por suas ventosas e cantei em sua homenagem um partido-alto – ela mereceu o samba rasgado.

Quando Björk invadiu minha sala, sorri um sorriso largo. Eu gosto de sua voz e o que canta. A música Moom me fez sair pra varanda à procura da lua. Não a encontrei, mas sabia que estava lá, envergonhada, escondida atrás das nuvens densas e escuras.

Gosto de ficar olhando a lua. Às vezes me pego parado, no meio do caminho, olhando pra ela como se nunca a tivesse visto. Talvez eu fique parado olhando pra ela quando a encontrar pela primeira vez. Talvez ela seja a minha lua, além de ser a minha flor.

Um dia desses uma amiga me perguntou se ainda tenho a lua pra admirar de minha cama. Claro que sim! Exclamei pra ela. Tenho a lua nos quatro cantos de minha casa. Tenho sim.

BjörK já não estava mais em minha sala. Outra cantora já ocupava o seu lugar. Mas a lua não saía de minha cabeça. Voltei à varanda a sua procura, mas ela continuava a esconder-se de mim. Promessas não cumpridas – algumas são assim: taciturnas, quase tristes.

A lua é o ponto que uni nossos pensamentos noturnos. Sim, a lua é o ponto de união entre nós dois; sim, a lua é testemunha de nossas vontades, é cúmplice de nossos anseios. Lua amiga que nos guia em vontades e caricias.

Minhas mãos continuavam mudas e cegas. Não sabia como jogar pra tela do computador os sentimentos represados daquela noite  - Eu estava travado, totalmente inibido. Estava como a lua: coberto, pela metade, por um manto cinza.

Mas de repente lembrei-me de um presente que ganhara há poucos dias – eu ganhara de um fotógrafo e poeta que lera um de meus textos, e num gesto único, complementou o seu comentário presenteando-me com uma de suas fotografias: uma lua majestosamente cheia. Abri a pasta e lá estava a lua de Tossan. Uma lua cheia, uma lua grávida de amor.

Olhei além da vidraça e percebi que estava começando a chover. O céu chorava suavemente molhando o outro lado da vida. Eu estava protegido das lágrimas celestes; eu estava protegido pela cortina molhada que descia do céu; eu estava abrigado pelo silêncio invasor.

Gosto dessas madrugadas molhadas que me obrigam a pensar.

Hoje, a lua não quis ficar comigo e minhas mãos se negaram a teclar qualquer coisa.

Hoje, eu me inventei em lembranças, músicas e vinho.

Hoje, eu queria tê-la, com ou sem a lua, como testemunha.

Hoje, eu queria tocar a sua pele com meus lábios apaixonados.

Gosto desses momentos não premeditados em que meu coração aflora este amor guardado.

A noite está indo embora como chegara – nua de estrelas. Mas deixou a certeza que a senhora prateada é minha amiga.

 Hoje o céu tentou escondê-la. Mas não adiantou. Recorri a minha gaveta e a resgatei através da fotografia presenteada pelo amigo Tossan.

Agora é sabido: Tenho-a no céu; tenho-a aqui na fotografia de Tossan.

Agora é sabido: Tenho você em meu coração.


Paulo Francisco

A visita

E esta chuva que não passa! Quem não já usou esta frase, pelo menos uma vez na vida.

Quando criança a primeira chuva do ano era sagrada – todos no quintal pulando de alegria – dizia minha mãe que dava sorte. Quando a chuva demorava a chegar, eu ficava olhando pro céu procurando uma nuvenzinha de esperança.

Brincar nas poças, fazer guerra de quem molha mais o outro – tudo vira brincadeira, quando se é criança.

Quando via que estava chovendo granizo, corria para o meu filho e gritava: ¨ Olha João,que lindo!¨ 

Tornava-me mais criança que ele. Granizo tem forma de infância; granizo é a prova que podia, também, chover canivetes. Você duvida? Eu não duvidava – acreditava. Acreditava que naquele momento de sol e chuva, uma viúva estava se casando. E como seria o casamento de viúva? me perguntava – ela usaria branco ou preto? Danava-me a rir.

