Vou(de novo!)

Eu sabia que ela tinha sumido porque precisava se concentrar em algo muito importante. Ela tinha que canalizar toda a sua energia em seu objetivo maior. Gosto disso. Gosto de pessoas decididas, principalmente de mulheres decididas. Mas quando o seu objetivo é o amor, ela fica tímida, com medo de ser vulgar, de ser oferecida.  -  ¨ Parem de ser oferecidas meninas!¨ Minha mãe dizia para as minhas irmãs quando estavam perto de algum garoto.  Mãe conhece os filhos que têm.

Se não fossem as meninas oferecidas, eu não namoraria nunca, tamanha a minha timidez. Benditas sejam as mulheres oferecidas que rasgam a carta das recatadas e caem em meus braços de corpo e alma

Deixe a elegância pra depois, venha sem véu, venha e me faça teu. Todos sabem que escrevo ao amor, que escrevo o que tenho em mim e o que tenho em sonho. Sou um sonhador nato. Acredito em mãos dadas, olhos que brilham em desejos e bocas sedentas em beijar. Acredito em corpos colados.

Hoje  acordei com a alma apertada, estava com saudade dela, estava com vontade de amá-la, mesmo que fosse por palavras escritas, tudo bem, eu as transformaria e a ouviria em mim. Hoje  acordei assim, um tanto tango, um tanto bolero, um tanto saudoso de um futuro que está por vir.

Ontem, minha comadre Mônica me ligou e foi logo dizendo: ¨ Tomou chá de sumiço! ¨ Ri, tinha tomado sim, estava querendo ficar aqui, isolado escrevendo poemas bobos, prosas sem nexos, ouvindo o tempo gritar através das folhas frenéticas presas as árvores e barulhinho de pingo de chuva na vidraça da porta.

Mas a saudade não pode vencer-me por inteiro. Fui à luta. Fui andar por aí. Tenho pra onde ir.

Caminhei engolindo nuvens e me molhando de estrelas.  Estava um tanto desligado de tudo, como na musica dos mutantes, cantada por tantos cantores e cantoras. Viajava sem nenhum subterfúgio, simplesmente viajava, flutuava em sonhos e galopava em desejos.

Fazer o quê? Se na minha andança eu não conseguia ver nada que não fosse o seu rosto? Tem gente que mexe com a gente dessa maneira: faz-nos de gato e sapato mesmo sem saber que faz.

Mas antes que eu me transforme em couro de tamborim e seja jogado num canto qualquer da casa, vou à luta.

Dizem por aí quem vai a roça perde a carroça. Mesmo assim, vou visitar meus compadres e afilhada por aquelas bandas. Vou sim.



Paulo Francisco

Ao vento

Lembrei-me, no meio do caminho, que eu não passei o filtro solar.  Voltei para aplicar aquele creme denso pelo corpo. Principalmente na cara e no pescoço.  Têm certas coisas que temos que fazer mesmo não sendo de nosso agrado.  Poderia enumerar uma dezena de coisas que faço sem a menor vontade de fazê-las. Mas não é o caso citá-las agora.

Não gosto de me esquecer das coisas. Mas esqueço.  Esqueço onde deixei à chave da casa, a carteira de documentos, as contas a serem pagas. Esqueço-me de almoçar, de comparecer a uma festa no meio da semana...  Esqueço-me de tudo. Ou de quase tudo.

Em algum lugar o inesperado fala comigo:

- Paaauuulo! Tudo bem com você? Há quanto tempo... Você não mudou nada...

Respondo sem graça:

- Oi... tudo..., você também não mudou...

A conversa continua e eu fico ali, querendo me lembrar de onde eu a conheço, qual o seu nome... e porque aquela pessoa sabe tudo de mim e eu não sei nada sobre ela. Já me acostumei com esses meus esquecimentos. Acho que fui sempre assim – não lembro direito quando comecei a esquecer-me das coisas. 

 Pessoas passam em minha vida como o vento no meu quintal.  Não guardo nomes, não guardo rostos. Eu guardo histórias. Não, não sou um ser frio, um ser desmemoriado, simplesmente não guardo em mim o que não pode ser transformado.

