Idas e vindas





Eu não tinha certeza da vida. Não sabia o que viria no amanhã, tentava esquecer o ontem e lutava contra o hoje. O que  tinha feito pra viver daquele jeito,  não sabia e se sabia, não queria pensar nem tampouco voltar atrás de uma decisão que achava certa. Eu tinha a idade da teimosia.
Minha vida era comum, como a vida de qualquer outra pessoa naquele meio – eu era só mais um diante do cinza. Mas tinha fome, tinha sede, tinha medo e os outros não.  Não entendia. Gritava pra Deus como se Ele fosse culpado da mazela invadida – a culpa não era Dele, era somente minha.
O menino parou-me quando estava pra entrar no mercado pra comprar vinhos.
- Moço, paga um salgadinho?
- Pode ser um biscoito?
- O senhor compra também um iogurte?
- Claro! Qual?
O moleque entrou conosco (Valéria Soares estava comigo) e escolheu o biscoito e o iogurte sabor morango.
O menino não estava com fome de comida, ele estava com fome daquilo que não podia ter no seu dia-a-dia.
Ao sair do mercado, ele esperava ansioso. Com ele, estava outro moleque; pareciam irmãos.  Repartiriam, com certeza, o desejo adquirido.
Eu andava pelo Centro do Rio e tremia quando meus olhos invadiam aqueles pratos expostos na mesa de quem podia comê-los. Eu tinha fome e ninguém sabia.
O vendedor de flores que caminhava na madrugada de restaurante em restaurante, sempre parava na minha mesa:
- Moço, uma rosa pra namorada?
Olhava pra minha mulher e sorria:
- Tudo bem, eu quero essa!
A rosa ficava ali em nossa companhia e seguia conosco até a nossa cama.
Quando percebeu que eu não tinha o que comer, o camarada passou a dar-me a sua comida, e comer na rua, com a desculpa de que não gostava muito do que tinha ali, e preferia um hambúrguer com refrigerante. Ele alimentava o meu orgulho faminto. Ele sabia que a minha fome era por teimosia de um moleque bicudo que não queria voltar pra casa – Eu fugira de todos e de tudo. Rebeldia necessária como lição de vida.
Anos depois, eu caminhava em São Cristóvão, indo trabalhar, quando escuto uma buzina. Era ele, em seu carro:
- Lembra de mim?
- Como eu poderia te esquecer!
- O que faz por aqui, camarada?
- Trabalho aqui, eu faço ...
- Bacana!
-  Sempre me lembro daqueles dias...
- Eu também!
O sinal abriu, ele partiu sorrindo e, eu, ali paralisado, não disse a ele: obrigado.
Eu não tenho certeza da vida. Não sei o que virá amanhã, tento lembrar-me do ontem e vivo o hoje na intensidade permitida. O que fiz pra viver desse jeito? Talvez tenha sido o orvalho em minha cabeça nas noites frias, a dor na sola de meus pés em caminhos pedregosos, a acidez na garganta de um estômago vazio, a cegueira temporária numa adolescência agitada, as pernas paralisadas de um medo existente. Ou talvez tenham sido as mãos amigas por aí afora ou, quem sabe, tudo isto junto e um pouquinho mais.
Minha vida é comum como a de qualquer mortal e tenho ainda a fome, a sede e o medo. Tenho a fome de vida, a sede de amar e o medo de não conseguir.
Hoje falo com Ele, com a certeza de uma vida vivida – Só com Deus eu falo, nunca com o diabo... Por mais que ele insista.




Paulo Francisco

Na beira do mar



O mar gritava poesia, estava agitado como um poema apaixonado. Eu estava ali deitado na areia, olhando as estrelas, curtindo a lua cheia. A brisa se jogava ao mar, empurrando as jangadas em direção ao infinito. Lembrei-me de minha casa, não a da praia, mas a da montanha, onde namoro o céu de minha rede. Gosto de estar assim, jogado, largado, longe das amarras do dia-a-dia.  Gosto desta vida vagabunda temporária em que não tenho hora pra nada, que não tem futuro nem passado, somente o imediato.
- O que você vai ser quando crescer? Sempre me perguntavam e eu nunca soube responder de verdade.
- O que você está pensando? Sempre respondia que não estava pensando em nada e, verdadeiramente, não estava pensando em nada que pudesse interessar a quem estava perguntando.
- O que você vai fazer amanhã? Não sei, dizia, ainda não dormi.
Sempre achei chato responder pergunta investigativa. Nunca gostei de falar sobre o que pretendia fazer. Até porque nunca soube o que realmente faria no dia seguinte.
Ela veio me fazendo tantas perguntas que acabou perdendo o encanto. Sempre achei que devíamos nos descobrir aos poucos, devagarzinho, sem pressa, como a água descobrindo um novo caminho e fazendo um novo rio.
Lá estava eu sendo obrigado a responder pra não ser grosseiro. A cada resposta, menos um ponto. Nem mesmo a minha recusa fez com que ela parasse de perguntar. Ela interessada em saber, eu desinteressado em dizer.
A brisa nos levou pra casa - ela para a cidade, eu, para as montanhas.
 Já era de manhãzinha quando resolvo voltar. Estava só, ninguém me vira saindo. Também, ninguém me viu voltando. Dormi com o cheiro do mar.





Paulo Francisco

A intrusa




Ela era feia, muito feia. Tinha as bochechas caídas, boca grande, pernas finas e, para completar, era amarela.  Apesar de sua feiúra, não me assustei. Mas confesso que foi difícil encará-la de imediato.

Ao voltar pra cama fiquei pensando o que fazer com aquela visita indesejada. Não sabia se a pegava com as mãos e, delicadamente, colocava-a pra fora, ou, simplesmente, deixava a bochechuda invasora parada, olhando o nada, até se cansar da monotonia daquele ambiente.

Resolvi, então, dividir o meu espaço com a feiosa por mais um dia, desde que não invadisse a minha cama, tudo bem.

Impossível compartilhar os meus sonhos com uma pecilotérmica – tenho sangue quente e gosto de dormir encolhido e agarradinho. Confesso: já dormi com algumas cachorras em minha vida, mas, elas eram fofinhas e quentinhas.

Geralmente, não tenho repulsa a nada, mas era impossível não sentir nojo daquela olhuda de boca larga. Ela era grande, esquisita e quase albina.

Ao amanhecer, antes mesmo de ir à cozinha preparar o meu café, fui verificar se a invasora continuava  dormindo ou se tinha resolvido voltar de onde veio. Tristeza... ela não moveu um milímetro sequer da posição que eu deixara à noite anterior.

