Quarto secreto

Final de semana agitado. Sua filha resolveu convidar duas amigas para passarem o sábado e o domingo com ela. Duas filhas, duas amigas, um filho e uma gata – Apartamento lotado.

Com todos os problemas que surgiram, de repente, na sexta- feira negra, ela não deixa a peteca cair. 
Acostumada a disfarçar os problemas diante da cria – desde o tempo de casada, tirou de letra aquela situação inusitada e constrangedora.

Dias nublados e garoados. Nada de passeio, nada praia, nada de shopping. Pipoca, computador, vídeo game e Tv, ou seja, final de semana desarmada e sequestrada.

De quando em quando um recado no email de seu amado secreto. Vinte e quatro horas sem teclar, quarenta e oito horas sem ouvir a voz de quem lhe quer bem.

O telefone toca – sobressalta-se, morre de medo que seja ele e, um de seus filhos atenda-o, ainda não pode revelar para ninguém seus sentimentos; ainda não pode dizer com todas as letras: Este é o meu homem..

Agita-se na cozinha, café da manhã, almoço, lanche. Tudo para agradar as suas jóias raras. Orgulha-se em vê-los às gargalhadas, tenta ficar distante para não atrapalhar o movimento deles, mas é impossível. Eles a chamam. Ela é importante.

Seus pensamentos estão a quilômetros de distância, ultrapassa a barreira do estado. Ultrapassa a barreira de seu estado – de angústia e felicidade; de revolta e compaixão.

Noite de domingo. Tudo se acalma. Vai para o quarto, cansada, toma um banho quente e relaxante. Pensa: ¨ Amanhã é segunda-feira, poderei falar com ele tranquilamente ¨

Mas antes que isto aconteça, ela sonha secretamente.

Impossível ficar sem ele mais uma noite.

Paulo Francisco

Furta cor


Tudo pronto. Mochila arrumada. Feriado prolongado na Serra. Era tudo que precisava depois de um mês intenso de trabalho. Poderia viajar para qualquer lugar, mas, cansada de praia, preferiu ficar cinco dias no sítio da família.

Já na estrada, com seu carrinho 1.0, dirige calmamente ouvindo seus cantores preferidos. Magrelinha de Luiz Melodia no som do carro e pé na estrada. Dirige sem o stress do trânsito absurdo da Cidade.

Chegando à raiz da Serra percebe a diferença na temperatura – esfria bruscamente. O verde do lugar lhe encanta. Sempre que pode sobe a Serra. Adora a tranqüilidade do lugar.

Caetano acabara de cantar Cajuína quando decide parar para um cafezinho e esticar as pernas.

Desce do carro e alonga-se. Segue até o balcão da loja, pede um copo de água mineral e o café. Olha as gôndolas repletas de biscoitos amanteigados e compotas artesanais. Pega um cesto de vime e enche-o com as guloseimas locais e pensa: ¨Vou ficar gorda!" Dá de ombros. Apanha um queijo do tipo curado. Paga tudo com cartão de crédito.

Entra no carro e segue seu caminho, ouve Amor de Índio de Milton. Cantarola junto. A música lembra o seu primeiro namorado. Milton cantando e ela lembrando dele, o responsável por seu primeiro beijo - Rafael.
Começa a se perguntar: ¨ Como ele deve estar?¨ ¨Casou-se?¨¨Tem filhos? ¨ ¨ Será que ainda mora no mesmo lugar?¨

A voz de Bebel Gilberto tira-a de seu pseudotranse. Canta junto com ela.

¨ Ufa!¨- Exclama - Estava quase chegando a estrada de terra que ainda tinha que enfrentar até o sitio.

Lembra-se de como era difícil chegar ou sair do sitio quando chovia. Mas ela, quando menina, se divertia com tudo e não estava nem aí para dia lamacento, empoeirado ou qualquer outro transtorno, o que queria mesmo era andar a cavalo, charrete, mergulhar na cachoeira, subir nas árvores e curtir ao máximo seus momentos campestres - chamava assim seus dias no sitio.

Chega a entrada da propriedade. Para, sai do carro, abre a porteira, entra de novo no carro, passa pela porteira, para de novo, sai, fecha a porteira, entra no carro e segue até a casa.