Num encontro marcado, ela colocou as mãos em meu rosto e falou como se estivesse falando com um pobre coitado:

- Ahhhhh você está barbudo, já não corta o cabelo há meses e suas roupas estão largas... Mas eu reconheceria você a quilômetros de distância. E continuou olhando pra mim com olhos de piedade.  Ela tentou, só tentou me transformar num ser menor. Uma estratégia de quem sabe que não vai ganhar o jogo: Enfraqueça o oponente, segure-o pelo seu ponto fraco e esmague o pobre coitado calmamente. Mas eu já conhecia a tática perversa empregada pela moça. Não funciona comigo.

Depois das frases envenenadas o abraço ficou frouxo, o beijo ficou seco e os meus olhos enxergaram além de seu ombro.  Eu não guardo faces. Eu guardo frases, paisagens, histórias. Eu não tinha mudado tanto a ponto de ser confundido com um mendigo. Ela tinha me inventado depois de muito tempo de ausência? Esquecera as minhas cores verdadeiras? Desenhou-me com a sua paleta de cores? Ou seria eu um camaleão?

Num mesmo dia, frases chegam e rostos desaparecem:

- Paulo você está ótimo! Anda fazendo o quê da vida?

- Paulo... tá tudo bem com você? Tem certeza? Estou achando você tão cabisbaixo...

- Paulo, cada vez que te encontro te acho mais animado...

Sigo o meu caminho esquecendo as máscaras, criando histórias, colecionando frases.

No quintal da minha casa o redemoinho chegava bagunçando tudo. Começava lento, pequeno, quase imperceptível.  Mas de repente levantava as folhas, enrolava os lençóis, fazia barulho.  Seria eu o único a presenciar o nascer dos redemoinhos? Ou outros pequenos olhos testemunhavam o espiral de poeira levantando folhas secas?  Meus olhos brilhavam, meu corpo pulsava tão rápido quanto aquele fenômeno repentino.  Procurava por Dorothy e seu cachorro totó.  Viajava no redemoinho como se ele fosse o ciclone indo para Oz. Das histórias eu nunca me esquecia. Talvez por serem as únicas coisas que eu tinha de verdade naquele momento de sonhos doces.

Quando a olhei bem de perto, tête-à-tête, eu a vi além de seus poros. Testemunhei em mim o nascer de um redemoinho sanguíneo.  Hemácias, leucócitos e plaquetas, dançaram no meu plasma em ebulição. Certamente eu estava vermelho. Meu rosto fervia. Meus olhos vermelhos me denunciavam. A minha voz embargada anunciava a minha fraqueza, gritava o meu medo. Eu estava exposto, sem a máscara de bandido, sem a capa do herói. Eu estava nu, descoberto, do avesso. Não me lembrava até aquele encontro de seu rosto, ele tinha desaparecido de minha mente como uma fotografia antiga em preto e branco – um proposital esquecimento de defesa criado pela minha alma, mas não tinha esquecido a nossa história guardada no fundo da gaveta.

 Os redemoinhos se formam, levantam coisas, mas não conseguem levar tudo. Eles não levaram as imagens impressas por sinapses em meu cérebro.

Quando cheguei à minha casa, enrolei-me no lençol, na tentativa de abafar, de prender, de desmanchar o redemoinho existente em mim. Eu esquecera, naquela tarde, de me proteger contra as ventanias repentinas. Quase me transformei numa folha morta e quebradiça. Por pouco não me desintegrei; não me transformei em poeira arrastada pelo vento.


E antes de dormir, enrolado em meu lençol, eu chorei, chorei por ter me esquecido do óbvio.



Paulo Francisco




Cotidiano

Não queria outra coisa a não ser ir pra casa, mas precisamente cair em minha cama, cobrir-me por inteiro e todo encolhido dormir até o corpo levitar. Estava cansado, estava moído.

Fui trabalhar virado, mais que virado, 36 horas sem pregar os olhos. Não, não fui obrigado a ficar acordado,simplesmente o danado do sono não veio. E é sempre assim, quando ele vem, vem mesmo: os olhos queimam, não consigo raciocinar, fico leso, lesadinho, como diz uma amiga, fico na ¨capa do Batmam¨ (acho engraçado esta expressão).

Pois bem, cheguei a minha casa às duas da tarde e não vi nada além de minha cama, caí e dormir o sono dos justos. Dormir até fazer bico.