Após uma boa caneca de café preto e quente, deitado em minha rede, tive a brilhante ideia de transferi-la daquele lugar para a varanda da minha casa. Deixei-a num vaso de planta. Ela aceitou a nova moradia sem mover um músculo – além de feia, era preguiçosa.

Tudo em paz; estávamos felizes: eu na rede, lendo sobre ela, tentando descobrir seu nome e, a feia, na planta, olhando-me sem entender nada.

Sou assim mesmo, não gosto de visitas repentinas, mas também, não sei dizer não para aquelas que me pedem abrigo.

No meio da leitura sobre aquele ser gelado que invadiu o meu espaço, a campainha tocou:

-Surpresa!!!!

- Não acredito, por que não me ligou?

- Estava passando de carro e tentei arriscar...

- Que bom! Estava lendo um livro cientifico.. e ...

- Passei para um saber como tá tudo... você não atende as minhas ligações...

- Eu estava viajando, retornei ontem.

Ela chegou sorrindo, transformando minha manhã de inverno em primavera.

Gosto de sua alegria e de seu jeito solto de invadir a minha casa.

Em meu espaço, reservo sempre um cantinho em minha rede. Ela pode se balançar e até sonhar.  ¨Mi casa, su casa.¨

Depois de incensar toda a casa, deixando-a com cheiro de pomar, resolvemos ouvir umas músicas indianas, que ela encontrou em minha coleção de CD; viajamos um bocado, cada um na sua – ela na rede e eu no sofá da sala tentando continuar com aquela leitura científica. Acabei cochilando de tão agradável estava àquele ambiente incensado por ela.

De repente um grito e um susto. Pulei do sofá e a vi, parada, amarela, com os olhos arregalados, a boca esticada, os braços duros e abertos para baixo, totalmente paralisada. Cai na gargalhada da barriga doer. Ela ali, sem mover um milímetro sequer e a perereca albina encarando-a agarrada às cordas da rede. A bicha era grande e feia.

Apresentei-a a minha mais nova visitante e, claro, fui obrigado transportá-la além de meu portão.

Não gosto disso: - ¨Ou ela ou eu? ¨ Mas, fazer o quê, quando quem diz é quem sabe melhor mandar.
Certamente, não terei mais aquela de boca grande em minha varanda. Como já disse, tenho o sangue quente e adoro dormir agarradinho. Mas, com a visitante certa, é claro!




Paulo Francisco


















Motivo

Eu poderia ter nascido pedra, mas Deus me quis assim: homem. E como homem,  tento fazer a minha parte neste mundo que não é meu. Sim, o mundo não é nosso - engana-se aquele que pensa que é. O mundo é muito mais dos outros que por aqui habitam; eles chegaram, nesta Terra primeiro – É fato, não vamos discordar. Seres tão inferiores segundo nós e tão mais fortes, segundo Deus. O homem não é o Rei do mundo, ele é um visitante com hora marcada de chegada e partida. Sua casa é em outro lugar. Assim espero.

Eu poderia ter nascido Pedro, mas minha mãe me quis Paulo, Paulo Francisco. E com o meu nome,  vou me levando por aí, às vezes em pisadas firmes, como as do guerreiro em marcha ao campo de batalha; outras vezes, com andar cambaleante como a do bêbado ao voltar pra casa.  Mas do que eu gosto mesmo, é de navegar em ares quentes, totalmente desnudo de tudo. Sem uma marca sequer que venha me lembrar de outros caminhos que não seja aquele por onde ainda terei de chegar.

Espere por mim, estarei chegando depois daquela nuvem com formato de coração – basta atravessá-la para alcançar o seu. Enquanto isso, cê vai ouvindo o meu ribombar cada vez mais alto, avisando ao mundo que, um dia, serei teu.

Eu poderia, simplesmente, não ter nascido, ter ficado na esperança de um ventre seco, ou varrido do útero antes do tempo. Mas não foi o que aconteceu - Nasci e estou aqui pra te amar cada vez mais.

Nasço a cada manhã surgida, navego em raios refletidos e sigo com eles, o caminho da vida. Nasço a cada palavra tua e escrevo o meu nome junto ao teu. Somos nós.

Vivo em esperanças traçadas e tento com as minhas mãos alcançá-las. E alcançá-la-ei, eu sei.

Pego as mais longínquas imagens e faço delas as minhas companheiras de sonhos doces em brincadeiras de crianças.

Éramos infantes sem coroa, numa terra encantada de meninos e meninas que brincavam num habitat de flores e frutos. Caminhávamos de flor em flor, como os beija-flores, à procura do néctar ainda não bebido; carregávamos os frutos nas mãos, como os pássaros as carregam em seus bicos. Éramos dispersores naturais, semeadores de futuros e, naturalmente, habitantes de um mundo onde a certeza era somente o brincar.

Na passagem do tempo, do meu tempo, não fui aquele infante que muitos queriam – Lamento, sou um só!

Fardei-me com outras divisas, marchei em outra direção, lutei com armas invisíveis e abati centenas de algozes que em mim habitavam. Fui um infante à frente da batalha. Carreguei a bandeira da vida e sobrevivi com ela em meu coração. Coração que retumba amor. Retumba sim! Retumba.

Hoje, dispo-me das armaduras pesadas e caminho entre nuvens. Faço uma nova estrada – tenho a direção. Fardo-me com flores em meu peito, cerro em minhas mãos os meus desejos e caminho junto ao vento em visitas clandestinas. Tomo banho de chuva, aqueço-me ao sol, deito-me na relva à espera do surgimento da lua. Choro, rio, sem medo, sem vergonha de ser romântico.

Eu poderia ter nascido morto, mas Ele me quis vivo.

Vida! ? Foi Deus quem me deu. Se não está satisfeito com a minha, reclame com Ele. Mas antes de fazê-lo pense primeiro qual foi o objetivo Dele ao conceber a tua.

Eu poderia ter nascido pássaro, mas Deus me quis assim: Gente!



Paulo Francisco

Em cores

Eu estava sempre rabiscando algo. Adorava desenhar o que vinha em minha cabeça. Gostava, também, de misturar as cores e descobri-las em manchas pingadas nas sobras de papel de pão. Não fazia pipa monocromática – todas eram coloridas e assinadas por mim.

Mais tarde, descobri as manchas em camisetas brancas, tingia em panelas emprestadas da cozinha de casa – sobre protestos, claro, de todos. Eles protestavam, eu abstraía.