A caseira deixara tudo pronto – comida na geladeira e casa arrumada.

Olha a sua volta e, percebe que nada mudou. Tudo se mantém na mais perfeita ordem.

Levanta e vai direto para seu quarto. Cada quarto tinha uma cor. O dela era o verde. Sempre gostara desta cor. Até mesmo o seu apartamento era pintado num tom de verde claro.

Gira a maçaneta de louça e empurra a porta pesada de madeira maciça. A luz do sol atravessa a janela e a deixa cega por alguns segundos. Já acostumada com a claridade invasora, nota que tudo permanece igual.

Olha para os porta-retratos na cômoda e, descobre o quanto foi feliz naquele lugar!

Deita, aperta a tecla do pequeno aparelho de som. Adormece ouvindo sua seleção de músicas do Frejat.

Ela acordou e tudo amareleceu. Não estava mais em seu quarto verde. Confusa, porque nada estava como antes. "Onde estou? – pergunta-se. Percebe que ainda era seu quarto e tudo que ali estava lhe pertencia, mas estava velho, amarelecido.

Correu para a porta e ao tocar na maçaneta viu sua mão velha e enrugada. Corre para o espelho e não acredita no que vê – envelhecera, era uma mulher velha e manchada. Desesperada, com as mãos em sua face envelhecida, sente tudo rodar e como um objeto pesado cai no assoalho escuro de madeira.

Ouve vozes. Acorda e vê duas caras enrugadas a sua frente. Ela reconhece aqueles rostos. Uma era de sua amiga de infância e o outro, daquele que tanto queria rever e não sabia onde estava. Muda, olhando para aqueles rostos tão castigados, pensa no que estaria acontecendo com ela.

Pacientemente, o casal de velhos carrega seu corpo leve e ossudo para a cama. Sem dizer uma única palavra, aterroriza-se e, de maneira lenta, se encolhe como uma criança assustada.

Sente uma picada em seu braço direito e, ao abrir os olhos, depara-se com uma outra mulher de rosto arredondado e com um sorriso angelical. Jovem, bonita, tem traços conhecidos e pode ouvi-la bem baixinho algo parecido como: ¨Ela vai ficar boa, papai... ¨ Olha em direção a porta e vê, novamente, o rosto masculino com quem tanto sonhara.

A injeção a fez dormir.

Não sabia por quanto tempo dormira. Acordada, pôde perceber que seu quarto continuava num tom de amarelo - quase palha. Levanta e segue para o corredor – era a sua casa mesmo - pensa. Não tinha sido transportada para um mundo irreal e ao caminhar naquele imenso corredor, encontra a porta de um dos quartos pintada de verde.

Não resiste e entra sem bater. Lá encontra uma decoração moderna, jovial contrária do quarto em que estava.. Sem saber o que realmente está acontecendo com ela, percebe que na cômoda existem vários porta-retratos e em todos eles seu rosto! Sem querer acreditar, pôde ver cada fase de sua vida – ela era mãe daquela mulher que há pouco aplicara-lhe uma injeção e aquele homem era seu marido – concluiu espantada.

Na sala todos reunidos. Ela chega, olha para aquelas caras sorridentes e, com uma voz fraquinha diz: ¨Hoje tive um sonho daqueles, sonhei que era jovem e estava ocupando o quarto verde de Laurinha e que de repente tudo se transformava em amarelo. Uma voz rouca lhe responde: Amarelo ouro minha flor!

E todos sorriem: o marido, a filha, a amiga e os três netos com as suas respectivas esposas.

Todos lá estavam para comemorar seus setenta anos de vida.


Paulo Francisco

Duas faces

Faça um circulo de fogo em volta de um escorpião que de imediato ele se suicida. Mentira! Este artrópode não tem esse sentimento guardado em seus instintos. Ele morre pelo calor do fogo, ele se desidrata e, automaticamente, seu aguilhão se curva como se estivesse sendo encravado em sua própria carapaça. Mas bem que a ideia de que o escorpião se suicida é bem interessante, é quase filosófico, guerreiro, poético ou qualquer coisa dessas inventadas pelo bicho-homem.

Quando a pessoa diz: sou um escorpião! Ela quer dizer o quê? Sou um suicida? Um ser peçonhento e vingativo? Uma pessoa que não leva pra casa desaforo, que não aceita perder?