Preto e branco. Até muito tempo a chuva para mim era branca. Mas, com o tempo, percebi que pra muitos a chuva era de cor escura, cinzenta, de cor preta. Mas não era aqui em nosso país - dizia para os amigos da escola – É lá ¨no¨ Estados Unidos, vocês nunca viram nos filmes que quando morre alguém por lá, logo chove?. E eles: ¨ehhhhhhh!¨

A chuva sempre foi mágica. Só consegui ver o filme que todos comentavam , quando criança, do ator dançando na chuva, depois de muito tempo. Fiquei na expectativa da chegada do ponto alto do filme - a dança. Confesso que fiquei frustrado e pensei: ¨ Poxa! É porque ainda não viram a gente aqui da rua dançando na chuva ¨

E esta chuva que não passa! Quem já não usou esta frase, pelo menos uma vez na vida. Eu mesmo, hoje, já a usei, impacientemente, umas três vezes. Já olhei para o relógio uma dezena de vezes; para o telefone umas tantas. É que hoje, já não danço; não faço barquinhos e sei que canivetes não caem do céu. É que hoje, sei que as viúvas não se casam – namoram e, que no final do arco íris não tem um pote de ouro. É porque hoje tenho pressa.

Mas como nem todo mundo se deixa contaminar, lá estava ela, ensopada, tocando a campainha.



Paulo Francisco


à moda antiga

Acordei com uma vontade enorme de escrever algo neste blog que fosse a cara dela, que a deixasse totalmente de pernas bambas, que fosse mais que uma crônica; fosse, então, uma carta de amor. Carta..., pois é, quando eu fiz um texto falando de cartas de amor um tempo atrás, recebi o comentário de uma senhorinha, de seus setenta anos, dizendo-me que o texto estava lindo, mas o escrever carta, estava em desuso, se tinha outros meios de comunicação mais rápidos. Ri, simplesmente ri. A metáfora era verdadeira.

Escrevia bilhetes amorosos antes mesmo de ser alfabetizado. Não aprendi a frase que dizia a vovó viu a uva, aprendi que ela É uma uva – não a vovó é claro. Eu escrevia cartas de amor. Eu ainda escrevo cartas de amor, mesmo que depois eu as guarde na gaveta.

Voltando ao assunto que me faz escrever esta crônica

Eu queria, verdadeiramente, dizer algo que a fizesse feliz ou que mostrasse todo o amor que tenho por ela. Mas como dizer-lhe coisas ao pé do ouvido com todo mundo lendo? Como acariciar seus cabelos com todo mundo vendo? Sou tímido e as minhas metáforas já estão batidas e repetitivas. Agora, eu fico aqui com mais de 180 palavras escritas e ainda não disse nada que a deixasse de pernas bambas, que sentisse vontade de sair de onde estivesse pra abraçar-me e me encher de beijinhos, mesmo que telepaticamente.

Acho que vou escrever uma canção de amor. Não, melhor não. Já sei! Um poema! Não, não seria uma coisa inédita e, ainda, corro o risco de ela achar que foi feito pra outra pessoa. Não vou me arriscar.

Acordei com essa vontade enorme de escrever pra ela e, agora, não consigo dizer tudo que sinto. Às vezes, eu sou assim: um tanto quanto atrapalhado, perco-me diante das palavras.

Acho que vou mudar o ritmo dessa prosa e dizer o seguinte: Acordei com uma vontade enorme de gritar o seu nome e dizer o que eu sinto por você para o mundo inteiro ouvir. Fica mais fácil de executar, não terei nenhuma crítica escrita, estarei sozinho com a natureza e continuaremos guardando segredo de nosso amor secreto.