Depois, descobri o pôr-do-sol, as cores psicodélicas e o vermelho intenso. Nunca gostei muito do verde oliva, mas curtia os outros verdes, naturalmente.

Quando o meu filho nasceu,  emprestei-lhe a minha cor preferida – o azul. Mesmo ele ficando lindo de vermelho, era com o azul que eu vestia sua alma.

Quando a vi de preto, achei-a uma mulher interessante, mas foi com um vestido azul da Pérsia que a notei e me apaixonei – nunca me esqueci daquela cena: ela no alto da escada e eu parado no primeiro degrau, olhando para suas pernas cobertas por meias-finas pretas. Mas foi o azul, aquele azul da Pérsia, que me hipnotizou. Não resisti e fiquei preso àquela imagem por muito tempo.

Imagens? Tenho algumas cravadas em meu coração.Umas guardadas com carinho, outras que insistem em ficar mesmo eu as dando ordem de despejo – são imagens teimosas e inconvenientes que invadiram meu espaço e criam fantasmas para me assustar.

Levei um susto quando a vi pela primeira vez. Ela não era o que eu imaginara. Mas insisti em tê-la para sabê-la em cores. Mesmo ela apresentando, externamente, uma casca quitinosa e quebradiça, acreditava na possibilidade de possíveis matizes. Péssima ideia. Suas cores não passavam do amarelo da palha seca, guardada para dias escassos.

Sempre pensei que os loucos fossem coloridos, mas se são, ela, então, era a exceção. Nunca fiquei tão perto da esquizofrenia como naquele curto espaço de tempo de convívio – quase enlouqueci também. Escapei por pouco.

Não me transforme no que eu não quero ser.

Quando meu pai descobriu que o meu time de futebol não era o mesmo que o dele, correu até a loja e comprou uma camisa de seu time, acreditando que eu mudaria o que em mim já estava determinado. O que ele conseguiu foi adiantar sentimentos que eu deveria descobrir bem mais tarde em minha vida. Seu desespero, minha felicidade.

Não me tragam flores quando os meus pés estão cobertos de espinhos.

Como eu teria que ser naquele instante pra que ela gostasse de mim? Sempre achava que tinha que ser diferente do que era pra agradar a quem eu amava. Colecionei decepções na lapela de meu surrado paletó. Demorei pra aprender que não tinha que vestir o que não me cabia.

Não queira me cobrir quando a nudez é a minha melhor roupa.

Até hoje rabisco o que vem em minha cabeça. Meus desenhos pontilhados registram imagens macroscópicas que meus olhos só alcançam através da lente do mundo.

Ainda não desenhei o meu autorretrato – falta-me pontilhar alguns caminhos.




Paulo Francisco

Relação

Você me tira do eixo! Ela disse a frase e bateu a porta.
Eu fiquei ali, olhando a barreira de madeira, pensando no que fazer para contornar aquela situação. Pensei: ¨ Eu a tiro do eixo! ¨
Como uma pessoa pode sair tão rápido do seu centro por causa de uma frase ou de uma palavra? Às vezes, o melhor é concordar e pronto. Tudo fica calmo, tão calmo que a monotonia invade.
Não, gosto de ventanias, de chuvas torrenciais.
Gosto da angústia da espera, mesmo na certeza da chegada.
Gosto do café bem quente, pra poder assoprar antes de sorvê-lo
Gosto do segredo, do secreto, mesmo que todos já saibam
Como eu a tiro do seu eixo? Como eu consigo descentralizá-la? Se eu disser que a amo, pronto, ela enruga a testa e fica me analisando, porque eu disse aquilo, àquela hora, sem mais e sem menos. Passa o dia todo, olhando-me desconfiada, enviesada; se passo batido uma data comemorativa, greve de dias; se digo que estou cansado, a casa cai.
Se não elogio o seu cabelo novo quase que semanal, eu não me importo; mas se elogio, lá vem a frase: o que está acontecendo?, você não é disso!; Se mando flores, recebe desconfiada, se não mando, não sou romântico. Se telefono no meio do expediente, pergunta onde estou, se fico sem ligar, não me importo mais.
Às vezes o melhor é concordar e pronto. Mas como eu já disse a monotonia invade. Praia sem ondas é banheira; céu sem estrelas é buraco negro. Eu sem ela, primavera sem flores.
"Você me tira do eixo!" Ela disse a frase e bateu a porta.
Eu estou aqui, olhando a barreira de madeira, pensando quando ela vai voltar, para eu entregar o seu presente de aniversário.
E tudo isto aconteceu porque fingi não me lembrar da data.
Mas o que seria desta comemoração, sem um pedido de perdão? Dela é claro!!!



Paulo Francisco
¨

Eis a questão

O que faço com esta sensação de perda? Já perdi tanto nesta vida. Já entrei em coma e ressuscitei - me tantas vezes que perdi a conta. Deixei de ver o nascer da primavera; de ter os arrepios de um inverno rigoroso. O que eu faço quando a solução não está em minhas mãos? Visto o meu terno cinza e vejo o meu túmulo em mármore?

O que faço com este movimento interno que me tira do prumo? Equilibro-me? Envergo-me?

Não sei...

As linhas de minhas mãos ainda estão fortes. Meu caminho ainda tem algumas paradas. Tenho que continuar minha viagem, mesmo sabendo que a volta é sempre para o mesmo lugar. E esta sensação de peito rompido? E este barulho repetitivo de asas de odonata presa em minha cabeça? Se cubro os ouvidos, um zumbido aparece ecoando em minha cabeça; se cruzo os braços, na esperança de colar a pele rompida, eles ficam presos e não querem mais voltar a se movimentar.

Quero de volta a sensação de paz que me rodeava e eu nem ligava. Quero a sensação do frescor de um sorriso vermelho, mesmo que me mordesse de vez em quando.

Quero a pele humana me esquentando nas madrugadas de zero grau. Quero ser guiado por pensamentos lascivos. Acordar de um pesadelo e ter ao lado quem me diga: ¨ durma de Novo!¨
O que fazer quando seu corpo grita em silêncio por perdão?

Não sei...

Termino este texto sem saber o que fazer pra voltar pro meu quarto, depois de ter sido expulso de minha cama, simplesmente porque ri de seus cremes.

Tudo bem! Adoro meu sofá.


Paulo Francisco

Além de meus olhos

O que não era meu, aos meus olhos parava. Olhava admirado o que não estava ao meu alcance; achava lindas as cores vivas das outras casas e que na minha ainda não tinha sido pintada pelas mãos de quem cabia. O branco é bonito, mas sempre preferi o azul.

