Sonho meu


Sim, eu sei que a paisagem muda a cada instante visto.  Sentado em minha cadeira de palha, à sombra de minha varanda, percebo-te, percebo-me, percebo que estamos cada vez mais silenciosos. Estamos mais calados, mais monossilábicos.   Verdadeiramente estamos cada vez menos. Cadê o sorriso no olhar a cada encontro casual? Cadê a esticada de lábios, as pálpebras fechadas e o suspiro em uma fração de gozo, simplesmente por termos a certeza da presença do outro? Cadê!?

Estamos morrendo? Estamos desaparecendo a olhos vistos?  De certo que sim. Mas não agora. Agora, neste instante não, não estamos. Eu sinto que não.

Sim, a paisagem muda a cada segundo vivido.  Mas ainda vejo da minha varanda, a construção de sonhos.  Sinto a presença de Deus no voo dos pássaros.  De quando em vez Ele assopra em meus ouvidos sons divinos. Canções. Canções cantadas e tocadas por arcanjos. Você nunca os escutou? Ah, claro que sim... Foi você que me ensinou a ouvi-los.

Não vamos deixar que o tempo desgaste aquilo que preservamos por tanto tempo – a nossa cumplicidade. Sejamos cúmplices até a morte. Morte certa e ingrata.

Venha, senta aqui ao meu lado, observe comigo aquela construção. Veja como os pássaros passam velozmente próximos as nossas cabeças. Você viu que a roseira tem um novo botão? Nascerá certamente a rosa vermelha mais bonita de todas. Mais bonita que a rosa do Cartola, que a rosa do Vinicius ou a rosa do Chico. Sim, nascerá a rosa mais linda do mundo. Tão linda como o seu nome: Minha Rosa, minha Rosa querida.

Se sou um sonhador!? Claro que sou! Sonho sempre. Talvez eu morra sonhando. Morra pensando ser um passarinho.

Ah, deixa tudo por aí... Venha sentar-te perto de mim... Misture seus dedos aos meus. Acompanha a minha respiração; siga os meus olhos e perceba o movimento das nuvens. Abraça-me! Venha logo me abraçar bem apertado.

Não se queixe, os meus também estão brancos. Gosto de olhá-los e pensar que prateamos juntos; que enrugamos juntos; que fomos os descobridores de cada mancha em nossas costas.
Ah, meu amor não durma agora. Abra os olhos, veja-me. Sinta-me. Eu estou aqui, não irei há lugar nenhum.  Estarei sempre aqui perto de ti.

Hoje, os nossos não ligaram. Mas ontem também não... Qual foi a última vez que telefonaram? Tudo isso!? Devem estar ocupadíssimos com os meninos. Lembra como ficávamos quando eles eram pequenos... Só tínhamos tempo pra eles...

Você sabe quem são essas pessoas a nossa volta? Não reconheço nenhuma delas.  Engraçado, de repente a nossa casa se encheu de gente estranha... Quem é este que me segura pelo braço?

- Quem é você?

- Sou o seu enfermeiro Seu Carlos...

- Enfermeiro!? Não estou doente... Pra onde me leva? Deixe-me aqui com a minha esposa...

- Agora o senhor tem que voltar para o quarto... Os seus filhos já estão chegando...

- Meus filhos? Eu tenho filhos?

- Sim, eles chegarão logo...

Você sabia querida, que tive um sonho horrível. Acordei assustado. Sonhei que você já não estava mais aqui pertinho de mim... Bobagem, você nunca deixaria o seu velho, não é mesmo!?.Boa noite querida. Tenho que ir...


[Acordei todo suado. Corri ao espelho e repeti uma dúzia de vezes: Eu me chamo Paulo, Paulo!]






Paulo Francisco

Bicho-grilo





Na primavera os rios correm felizes. Disse a frase olhando para um pequeno rio enfeitado por pétalas coloridas.  A água seguia num fluxo cadenciado, fazendo dos gravetos e rochas os seus instrumentos musicais. O riachinho acompanhava o canto macio da mata, carregando folhas e pétalas coloridas que dançavam na sua superfície, enquanto que meus olhos brilhavam no reflexo da lâmina d´água.

