Teadoro, Teodora!





Quando ela ouviu a minha voz pela primeira vez, ela riu do meu esse e do meu erre. Disse que o meu esse tem som de Xís e que o meu erre é carregado. Ela riu de mim. E a sua risada de menina travessa me contagiou e rimos juntos destes meus esses e erres.

Ri. Há muito tempo que não soltava uma gargalhada de verdade – uma daquelas de virar a cabeça pra trás e de doer a barriga. Já não sorria tão facilmente. No começo do ano estava carrancudo, sombrio. Aí, ela chegou de mansinho e foi me conquistando e, acabei voltando a ficar leve. Não vou dizer que sou a leveza absoluta do ser, mas permito-me em ser, pelo menos, um pouco menos pesado.

O que adianta ficar o tempo todo remoendo passado? Passado já foi! Então, tento, agora, criar um presente mais suave - azul. Claro, que de quando em vez, surgem umas nuvens acinzentadas, mas logo vão embora – não deixo que elas se transformem em tempestade. O que eu quero dizer é que parei de resmungar. Chega de bancar o dono da verdade. Nunca me levou a nada este meu lado cri-cri. Até porque, não era tão ranzinza – fui me deixando contaminar por maus-humores alheios.

Agora quando vejo uma cara carregada digo: ¨Tá indo visitar o rio são Francisco?¨ e dano a rir. A pessoa pode não entender a piada naquele exato momento, mas que depois vai dar uma boa gargalhada, ah! isso vai!

Ontem, a minha Teodora (apelido carinhoso que dei a ela) estava carrancuda, culpa minha – provoquei! Ela ficou mau-humorada, e eu deixei que ficasse zangada por um bom tempo. Depois eu falei pra ela: ¨ Você sabia que eu escorreguei da escada e esfolei as minhas costas? ¨ Ela danou a rir. Rimos juntos.


Paulo Francisco

Um dia após o outro



Nada melhor que um dia após o outro. E depois de uma semana aguada, de cárcere privado, de apertos no coração, o sol chegou clareando as montanhas, esquentando a pele, pintando a alma, banhando de azul a prata esquecida num dos cantos da vida.

Tudo era tão inocente, tão infante, tão absolutamente doce, que eu não podia imaginar a minha vida de outra forma que não fosse de sol intenso e luas vermelhas, vermelhas como as frutas doces roubadas das feiras-livres por onde passei. Ah, eu fui ladrão de ilusões, roubei estrelas de céus alheios, enganei o sol ao meio dia, distraí a lua em canções doces e infantis. Fui sim, fui moleque arteiro de pular muros e correr o dia inteiro, como se o mundo só pudesse girar com as forças dos meus pés ligeiros.

Eu era vento que corria pelos terreiros de chão batido assustando as aves e manchando os lençóis brancos pendurados no varal de corda.  Não gostava da chuva, não gostava de lugares fechados. A madrugada ainda não tinha se apresentado em minha vida.  Não sabia o que era solidão até então.

Levantei com o sol sorrindo. Depois de uma semana de dias escuros, de ventos molhados, de noites sem lua, de frios inesperados, de janelas encostadas e de ruas vazias, o sol chegou pra restaurar a paz.  Não gosto de dias nublados, chuvosos, e principalmente de noites sem lua.

E depois da solidão insistente, do sofrimento masoquista, da palidez fria, das lágrimas ácidas, da boca rachada, das mãos acinzentadas, do crime frustrado, do suicídio incompetente... ela chegou trazendo cheiro de flor, a brisa trouxe consigo o aroma da vida, a certeza que nada é pra sempre e  que dias melhores sempre estarão por vir.

Nada melhor que um dia após o outro.  Lá estavam as casas de olhos abertos espiando tudo; a moça debruçada na janela, a velha sentada na cadeira, o gato deitado no muro, as crianças indo para a escola e o cachorro latindo para o mundo.