Namorava pela grade, do lado de fora, os jardins das casas bonitas de dois andares existentes em minha rua – chamavam-nas, na época, de ¨duplex¨. ¨Os ricos moram lᨠdizíamos sorrindo e já correndo depois de tocar clandestinamente as sua campainhas.

O meu melhor amigo tinha uma casa simples. O meu segundo melhor amigo tinha uma casa simples. O meu terceiro melhor amigo tinha uma casa simples. O vigésimo quinto melhor amigo tinha uma casa simples. Eu morava numa casa simples – uma casa ¨simplex¨. As nossas campainhas não eram tocadas e sim gritadas pelo nome de quem queríamos falar.

Nunca soube como era ser um menino morador de uma casa de dois andares e com um imenso jardim à sua frente – eles não se misturavam com gente como a gente. Olhavam-nos por cima, sentados em suas sacadas e varandas enfeitadas.

As nossas sacadas eram as mangueiras, goiabeiras, caramboleiras e tantas outras. Avistávamos o horizonte comendo os frutos da época. Lambuzávamo-nos em sonhos escorridos.

Éramos um bando de pés cascorentos  e de bocas sujas que vadiavam pelas ruas e campos, com sacos de bolas-de-gudes, pipas ou pião de madeira, dependendo da ordem do dia. O vento era o nosso caminho.

Não tínhamos os melhores sapatos, nem precisávamos, tínhamos asas em nossos pés que nos levavam para junto dos pássaros; não tínhamos as melhores roupas, nem precisávamos, tínhamos os nossos peitos nus para amparar o vento e refletir o sol.

Não nos protegíamos da chuva em varandas enfeitadas com mesas e cadeiras de ferro pintado de branco; éramos os próprios pingos respingando o mundo – éramos a sua chuva de todos os dias em seus caminhos secos e sombrios.

O menino branquinho, impecavelmente vestido, ficava nos olhando pela grade de seu portão; a menina de cabelos cacheados, na sacada de seu quarto, nos olhava assustada, com sua boneca enfeitada em suas mãos; no interior da sala, um casal de frente para a televisão – Família perfeita, nenhuma confusão.

O que não era meu, a minha alma pertencia. Desejava intimamente as cores do mundo.

Calava-me diante da incerteza e sorria com o que restava perante meus olhos. O sorriso é o melhor remédio para as dores embutidas.  Resguardava em silêncio o que desejava em sonhos.

Éramos construtores de sonhos e reciclávamos os nossos dias – transformávamos o nada em tudo.  E tudo era divino e maravilhoso como o chocolate comprado aos domingos.

Sempre que passava pela rua enfeitada de casas bonitas, eu sorria para aquele garoto branquinho que me observava atrás das grades do portão -  ele retribuía-me com um tímido aceno.

Estava indo para o meu compromisso de domingo. Ele, eu não sabia o que fazia às tardes dominicais. Nunca o vi no cinema, nunca o vi no circo, ou brincando com um amigo sequer.

Talvez ele fosse uma criação; uma coisa imaginada, parada, aos meus olhos de menino.



Paulo Francisco

Tudo ou nada a ver

Um dia desses, estava esperando o ônibus, encostado à parede, lendo um livro, quando percebi que todos que ali estavam tinham a mesma cara – de tédio.

Ninguém gosta de esperar. A espécie é aflita. Todos querem chegar logo ao seu destino, seja ele seu lar, sua escola ou trabalho. Não importa se o destino é agradável ou não. O mais importante é chegar, chegar logo. O homem não gosta de ficar parado; ele não pode ficar parado – ele se desequilibra e cai.

Na vida temos que chegar a algum lugar.

Quando é domingo eu quero que chegue logo a sexta. Mas como não é possível pularmos de um dia para o outro. Eu faço de cada dia o meu domingo.

Vivo a minha manhã sem pensar na tarde. A minha tarde é inteiramente exclusiva, nada de pensar na noite. Mas quando sou coberto por estrelas, não penso em mais nada a não ser em vivê-la intensamente. Não, não preciso estar acompanhado, às vezes minha companhia me basta. Gosto de estar comigo mesmo. Não sofro de consciência pesada. Faria Yoga tranquilamente se não fosse tão preguiçoso. Adoro pensar e recordar tempos passados, sem o tão mal falado saudosismo. Lembro-me de que:

Numa dessas noites de pseudodomingo, quando esperava uma amiga, me peguei com cara de tédio, parado, quase caindo.

Estava totalmente distraído quando, do outro lado da calçada, passou tão bela quanto antes, uma feiticeira. Não, não estava bêbado, não tinha fumado nada fora da validade, era ela, a feiticeira do meu coração.
Feiticeira que me deixou esperando sem nenhum aparato para recostar-me.

Feiticeira que hipnotizou minha alma e fez dela sua serva.

Feiticeira que transformou meus sentimentos em um só – angústia.

Feiticeira que depois que usou jogou fora.

Mas como já disse, a espécie humana não sabe esperar. Mais uma vez a feiticeira me hipnotizou, deixando-me paralisado, grudado naquela parede branca. Coração acelerado e boca seca. Tentei gritar seu nome mais a voz fora guardada num pote mágico.

Ali, preso a brancura existente, totalmente atônito, vi quando a bela feiticeira seguiu em sua vassoura céu adentro. Juro que vi.

A moça chegou um pouquinho depois do acontecido, salvando-me daquele feitiço. Sorri, peguei-a pela cintura e fomos para a nossa festa à fantasia – era a minha primeira festa à fantasia na casa de um amigo.

Ela estava vestida de fada e, como era de se esperar, eu estava vestido de prisioneiro.


Paulo Francisco

Passatempo


Enquanto eles não chegam, eu fico aqui entre uma palavra e outra.  Esperava ansioso a chegada de meus amigos em minha casa. Eu era um anfitrião-mirim dos mais agitados em dias de chuva. Se a rua estava molhada, escolhíamos a casa de um de nós, para dela se transformar em nosso quintal. ¨- Melhor assim! ¨  Diziam elas comparando as ruas com a segurança do lar.

Mas o que eu gostava mesmo, era de ficar na chuva e fazê-la minha companheira. Por que parar a pelada se a chuva era passageira, e se já estávamos de corpos nus? Por que deixar de ir ao parque se o sol vem logo depois? A chuva nunca fora motivo para desistirmos de nada. Já tomaste banho de mar com os pingos da chuva de verão em sua cabeça? Eu já. E é muito bom.

Ela não quis molhar os cabelos – não queria ficar comum depois de horas no cabeleireiro. Uma pena, por que o que eu queria mesmo era chuva de chuveiro e corpos molhados e trêmulos em gozos quentes – era tempo de amar e não de esnobar.