Fiquei ali parado, ouvindo, tentando me integrar aquela diversidade de imagens e sons.  Deixando o vento levar o meu cheiro. Aceitando de olhos fechados, os vários cheiros que chegavam as minhas narinas.  Ainda de olhos fechados tentava reconhecer aquela mistura da natureza, mas quase não conseguia, pois o meu coração estava acelerado e a minha respiração estava intensa – ainda continuava com a cadência urbana, não tinha me despido por completo da poluição de todos os dias.

 Mais tarde segui a trilha acidentada identificando o passado: Os meus olhos seguiam o voo do capitão do mato com o seu azul brilhante e de outros lepidópteros não menos brilhantes; Eu tentava identificar os pássaros nas copas das árvores, meus olhos tentavam encontrar o inesperado, algo que transformasse o meu passeio num dia inesquecível. Ainda não tinha me dado conta que o passeio já era uma transformação, algo que eu não esqueceria e que meus olhos clicavam para dentro da minha alma.

Segui em frente. Sabia onde eu queria chegar. Já tinha traçado o meu caminho e, talvez por isso, a sensação enganosa do óbvio me entristecia. Mas não era bem assim. A cada passo, a cada movimento, uma paisagem viva enfeitava meus olhos e alegrava a minha alma. Eu estava enganado. Tudo era lindamente grande – um espetáculo único.

As teias de aranha rendavam algumas árvores e as folhas devoradas por hexápodes as transformavam em únicas com suas nervuras expostas. A arte natural criada por seres complexos e estranhos. O feio também tem mãos mágicas.

As formigas, o cupinzeiro, as vespas negras, os pequenos lagartos, as epífitas e seus inquilinos, o âmbar escorrido do caule, os cipós trançados, os cogumelos nos troncos apodrecidos, os raios de sol invadindo a tramas das copas das grandes árvores e chegando ao solo em tons suaves, faziam desse meu passeio, quase descompromissado, numa verdadeira obra de arte.

Meus passos estavam lentos, meus olhos e ouvidos estavam mais aguçados.  O bicho-pau estava lá entre os gravetos secos e a enorme esperança se confundia com as nervuras das folhas verdes. Entre a trama dos galhos, pequenos olhinhos castanhos me acompanhavam à distância – eram Micos curiosos, talvez mais de uma família - Já não estava mais sozinho em meu caminho.

Continuei no meu rumo traçado. Cheguei ao topo da montanha. Encontrei o inesperado. Olhei para o horizonte e vi a certeza da existência, a dualidade da vida desenhada numa tela gigante e abstrata.


Deus jogou as tintas e deixou que elas escorressem livremente por essa tela chamada mundo.


Paulo Francisco

Oscilante



Tudo que eu mais queria nos finais de tarde era a certeza de uma noite tranquila. Nem sempre elas foram cravejadas de estrelas, nem sempre havia lua em minha retina. Tudo era possível quando o que se tinha era a obscuridade da incerteza.

- Quando o seu pai chegar ele vai saber das suas travessuras de hoje!

Pronto, minha alma paralisava ao ouvir a ameaçadora frase. Ela ficava ecoando em minha cabeça, nocauteando minhas ideias e travessuras futuras. Esperava sempre o pior no final do dia.  Passava contar com a sorte. Nunca ganhei nada em nenhum tipo de jogo. Mas, às vezes, era agraciado pela piedade materna – ela fingia que tinha se esquecido de tudo. A minha noite voltava a ter brilho. E o ciclo se repetia: Acordava destemido e entardecia temeroso.

Cresci com as travessuras do dia e os medos no final de tarde e, a cada centímetro alcançado, novas categorias de travessuras e medos surgiam em minha vida. Envelheci sendo travesso; envelheci adquirindo novos medos, mesmo depois de ter parado de crescer.

Tinha medo o que causaria, em minha casa, uma nota vermelha em matemática. Depois, foi o medo da própria matemática da vida. Nunca soube calcular direito o outro. Fui reprovado muitas vezes nessa categoria.