E como amanhã é outro dia, caminho cantando as cores da vida, porque ela certamente continua.

Paulo Francisco


Um dia qualquer



Levantei como eu gosto. Não tinha nada previsto. Nada agendado. Estava para o que der e vier. Manhã de sol. Muito sol. Mochila nas costas e caminhei para o meu parque preferido. Subi a trilha e lá de cima avistei minha cidade. Abri os braços e gritei. Gritei como um louco; gritei como um menino; gritei para o infinito o nome dela; fiz declarações de amor que foram levadas ao vento e espalhadas entre nuvens. E a cada grito meu, as árvores tremiam de emoção. E a cada vento soprado, seu nome era carregado para o céu.

Adoro estes dias ensolarados. Gosto de ler ao ar livre, deitado na grama embaixo de uma árvore centenária. Não tem leitura melhor.

Ali permaneci, por algumas horas. Volta e outra tirava meus olhos das letras e corria com eles numa visão panorâmica. Nada daquilo me era estranho. Crianças soltas, mães despreocupadas, nativos e estrangeiros num mesmo nicho - Sem divisão, sem território. Cabelos encaracolados, lisos, encarapinhados, loiros, negros; todas as cores de pele num mesmo abraço, num mesmo sorriso.

Gosto da mistura. Gosto dos sotaques misturados, transformando o som da voz numa sinfonia em ondulações variadas.

Saí do parque e caminhei até a feirinha de artesãos da cidade. Lá, tráfego de gente, vozes se misturam num barulho abafado e sem significado. Vozes desencontradas, frenéticas e sem uma frequência modular.

Saí sem comprar nada. Entrei para olhar; para sentir; para espiar e ser espiado. Gosto de observar gente.

Continuei com o meu dia improvisado. Continuei caminhando. Parei em frente à escola que fez parte de minha pré-adolescência. Olhei por uns instantes aquela arquitetura dos anos setenta projetado pelo Oscar Niemayer. Uma escola doada ao Município pelo Adolpho Bloch e localizada nada mais, nada menos que numa praça projetada por Burle Marx. Sorri. Sorri por lembrar minha ingenuidade em achar que o mundo era sempre de sol. Ali eu fui um moleque feliz.

Outras paradas necessárias.

Passei pelo teatro e comprei dois ingressos para a peça em cartaz. Conferi o que estava passando nos cinemas – nada me agradou. Parei diante de uma loja, gostei mais não comprei o sapato azul.

Parei no bar do João. Bebi cerveja; jogamos conversa fora e prossegui a minha caminhada itinerante.

Já em casa, uma ducha, um café, um som, um colchão.

O telefone tocou. Era um amigo convidando-me para sair. Eu disse: hoje não.

Mais tarde a campainha toca. Desço e no meio da escada volto para apanhar os bilhetes que comprara.

Adoro estes dias improvisados.



Paulo Francisco

Mitos






Os urubus planavam pacientemente nas correntes termais. Gritávamos:"Urubu vai chover?" E eles respondiam que sim com o bater das asas. Corríamos para o chão batido e com caco de telha desenhávamos o mais belo Sol, com face, olhos e sorriso.


Acreditávamos, piamente, que o nosso Sol desmancharia a certeza dos urubus. Gritávamos novamente:"Urubu vai chover?" E os danados em pleno voo aquecido, em total economia de energia, tornavam-se preguiçosos e não batiam as suas asas – passeavam absolutos no céu. Motivo para euforia. Gritávamos como índios em volta da fogueira em dia de festa.

Éramos crianças. Vivíamos num mundo de faz-de-conta e tínhamos a certeza de que tudo era verdade. Acreditávamos em fantasmas, bruxas e duendes.

Cresci acreditando que jogar pão fora era pecado. Até hoje, não consigo tal ato. Depois, descobri que o pecado não nos levaria ao inferno e, sim, à desvalorização da vida.