Enquanto os meus amigos não chegam, eu vou escrevendo uma coisa e outra nesta tela branca do computador. É o que me resta neste tempo ocioso.

Adorava rabiscar em guardanapos enquanto conversávamos. Ficava ali ensimesmado em meus desenhos psicodélicos. Éramos abstratos demais, não conseguíamos concretizar nada juntos. Num segundo tudo mudava, saíamos de uma alegria plena para um obscurecer profundo. 

Era tudo muito doido e doído. Uma loucura desejada e uma pseudorealidade pretendida. Tudo era ilusão. Tudo era muito confuso, tínhamos sonhos divergentes.  Caminhos contrários a serem percorridos. Juntos, nos tornávamos heterogêneos. Éramos estradas paralelas com vontade de cruzar. 

Nosso único sentido era o que um poderia dar ao outro naquele momento: o capital e a mercadoria.

Mas o que eu queria mesmo era estar com os pés no chão para poder viajar, viajar de verdade, com mochilas nas costas e grana no bolso, mesmo sendo pouca.  Estava ficando chato aquele ir e vir em viagens insólitas.

Talvez eu faça uma pequena viagem na próxima semana, uns dez dias fora das montanhas – talvez eu veja o mar, ou os mares, ainda não sei. Não gosto de sair de casa em feriados prolongados. Fica tudo tão confuso. Perdem-se muito tempo em estradas, filas de mercados e restaurantes. Prefiro as semanas comuns para tais passeios. Em feriados eu fico em casa. Prefiro a minha rede na varanda e o meu céu azul. Gosto de minha casa e o que ela representa – Paz.  Paz que conquistei aos poucos, depois de muitas batalhas internas. Finquei o mastro em meu quintal e curto hoje o tremular da bandeira branca.

Barraco? Confusão? Discussões intermináveis? Nem pensar.  Tudo bem de uma discussãozinha de quando em vez para apimentar o clima, mas não mais que uma pequena discussão. Nada de cara amarrada, virar pro lado, ficar de mal. No máximo um beicinho pra eu desmanchar em sorrisos.

Confesso que gostava dos seus beicinhos; ela ficava igualzinha as menininhas birrentas e patricinhas. Desmanchava rapidinho, aquela cara-fechada em sorrisos reluzentes.

Esta ficando chato e esquisito, eu aqui, sentado, tomando água mineral e escrevendo nesta máquina. O garçom já me perguntou duas vezes se quero mais alguma coisa. Claro que quero, quero saber onde estão todos.

Quando ficava sozinho em casa por um motivo qualquer, o tempo demorava pra passar, A casa ficava só pra mim, mas não tinha graça, era como seu estivesse numa caverna ouvindo somente os meus passos – era triste.  Aproveitava o silêncio para inventar fantasmas.

Mesmo gostando dessa vida de eremita, gosto de ter companhia em minha casa de quando em quando. É preciso trocar energia, fazê-la fluir – energia acumulada pode se tornar numa bomba perigosa.

A moça sem nome, aquela que mora perto da praia, por passar um bom tempo no computador, acabou criando, para ela, um mundo tecnológico e frio.  Não entendo pessoas que não se aceitam; que não conseguem levar numa boa os seus problemas e defeitos. Qual a vantagem de fingir ser outra pessoa? Roubar o nome da irmã e viver numa ilusão vinte e quatro horas do dia?  Ela sabe que precisa de tratamento. Eu tentei ajudá-la, mas ela recusou a minha ajuda.  Qualquer hora ela explodirá – eu sei.

Acho que estou misturando os temas.

Mas era sempre assim quando me via sozinho, viajava em paisagens distintas. Ora tudo estava cinza, ora tudo se transformava num colorido forte e intenso. Como faço agora neste texto sem pé nem cabeça, mas que me distrai e me recupera de momentos vividos.

Os amigos estão chegando...

Vou parar por aqui, senão vão descobrir que eu escrevo e que tenho essa vida paralela.

Fazer o quê? Cada um tem o seu segredo. Não é mesmo?




Paulo Francisco

Passagem





Tirei o edredom do varal e levei a esperança pro meu quarto.  Sim, de quando em vez a esperança entra em minha casa e canta para me acordar. Era uma esperança pequena, nasceu com certeza nesta primavera. Deixei-a livre, pousada no tecido florido. Não expulso nada que em mim habita - deixo fluir.  Como eu poderia, por exemplo, expulsá-la, se tenho na minha pele a marca da sua existência?

Ela ficou parada por um bom tempo no edredom dobrado. Mas quando dei por mim, a visitante já tinha ido. Na maioria das vezes abria os meus olhos e já não as encontrava mais ao meu lado.  Voavam certamente para outras paragens, pois por aqui, nunca foi somente mar de rosas, tem sempre algo para ser dobrado com certeza.

Dobrar e ser dobrado. Não sou tão difícil de ser dobrado, principalmente quando a esperança está pousada em mim.  Ela não me entendeu quando disse que não queria ficar preso a nada e que as minhas asas estavam sempre esticadas na horizontal e nas alturas.  Criou-se naquele momento uma desesperança em seu coração.  Pra muitos, se o coração não está preso, está despedaçado. A esperança voou para outra paisagem certamente.  Eu sei que faz parte da vida as chegadas e partidas.

A vida é de idas e de vindas. As borboletas coloridas, por exemplo, que visitam a minha varanda todas as manhãs à procura de néctar, se decepcionam quando se deparam com as flores de plástico e a água açucarada em frasquinhos decorativos, mas não aprendem e estão sempre voltando.  Possivelmente na esperança de um dia encontrar um vaso com flores verdadeiras. Outros que estão sempre por aqui à noite são os besouros e as mariposas em busca de luminosidade. Contrários dos predadores noturnos que basta uma lua pra vida ser doce, eles não gostam da escuridão.

Pensando bem, eu também não gosto da escuridão. Eu gosto da noite, da poesia que ela me recita, da possibilidade que ela me dá em imaginação e som. É... gosto da noite iluminada pelos olhos da lua, das madrugadas  que dançam ao som do vento, gosto de olhar pelo buraco da noite as silhuetas das montanhas e árvores que me cercam e me fascinam.


Nos meus passeios noturnos sempre tenho a companhia da dama da noite e a esperança pousada em mim.