Acordei quando o dia já tinha dado espaço pra a noite, uma noite típica de outono, céu com estrelas e lua a se transformar em cheia. Fiquei ali olhando o nada, sentindo o vento brincar com as cortinas que bailavam em ¨slow motion¨. Em ¨slow motion¨, estava eu, pensando na vida num espreguiçar felino.

Sabe aqueles dias que não queremos nada além de ficar parado, quieto, sentido cada célula corporal? Como se estivéssemos conhecendo ou reencontrando cada pedacinho de nós? Pois é, fiquei assim, numa preguiça continua, num marasmo necessário.

Mas como diz minha mãe, alegria de pobre dura pouco, o telefone insiste em tocar e eu saio de meu estado letárgico e vou buscá-lo. Atendo e é um amigo convidando-me pra assistir ao jogo no bar do João. Digo não, mas a insistência é tanta que acabo cedendo. Lá vou eu, a pé, assistir ao jogo com os fanáticos futebolísticos.

Sigo tranquilo  o caminho de sempre, observando os passos apressados de uns, as conversas  agitadas de outros, os olhares acanhados de alguns, os corpos magros e gordos que passam. Sigo em passos com asas. Sigo o meu caminho a sonhar. Sigo o meu caminho num transe sonar.

Lá estavam todos, com sorriso na cara e uma cerveja na mão. O churrasco na brasa e o jogo pra começar. Lá estávamos todos assistindo ao jogo, torcendo pro gol que estava pra chegar. Lá estávamos todos, cada qual com o seu cansaço; cada qual com seus sonhos; cada qual com seus problemas, mas que ali, naquele momento, o que importava mesmo era extravasar, gritar gol, discutir a partida no final do jogo. Lá estávamos todos, eles com o jogo e eu com a poesia.



Paulo Francisco

Dimensões





Acordei e percebi que estava só. O céu estava azul, as montanhas continuavam com os seus tons esverdeados e todas as casas, ao redor da minha, permaneciam como antes – com vida.

Acordei com a sensação de que não estava em mim. Era como se eu ainda estivesse sonhando, num flutuar confuso, entre a realidade e o sonho.

Algo estava fora de ordem, da minha ordem. Não sabia ao certo o que era, mas existia outra dimensão em mim. Seria a tal quarta dimensão? Não sabia... Angustiava-me por estar no desconhecido.

Acordei e percebi que estava perdido na minha própria história. Faltava-me algo, os meus olhos não enxergavam como antes; os meus braços não tinham mais a força de uma alavanca como ontem; as minhas pernas reclamavam de dores nos joelhos, já não conseguia ajoelhar-me com tanta firmeza; já não me lembrava com tanta lucidez do que acontecera no passado. Definitivamente acordei estranho. Existia uma camada grossa e pesada de pele que me obrigava a caminhar em passos lentos e arrastados. Bloqueei-me.

Procurei inutilmente em mim, algo que pudesse dizer-me que não era eu naquele corpo. Era um corpo roto, amassado, áspero. Era um corpo cinza e pesado.

Acordei e percebi que estava só. Nada saíra do lugar, somente o meu corpo antigo não estava mais em mim. Sumira.

Assustado, descobri que os dias se passaram, as semanas se passaram, os meses se passaram, as décadas se passaram e eu não tinha acompanhado o tempo, continuava parado, plantado, solitário, verdadeiramente isolado do universo-viver.

Minha casa já não tinha mais janelas, a porta não abria e o teto era baixo, era tão baixo que me obrigava a rastejar como se eu estivesse num caminhar tubular.

Não ouvia o barulho dos meus pés no assoalho de madeira. Não havia som. Tentei gritar, mas não me ouvia - estava mudo e surdo.Desintegrava-me como se meu corpo tivesse sido feito de camadas de argila jogadas por mãos pesadas e sem o menor jeito para moldar um corpo.



Antes da total desintegração, tentei gritar e o meu grito soou por toda casa e o seu eco acordou-me. Não estava mais surdo e mudo.




Acordei molhado, meu lençol estava molhado, minha cama estava encharcada e quando percebi, estava sendo engolido por uma água salobra – tudo flutuava naquele quarto hermético e aquático – estava num aquário.


A cada movimento que fazia a água subia mais um pouco. Já estava chegando ao teto, já não conseguia respirar com tanta facilidade, precisava mergulhar naquele caldo grosso e salobro. Precisava sair dali.