Custei pra entender, chinelo virado não faz ninguém morrer, e cortar o rabo da lagartixa, mesmo sem querer, não fará sua mãe ser praguejada pela cotó.

Atirei muito o pau no gato. Morria de sede toda vez que ia ao tororó e, possivelmente, revoltado deixava a morena sempre por lá. E a todas as frutas preferia salada mista.

Cresci e não mais corri dos ciganos, pelo contrário, fui seduzido pelas suas sedas e cores. Tive a certeza de que o Gentileza não era Cristo e muito menos Profeta. Comunista não comia criancinhas. Que o padre não tinha mulher se não quisesse. A beata não é mulher de Cristo e sim uma adoradora. Que o trem azul era menos que o prateado. Que entre todas as zonas: sul, norte e oeste, tinha aquela que não estava no mapa.

Não pergunto mais para os urubus, em correntes termais ou não, se vai chover. Agora eles têm outro significado: são importantes e fazem parte da natureza.

Cresci...

Mas quando vou para o mar, ainda acredito que uma daquelas gaivotas, tem em seu bico uma mensagem sua.

Fazer o quê se não cresci de todo?


Paulo Francisco

Aterrissagem forçada





Um barulho e um susto.  O pássaro bateu na vidraça e ficou paralisado de olhos abertos no chão da sacada. Olhei para ele e não sabia se o socorria ou o deixava ali parado, se recuperando da pancada. Decidi então não mexer com o coitado. De quando em quando eu virava minha cabeça em sua direção para certificar-me se o atrapalhado estava se recuperando ou não. Aparentemente sim, a sua cabecinha já se mexia de um lado para o outro, mas o corpo não. Demoraram uns vinte minutos para o danadinho se movimentar por inteiro. E de repente a liberdade – ele voou.

O seu voo me fez sorrir.

Gosto dos pássaros no céu. Afinal, eles têm asas pra isso - para voar, e não pra ficar preso em grades de arame ou madeira, satisfazendo o sadismo de alguns ignorantes. Odeio covardia.

Não entendo tamanha irracionalidade humana.  Como também não entendi, na época, a pedrada que levei, quando criança, por não ter deixado o moleque estressado matar o passarinho na calçada. Cheguei a minha casa todo ensanguentado e com a testa furada. Não sabia se estava chorando pela dor da pedrada ou por ver a minha mãe em desespero ao avistar-me tingido de vermelho. Nunca entendi a alma daquele moleque. Ele era mau.

Hoje, quando vi o passarinho bater com tudo na vidraça, me achei perverso por não ter o socorrido de imediato, como a minha mãe fez comigo no ocorrido já citado. Mas era verdadeira a minha preocupação em não querer feri-lo mais ou deixá-lo mais assustado ainda.  Fiz o certo, como também fiz certo em defender o frágil passarinho da maldade do menino.  Pois, eles voaram para longe do perigo.

Perigo. Palavra que me acompanhava por toda parte:

- Paulo, não aceite bala de ninguém na rua.

- Meu filho, não entre em carro de pessoas estranhas.

- Ô garoto, eu já falei pra andar próximo ao muro, nunca ao meio-fio, você entendeu?

- Eu já não falei que não era pra você se afastar daqui.

Tudo era perigoso.  Os ciganos, os comunistas, a polícia, o exército, tudo e todos.  Somente entendi a preocupação dos meus pais, quando tive o meu filho. Nasceu em mim um medo nunca vivido.

Mas mesmo com todos os avisos, eu sempre fui moleque de rua, de andar descalço, de fazer amizades, de correr perigo.  Eu queria voar, voar alto, ser um passarinho. Mas, os fatos que aqui narrei ensinaram-me que ter asas e poder voar é viver na iminência de encontrar uma vidraça no meio do caminho ou ser atingido por pedras vindas das mãos do inimigo. Porque nem todos podem ser como os passarinhos. Não podem não.




Paulo Francisco