Tinha medo dos caminhos incertos. Deparava-me com bifurcações sombrias sem nenhuma indicação por onde seguir – sofria antes de prosseguir. Depois, foi o medo de não haver mais tais encruzilhadas e tudo ser uma eterna e monótona caminhada monocromática. Sempre odiei o tédio, a rotina. Sempre procuro novos itinerários, novas paisagens, até mesmo a aridez do deserto.

Quando a conheci, tive medo da minha certeza de ser ela a mulher da minha vida. A certeza era minha e não dela. Destemido, segui em frente. Foi bom enquanto durou, mas foi terrível quando acabou. O ciclo continuava em minha vida.

Travessuras e medos amorosos fazem parte da vida? Da minha com certeza. Nada foi muito calmo, nada era pura magia. Um dia sim, outro não.

Certa época da vida eu enfrentei o terrível medo, atravessando uma lança afiada em seu peito, só para tê-la em meus braços. Achei que seria uma aventura de poucos dias, mas com o medo estendido no chão, derrotado pelas minhas mãos, continuei com aquela travessura por alguns anos. E deu no que deu: Num fim de tarde o medo ressuscitou-se e eu fugi pra nunca mais voltar.Destemido? Não, simplesmente irresponsável. Característica comum aos jovens tímidos e medrosos como eu. Fui à busca de noites mais tranquilas.

Encarava aquele flerte como uma coisa impossível e distante. Enganei-me ao pensar que a distância era o obstáculo pra nunca nos encontrarmos.Travessura de um peregrino à procura de uma flor rara. Ainda continuo procurando-a em jardins e pântanos, em dunas e montanhas. Hei de encontrá-la. 

Passam os dias, passam os meses, passam os anos, e tudo que eu mais quero e espero é a certeza de um final de tarde tranquilo e a esperança de que a noite esteja empolada de estrelas, mesmo que elas estejam somente no céu da minha boca.




Paulo Francisco

Mudez

As palavras não vêm. Quando muito, eu ficava na janela olhando a calçada em movimento. Era a chuva de verão no final de tarde. Era a chuva atrapalhando as brincadeiras de rua. Era a chuva me convidando a dançar. Hoje, o tempo promete. Há chuva no ar. E quando ela chega, transformo-a em chuva de estrelas; chuva de amor. Deixo-a lá fora salpicando os telhados e calçadas. Enquanto ela persiste, molho-me de beijos, cubro-me de carícias. Abro os braços para o amor. Abraço teu corpo. Enlaço-me a ti.

As palavras não vêm. Sou silêncio; sou refém. Quando há chuva lá fora, transformamo-nos em sóis. Somos luas; somos céus.

Quando a chuva chega, você é mais minha, sou mais teu. Meu silêncio branco se transforma em ondas azuis. Azul de teu mar; azul de teu céu.

Quando as palavras chegam, carregadas pelas chuvas, digo-lhe o que sinto em seu ouvido. Na timidez de minhas palavras falo o que queres ouvir: te amo.
É o que sinto.



Paulo Francisco

Banquete

Alimento-me de poemas. Não como uma refeição completa, mas como complemento alimentar. Tenho-os em minhas refeições diárias como o tempero necessário para garantir o sabor do meu dia.
Preciso do poema como o sol do dia, como a lua da noite. Necessito deles em meu corpo por dentro, navegando em minhas veias e artérias, atingindo todas as células de meu corpo.
Que seja Camões, Leminski ou Sant´anna - não importa de quem seja, desde que seja um poema bom, bom para o meu viver.
Respiro Neruda, Oswald, Drummond, Gullar, Vinicius. Preciso hidratar meu corpo com os sais encontrados nos versos de Cora, Cecília e Florbela.
Sim, alimento-me de versos construídos, trituro-os com os meus molares, e enzimas encontrados à minha saliva, degrado-os, amasso-os, degusto-os, transformo-os num bolo poético e degluto-os lenta e suavemente, sinto-os invadindo minhas entranhas, chegando como manto e cobrindo minha alma.
Alimento-me de poemas, sinto-os na ponta de minha língua.
[E quando estou te amando, te faço poesia.]


Paulo Francisco