Mergulhei e acordei. Acordei deitado em pétalas de flores brancas. Tinha mergulhado numa caixa transparente lotada de pétalas brancas, tentei sair e meus braços estavam presos cruzados em meu peito, minhas pernas estavam esticadas e juntas, não me movia e meus olhos entreabertos enxergavam parcialmente caras tristes que fixavam em mim.

Eu era observado por olhos curiosos e chorosos. Tentei levantar inutilmente, não conseguia impulsionar meu corpo pra frente. Percebi que precisava balançar aquele caixa pra que ela pudesse cair e eu sair daquele colchão de flores.  Fiz um esforço imenso até conseguir derrubar a caixa.

Derrubei e acordei.

Paulo Francisco

Pombo-correio





Até os pombos-correio cansam! Acordei com um arrulhar familiar em minha sacada – era um pombo. Aparentemente cansado e assustado. Estava ele cansado por que o seu destino era distante? Ou estava ele assustado por que a rapina o espreitava?

Não é comum avistar-se pombos por aqui. Principalmente em minha casa. Aqui, somente aves com certo exotismo. Não que os ache feios, mas é mais comum vê-los em praças publicas sendo alimentados por velhas senhoras e assustados por crianças que cismam em agarrá-los, fazendo-os levantarem voos repentinos, sujando tudo de penas e espalhando suas fezes secas causadoras de alergia respiratória e micoses em nós- humanos.  Merda de pombo mata!

O pombo em minha sacada me fez lembrar quando morava no subúrbio do Rio e, acabei tendo uma discussão daquelas com um velho cantor aposentado (hoje morto), que me acordava de manhazinha com seu radinho estridente na sua sala que dava, infelizmente, de frente para o meu quarto. O velho cantor odiava pombo, e eu a sua mania de ouvir rádio alto às seis da manhã. Na época, trabalhava na minha tese de mestrado até altas horas e dormia na parte da manhã até ao meio dia.

Certo dia, fui acordado pelos seus berros de protestos por causa de um ninho de pombo na abertura do ar condicionado de um dos meus quartos. A discussão foi feia e aproveitei a ocasião pra despejar a bronca que estava dele e disse:

- Merda contagiosa é o seu rádio às seis da manhã! Eles vão ficar por aqui e pronto. Você vive perturbando o sono alheio e ninguém chegou até você pra te ofender. Vai balançar o seu lencinho em outra freguesia.

Eu sabia que ele estava coberto de razão. A Columba Lívia ( a pombinha da paz ) é uma ave perigosa pra nós humanos. Que o diga o LC.(não fui autorizado dizer o seu nome) que foi parar na Fiocruz depois de ter passado por vários médicos e exames. Somente no Instituto de pesquisa que o camarada soube, com certeza, que sua enfermidade adveio das fezes de pombo. Numa investigação mais detalhada veio a surpresa que sua doença foi ocasionada por ter respirado os microorganismos num quarto de motel com o ar condicionado ligado numa transa pra lá de animal. Merda de pombo mata!  Escapadelas também!

Já fui acordado com pássaro em minha cabeceira; Já fui assustado por gatos, sapos, caranguejeiras, ouriços, gambás, cobras e outros bichinhos estranhos – quem manda morar no mato, quer ser assustado por ladrão, vai morar na cidade.

As maritacas são aves que alegram-me - gosto de suas algazarras sempre em bando -, O gavião e o facão são os que me fascinam. Estava deitado em minha rede quando o gavião batia suas asas, calmamente, num voo de predador. Adoro a sua certeza no abate as suas vítimas. Ave de rapina que me fascina.

 Ela ficou, ali, girando ao meu redor por muito tempo, quase que a danada me bicou. Mas mesmo não sendo um especialista em aves – um ornitólogo - e muito menos em galináceos, consegui a tempo desmascarar a danada. Merda de outras aves também pode matar.

Mas, voltando para a ave que me fez escrever este texto, fui até a sacada e não mais a encontrei, possivelmente o bilhete não era pra mim. Certamente ele parara pra descansar e partiu para o endereço certo.

Só espero que não seja um daqueles pombos- correio que estavam levando drogas e celulares para o presídio. Já pensou!? Eu sendo preso por ser cúmplice de um pombo-traficante? Ah, mas esses pombos voavam lá no interior de São Paulo. Por aqui, eles usam o bicho–homem  para tais tarefas.  Merda humana também mata.







Paulo Francisco