Então vamos conhecer o outro lado deste grupo de aracnídeo: Ele é um dos mais românticos na hora de se acasalar. Depositam seus espermatozoides (guardados numa caixinha) num substrato limpo e numa corte nupcial ele dança pra fêmea, até hipnotizá-la por completo com o seu bailado sedutor, aí segura-a pelas pinças e a traz até a sua caixinha de amor que é sugada por ela. O escorpião é um cavalheiro que dança para a sua noiva.

Então, eu entendo, que quando se diz ser um escorpião, talvez seja pela fragilidade do ser, pela maneira de se defender e pelo amor que tem pela fêmea. Não vou entrar, neste texto, no mérito da partenogênese - deixo pra outro dia.

Faça um circulo de fogo da paixão em volta de mim, que de imediato, eu danço a dança do amor. Neste caso sou um escorpionídeo.



Paulo Francisco

Sobras




Ele estava totalmente perdido, perdido em seus pensamentos. Viajava pra mundos distantes, talvez para um único mundo – o dela.

Entre a realidade e o sonho; entre o vento e o sol; entre a sombra e a chuva, lá estava ela, sempre ela.
E num destes dias de outono, entre folhas amareladas e patativas insistentes em galhos adormecidos, ele escuta um cantar fino e melancólico. Não, não era uma das patativastristes, era um cantar feminino; era uma voz quase infantil de tão doce.

Admirado com a presença da mulher cantando e tocando violão, no gramado daquele parque, ele se perde em lembranças e sonhos.

Uma, duas, três músicas e, seu encantamento é desfeito, por um borrão contra o sol. Era o par da moça com sorriso de menina.

Enquanto o casal se beija, ele levanta daquele banco de madeira, assustando os pássaros por ali pousados.
O sonhador caminha em passos curtos em direção ao seu carro e, já dentro do veiculo, abre sua pasta e tira um aparelho e, em pouco tempo, lá estava ele de novo a sonhar, ouvindo a única coisa que restou dela – uma canção.

Constatação


Semana passada, saí de casa, decidido a comprar um par de tênis. Andei por várias lojas, namorando as vitrines. Confesso que gostei de vários modelos, mas tinha decidido o que eu queria. O calçado teria que ser igual à minha última aquisição há um ano.

Os vendedores, ávidos por uma venda, tentavam me empurrar outros modelos, mas eu já tinha registrado em minha mente e coração o que eu queria.

Por mais que eles explicassem que o modelo desejado não fazia mais parte do catálogo deste ano, eu, teimosamente, recusava os outros.

Não conseguia entender, como um produto tão bom, que se encaixou perfeitamente nas minhas necessidades, me suportou por um ano inteirinho, não era mais fabricado, era um modelo ultrapassado.
Voltei para casa com as mãos leves e as pernas cansadas. Fui direto para o meu quarto. Peguei o meu cansado e amigo tênis que, aparentemente, estava com o couro perfeito, mas, decerto, sua sola não agüentaria o tranco de minhas pisadas fortes e tortas, e guardei-os na esperança de recuperá-los.

No outro dia, acordei decidido a comprar um outro par de tênis – não podia ficar sem nenhum – entrei numa daquelas lojas que a gente pergunta sempre quando passa por elas, como sobrevivem, pois nunca tem ninguém comprando e a vendedora, coitada, quase um manequim, olha para os transeuntes com aquele olhar de promessa.

Assim que entrei, os olhos da coitada brilharam, um sorriso estudado brotou em sua face e antes que ela pudesse vir com a frase pronta, fui logo dizendo o que queria. A pobre moça se desmontou toda e repetiu o que os seus colegas me disseram no dia anterior.

Mas como eu já estava na loja e precisava de um tênis, recuperei o sorriso da moça e deixei que trouxesse vários modelos. Experimentei alguns - gostei de poucos.

Mas não querendo repetir o incômodo de ficar calçando sapatos por aí, resolvi sair dali com alguma coisa e acabei comprando três pares, para a alegria da pálida vendedora.

Chegando em casa, percebi que não adianta substituir o que a gente ama. O certo é conservá-lo, pisando leve e menos torto possível.






Paulo Francisco