Paulo Francisco

Recomeço



Voltei! Neste movimento elíptico sou um errante. Ando em círculos bêbados. Não sei andar em paralelas estreitas. Volto pra casa sempre atordoado querendo paz. Já não gosto da zonzeira etílica. Já não sei sonhar em almofadas de bali - já não quero mais. Volto ao passado criado em fumaças esverdeadas. Volto em pontos aproximados. Não tenho marco. Sou trapo remendado. Sou colcha de retalhos. Sou peça que encaixa em caixas de madeira. Sou infância imperfeita. Sou o espaço entre o violino e o piano. Sou a voz de um coral de todos os cantos.

Voltei ! Para a imprecisão retida. Para o centro da vida.

Voltei para o recomeço

Voltei para o imperfeito

Voltei em movimentos elípticos

Vago em pensamentos errantes

Volto pra terras flutuantes

Aqui eu tenho paz.




Paulo Francisco

Pra dizer adeus




Vem nem que seja só pra dizer adeus. A cantora num duo cantava melancolicamente a canção. Fiquei com a frase em minha cabeça e, cada vez que pensava nela, meu coração disparava. Fiquei perdidamente entristecido na possibilidade de um dia isto acontecer comigo. Aço só o super-homem, eu sou feito de células, tecidos e órgãos vitais – sou um eucarionte. Meus sistemas se interligam. Meu coração pulsa e jorra vida e, sem ele não sou nada. No meu peito não tem um esse de super, tem todo alfabeto que represente o amor que tenho por ela. Sou de carne e alma. Sou humano e como tal, sou um possível sofredor de amor.

Não, não venha pra me dizer adeus. Venha pra me fazer um aconchego, me colocar em seu colo e me mimar de afetos. Venha, venha sim, me fortalecer com seus carinhos e cheiros.

Aceitar um adeus quando ainda se ama é fatal. Morre-se numa sessão de tortura chinesa – é palito de bambu na unha. Descobre-se que o castelo era de areia e o calor que te aquecia agora te queima como gelo.

Venha nem que seja só pra dizer adeus. E eles disseram adeus. A canção não saía de minha cabeça.

É certo que numa relação fragilizada a possibilidade de um adeus é forte. Basta a indecisão de um dos pares. Numa dupla a sincronia é vital. Não existe a batalha do eu sozinho.

E este amor tão frágil precisa fortalecer-se pra que não haja adeus.

Trago em meu peito o seu nome, não sou eu quem vai dizer adeus.

Trago em meu peito a certeza de você, não sou eu quem vai dizer adeus.

E a musica não acabava... Repetia-se em minha cabeça, deixando-me mais inseguro que aquele amor. Amor de papel, com pouca base; amor ainda em construção; amor em gema que não se transformou ainda em botão. Como florir?

E no final da canção o silêncio se instaurou em mim. Mas como eu já dissera, tenho alma. Corri para o telefone e disse com todas as letras: ¨ Te amo.¨

Ela não atendeu para me dizer adeus. Ela não me disse adeus. Simplesmente sorriu. Sorrimos juntos até a próxima canção.


Paulo Francisco

Noturno



O meu céu sempre será da cor do metileno. Terá sempre brilhos estelares em signos. Não consigo ficar sem a vida noturna. Posso até acordar cedo, mas a noite é minha menina. É nela que piso em letras. Adoro observar os notívagos que vagueiam em destinos diversos em luzes artificiais. Não sei se a luz natural me cega, mas é com a luz artificial que mais enxergo.

A penumbra é de certa forma, o véu cor-de-chá da noiva romântica; o véu rendado da viúva negra; o véu vermelho que cobre a cabeleira da cigana. A penumbra é a claridade dos notívagos. É nela que surgem os personagens marginais de uma sociedade fascista.

É na penumbra que encontro carros em velocidade mínima, com faróis baixos, pneus quase arriados em desejos encubados; é na penumbra que o senhor distinto em seu terno, aperta a coxa da trabalhadora vadia; é na penumbra que duas mãos trocam interesses mútuos. É entre o claro e o escuro que a outra metade aparece.

Embaixo deste céu noturno, todas as bocas são vermelhas; todos os seios são duros; todas as pernas em saltos, ou não, são tortas. No azul de metileno, todas as cores são pardas, e todo gato tem seu peixe pra vender.

Neste céu insone, faço e refaço caminhos estrangeiros; colo panfletos em postes encarnados; quebro vidraças alheias; banho-me em chafariz iluminado por luz neon; piso em pétalas quebradiças; durmo em caixa de papelão; fumo pontas de cigarros perdidas no chão.

Neste céu de duas luas, encontro-me sempre numa encruzilhada romântica. Entre o bem e o mal, carrego sempre o meu pão embrulhado em papel de seda e, no meu terço de couro, tem cinquenta e cinco contas, cada uma numa cor.

O meu céu sempre será da cor do metileno. Terei sempre almas para destecer.



Paulo Francisco


Manhã






Eu já tive medo do escuro. Sim, morria de medo do escuro, ficava vendo coisas. Depois descobria que era uma roupa pendurada, um chapéu no espaldar da cadeira. Mas tinha uma coisa comigo: nunca disse a ninguém que tinha medo. Segurava sozinho. Menino não demonstra medo; menino não chora.

Absurdamente não chorava; absurdamente não declarava os meus medos – e eram tantos. Cresci e continuei achando que homem não podia chorar e nem tampouco sentir medos. Acabei numa paranóia que hoje chamamos de síndrome do pânico. Detalhe: tive que me curar sozinho. Sabe aquela coisa de que homem não chora, não pode ter medo? Pois é, foi com estes princípios que curei a minha paranóia. Custou. Custou-me anos de solidão, mesmo cercado de gente que me amava; custaram-me amores; custaram-me amizades. Custou-me a liberdade que tanto primava.  Então, resolvi que tinha que sair daquele buraco negro. Entretanto o que fazer, se não pedia ajuda a ninguém? Pois bem, resolvi tirar as garras do monstro de minhas entranhas, fazendo o inverso. Passei a frequentar lugares obscuros não por prazer e sim por desafio.

Conheci o outro lado da história e quase fui sugado por ela. Porém o que me curou mesmo foi ter admitido que sentia medo e que podia chorar sem culpa. Aí, a dor surgiu tão aguda que o meu próprio grito atingia o meu peito como farpa longa e pontiaguda. Aprendi a sofrer e gritar. Nunca mais escondi os meus sentimentos. Hoje já não sofro como antes. Sofro, sofro sim: por amor, por saudade, pelos outros. Sou feliz por amor e por lembranças. Hoje, sou tão normal quanto qualquer pessoa.  Sinto raiva, a indignação ainda me pertence e os medos são tão naturais que o meu choro deixou de ser miúdo para ser declarado Eu já tive medo do escuro.Hoje meus olhos clareiam qualquer caminho.