Com licença, vou colocar o meu tênis e ir ao lugar mais alto desta cidade pra fazer a minha declaração de amor a ela. Só espero que a senhorinha não venha dizer-me que é bobagem tudo isto, porque  hoje se tem o celular. Aí eu morro, morro pelo o amor que ainda me faz ser romântico, morro ipsis-verbis. Ah, morro sim!.


Paulo Francisco

Outubro

Cadê o Paulo? Adorava ficar escondido e ouvindo as pessoas me procurando. Quase sempre estava em lugares impossíveis de me encontrarem. Por que as crianças gostam de se esconder? Lembrei desta passagem em minha vida, quando vi um menino tentando se esconder de sua mãe no supermercado. Ele não estava escondido, ele simplesmente a evitava, rindo do ar de desespero da pobre mulher. A cada virada de trezentos e sessenta graus sua, um risinho contido do moleque. Parei a certa distância e fiquei a observar a arte versus o desespero em plena multidão frenética e alheia ao fato.

A mulher começa, repetidamente, dizer baixinho o nome do arteiro: Filipe, Filipinho, Filipe, filipinho. O nome escoava entre carrinhos e cestos de compras. De quando em quando alguém parava com a mão no ar, antes ou depois de pegar um produto e ficava olhando pra aquela mulher que não parava de dizer o nome do menino e ao mesmo tempo andava sem direção. Resolvi acompanhá-la imitando o menino.

O garoto era travesso. Ele sabia que aquele desespero podia chegar a histeria e chegou. Além de gritar o nome do capetinha, ela perguntava por ele para os alienados compradores de supérfluos, mas não obtinha nenhuma resposta.

Depois de algumas confusões, o arteiro chega com um pacote de biscoito na mão e com cara de choro dizendo: Por que você me abandonou? A mulher olha pro dissimulado e o abraça apertado dizendo: perdão meu filho! Mamãe está aqui.

No começo achei a cena hilária, mas no final ela se tornou assustadora.

Até hoje me escondo. Mas não fico à espreita observando. Escondo-me de maneira clara. Retiro-me de cena sim, mas deixando recado. Não quero ninguém desesperado a minha procura. Às vezes me escondo em minha própria casa. É necessário um balanço de quando em quando.

Aprendi, a duras penas, que desaparecer é preciso, mas avisar é obrigação. Lá pelos meus dezenove anos, numa plena sexta-feira saí com uns amigos (a minha turma da escola não estava, eram amigos paralelos) e fomos cair numa festa num dos morros da cidade e por lá ficamos bebendo -namorando, namorando - bebendo, bebendo – dormindo - namorando, namorando e dormindo.

Perdemos a noção do tempo. Quando me vi estava diante de minha mãe no portão desesperada em plena tarde de domingo. Nunca mais me escondi; nunca mais deixei de avisar que estava bem.

Aquele moleque do supermercado tem certa inclinação para o desaparecimento temporário.

Então, antes de desaparecer, deixo o seguinte aviso:

Se perguntarem por mim, diga que só volto semana que vem. Que fui namorar a lua, contar estrelas e molhar os pés no mar. Se insistirem em saber o endereço, diga que basta olhar para cima que verão no céu mais duas estrelas. Mas se estiver de dia, corram para o mar, quem sabe terão a sorte de me ver mergulhar até os corais.

Gosto desta coisa do sem destino. Muitas vezes, não sei ao certo pra onde vou. Mudo de itinerário no meio do caminho. Viajo à mercê do vento.

Mas desta vez sei o caminho a seguir e o endereço onde vou cair. Não seguirei o amigo vento. Não usarei mapas. Não baterei na porta. Não serei visita. Não serei turista acidental. Cavalgarei em terras prometidas. Explorarei trilhas cobiçadas.

Vou ao encontro da lua; Pisarei em estrelas; transformarei o céu em mantô e, em penumbras adquiridas, sentirei o odor da primavera, beberei o néctar da flor. Sentirei a brisa lua; molharei meus pés em águas marinhas.

Sim, não estarei escondido. Estarei exposto.

A gosto.


Paulo Francisco