Paulo Francisco

Mochila, aspirina e João Cabral de Melo Neto




Todos os dias eram primavera. Aos nossos olhos, as cores se derretiam como bolas de sorvete.No final da tarde, esperava as balas cor de rosa em formato de boneco que meu pai nos trazia para a nossa doce alegria. A guloseima cobria como confete as dores de nossas travessuras.

Neste tempo de estações indefinidas: se faz calor se faz verão; se faz chuva se faz outono; se faz vento se faz inverno - vou colorindo a vida conforme a tela surgida.

Olhei pela janela e vi um quadro pintado – nada se mexia; nenhum assopro fantasmagórico que pudesse balançar as folhas das árvores e indicasse que lá fora ainda havia vida. Estava tudo parado. O calor estava insuportavelmente quente. Arrastei meu corpo quase morto até o chuveiro e deixei a água bater infinitamente em minha cabeça num ato de desespero. Socorro, eu preciso sair daqui – pensei sonolento e dormente.

Quando verão, a água era a salvação sempre. Doce ou salgada, era ela que enrugava os nossos corpos até o cair do sol – ainda não se falava em buraco ou camada de ozônio e o nosso filtro solar era uma pasta d água que nos deixava com cara de boneco. Palhaços aquáticos correndo na areia e se divertindo em brincadeiras infantis.

Voltei para a janela numa esperança ventilada. E nada acontecia. Nesse dia eu soube o que poderia ser uma catástrofe climática. Não podia dar mais que alguns passos. Eu estava como diziam os mais antigos, entrevado. Sim, eu estava en-tre-va-do, im-pos-si-bi-li-ta-do a grandes movimentos. Minha coluna tinha travado uns três dias antes – fiquei acamado e irritado. Injeções, antiinflamatórios e relaxantes musculares não estavam surtindo o efeito esperado ou desejado. Ai de mim, pobre de mim. Só me restava o lamento intercalado de um riso sofrido.  Era impossível usar a máxima: relaxe e goze – será que a Marta conseguiria?

O que mais me aborrecia era ficar com algum tipo de enfermidade que me prendesse em casa e não pudesse compartilhar a minha dor com os mais próximos.  Lembro-me de quando a catapora, o sarampo e principalmente a caxumba chegaram a minha casa e a todos nós – eu e minhas irmãs ficamos hospitalizados a domicilio. Sentimos juntos a essas e as outras dores – as virais e as espirituais. Irmãos unidos de corpos e almas – nas alegrias e nas tristezas mesmo que em intensidades distintas. Sempre há aquele que aguenta mais as dores da vida. Dos três, eu era o mais cascudo. Era tralha. Deixava minha mãe de cabelo em pé. Não tinha doença que me fazia ficar quieto, sempre arrumava um jeitinho de burlar o tédio.

O quadro se repetia: primeiro a dor no estômago, em seguida a coluna e depois a sinusite. Não, não seria como no ano passado que os efeitos colaterais foram piores que a própria enfermidade. Não mesmo. Segurei as outras dores e evitei tudo àquilo que pudesse agravá-las e permaneci deste lado do atlântico isolado e mudo. Sem elas para solidarizarem com as minhas dores cíclicas. Já não sou mais tão forte as porradas da vida. Mesmo burlando as dores em prosas e poesias, ainda preciso de amparo mesmo que seja de frases feitas.

Pronto. A coluna foi se endireitando, o nariz secando e o estômago se acalmando. Corpo são - alma leve, alma leve - cara alegre.

Olhei pela janela e nenhum movimento que pudesse indicar que o tempo melhoraria. Estava quente e abafado. Nenhuma nuvem indicava que choveria. Corri para o quarto, vesti uma bermuda e em dois tempos estava eu a sombra de uma árvore tomando o máximo de cuidado para que os respingos da cachoeira não molhassem o meu antigo e fascinante João Cabral de Melo Neto – cito-o:

¨Num Monumento à Aspirina

Claramente: o mais prático dos sóis,

o sol de um comprimido de aspirina:
de emprego fácil, portátil e barato,
compacto de sol na lápide sucinta.
Principalmente porque, sol artificial,
que nada limita a funcionar de dia,
que a noite não expulsa, cada noite,
sol imune às leis de meteorologia,
a toda hora em que se necessita dele
levanta e vem (sempre num claro dia):
acende, para secar a aniagem da alma,
quará-la, em linhos de um meio-dia.

Convergem: a aparência e os efeitos

da lente do comprimido de aspirina: 
acabamento esmerado desse cristal,
polido a esmeril e repolido a lima,
prefigura o clima onde ele faz viver
e o cartesiano de tudo nesse clima.
De outro lado, porque lente interna,
de uso interno, por detrás da retina,
não serve exclusivamente para o olho
a lente, ou o comprimido de aspirina:
ela reenfoca, para o corpo inteiro,
o borroso de ao redor, e o reafina.¨

Hoje, olhei para fora da janela e senti o vento em minha cara. Já sem dor, meus olhos reconhecem todas as cores brilhantes da mata atlântica; minhas pernas obedecem aos meus comandos e minha alma, independente, quer voar além das montanhas - gosto desse jeito que ela me empurra pra vida.

Todos os dias eram primavera. Ainda os são. Basta querermos.

Na mochila pouca coisa. Saio, hoje, seguindo o sol e quiçá abraçando a chuva.

Só não posso esquecer-me de levar a aspirina e os companheiros de João Cabral de Melo Neto – carrego-os com carinho neste meu caminhar sem destino certo.

Até a volta.





Paulo Francisco

Olá!


A música do Chico com o nome dela foi crucial para que eu fizesse os quatro contos anteriores. Estes textos não seriam possiveis se ¨Beatriz¨ não tivesse cruzado em meu caminho. Digo sempre que são encontros possíveis de acontecerem - e aconteceu. Usar frases da música de Chico e Edu nos textos foi pra mim o máximo neste Blog. Já brinquei com o Miltom Nascimento usando o texto Maria Maria; com o Benjor usando o Cadê Tereza, e acredito que ainda farei mais com os meus cantores e escritores preferidos.
Sempre gostei de escrever.
Aqui em meu computador tenho uma pasta chamada: Brincar de escrever - e, verdadeiramente, é o que faço por aqui, brinco,desligando-me de minha real profissão.

Ah! a ¨Beatriz¨ não sabe dos contos e muito menos deste blog - mas ela não é a única. Talvez um dia, quem sabe num próximo encontro, eu os apresento e dou continuidade. Nada é impossível quando usamos o coração de verdade.
A Maria sabia destes contos e desse encontro no mês de agosto e me pediu que não os publicasse. respeitei o seu sentimento de mulher. Mas agora, Maria é só lembranças, então resolvi publicá-los.
Acho que fiz bem, pelos elogios recebidos nos comentários. Só a Maria não veio, acho que ela está no mar, pensando no Omar. Quem sabe um dia eu não escrevo sobre os escontros e desencontros com Maria.


Até o próximo Post e obrigado pelos comentários sempre carinhosos.


Paulo Francisco

Encontro

Encontro ( I )





Quando ela apareceu, dirigindo-se a mim, não acreditei. Era uma miragem, a pílula que tomei tinha algo a mais além da composição real. Fixei os meus olhos nos dela e pude notar a agitação em seus cílios. Eles abriam e fechavam como uma janela ao vento, mostrando aos poucos os seus olhos claros, claros? Agora já não sei mais a sua cor. Azul, verde, cinza? Talvez todas as cores. Sua pele sim; era branca e fez-me pensar em sua nudez em porcelana como a delicadeza de uma peça chinesa. Senti o desejo de sabê-la. Será que ela era moça?

Ela falando comigo como se já me conhecesse de muito e, eu ali, olhando seus dentes, sua boca carnuda, sua face e, pensando de onde ela saíra. Será que ela caiu do céu? Pouco falei, preferi ouvir dividindo minha audição com os meus olhos. Escuto melhor com eles. Minha retina ouvia sua voz; ouvia sua boca; ouvia sua pele; ouvia seu colo e parte de seus seios à mostra. Meus olhos ouviam os meus desejos – desejos em botões de rosas; rosas pálidas e delicadas. Será que ela é triste? – continuei me perguntando.

Pouco falei. Ela falou por nós. Sua espontaneidade em dizer-me coisas, agradava-me – não precisei perguntar, as respostas vinham antes das perguntas. Os meus pensamentos mais secretos ficaram em respostas gestuais, no balanço de suas mãos, dos cabelos claros que brilhavam com invasão dos raios do sol, dos seios graúdos e obedientes numa respiração palpitante.

Tudo começou quando os nossos olhos se encontraram numa manhã quente e brilhante. Certamente a minha timidez impediria qualquer movimento em sua direção. Não precisei – ela era uma visionária. Falando com o sorriso, comentou sobre aquela manhã abafada e, acrescentou dizendo de sua preferência em estar naquele local logo naquele momento. A culpa era do sol invernal que se tornava insuportavelmente forte à tarde. Eu concordei com um simples sim. A minha cara de exausto já dizia tudo. Por outro lado, concordaria com tudo que falasse naquele momento. Estava paralisado pela sua espontaneidade e seu gracejo. Estava totalmente atônito diante daquela mulher de pele branca; de pele de porcelana chinesa. Será que ela era uma pintura?

Muito raro alguém puxar conversa comigo – estou sempre com os olhos enterrados num livro. Mas nesta manhã solar, os anjos não me permitiram uma leitura isolada. Eles estavam de plantão e tocaram cornetas ao meu desejo - e ainda falta muito para o meu aniversário. Como desejei nestes meus momentos de pura distração ser acordado por uma visão como a dela. Será que ela caiu do céu?








Olhos de mulher ( II )




Traduzo o seu silêncio. Seus olhos sempre me dizem algo inédito. Sempre recorro a eles nas minhas dúvidas imediatas. Não preciso de nenhum som a não ser o suave toque de suas pestanas, para obter uma resposta desejada. Tenho-os por lua e o sol. Aqueço-me com os seus raios refletidos em cores novas. À noite, sou bronzeado pelas luzes lunares que eles radiam em meu corpo. Sou dependente dos seus olhos; sou dependente de suas meninas. Vejo-me em sua retina.

Quando encontro um cílio em sua face, sorrio de satisfação, guardo-o em minha coleção de cílios seus. Não tento correr o risco de disputar um pedido em nossos dedos. Prefiro guardá-los no meu silêncio. Tenho uma coleção de cílios seus. Não os guardo em meus seios porque não os tenho. Guardo-os na caixa de meu peito. Tenho uma coleção de cílios seus em mim.

Quando agitada, fico ali olhando para as batidas de suas pestanas, perco-me no ar. Fico silencioso, imóvel - como o gato desejando o passarinho - olhando-os na esperança de um deles cair ao vento.

Quando os seus olhos de atriz me dizem adeus. Quando refletem em outros corpos; quando banham outras peles. Quando seus olhos de atriz, por um triz, deixam-me aqui. Seguem em outros caminhos; quando estão em outra dimensão, quando fecham as venezianas e me deixam na penumbra, quando me deixam parado no tempo – em vertigem - quando eles me abandonam por um esquecimento. Eu, em absoluto desejo, vigio o seu sono, tentando neste momento, traduzir o seu silêncio.




Dia-Sim ( III)






Sempre há esperança. Acordei no bode. Corpo pesado - devo ter guerreado a noite toda. Achei que ficaria em minha cama lamentando o dia de ontem; lamentando o dia de hoje; lamentando o dia de amanhã. Que nada! Recebi o telefonema carinhoso. A campanhinha tocou me trazendo uma surpresa, o telefone tocou de novo, de novo, a campainha soou mais uma vez, o telefone continuou a tocar.

Tem dias que a gente não sabe de nada. Olha lá pra fora e acha que vai chover, mas aí vem o vento amigo e carrega consigo as nuvens chumbadas. Permitindo o aparecimento do astro rei.

Tem dias que a fada deixa de ser fada, transforma-se em feiticeira; que o espelho plano fica côncavo; que o que dissemos é interpretado de maneira errada. Tem dia que tudo pode acontecer: o bode pode sentar em sua sala. Em vez de um beijo vem um tapa.

Mas sempre há esperança.

A feiticeira se transforma em fada; o espelho côncavo é necessário para enxergarmos melhor; o que foi dito foi bem interpretado e assimilado, o tapa parou no ar e o beijo que recebemos não é de adeus.

Sei que sua partida para o mar é uma opção de vida. Vou continuar aqui, por enquanto, em minhas montanhas – também é uma opção de vida.

Aí, tu tens as gaivotas nervosas – aqui, eu tenho as maritacas agitadas. Teu vento cheira a brisa – o meu, a margaridas. Teu sol adormece no oceano – o meu, por trás das montanhas. Banhas-te em águas marinhas – eu, em águas dulcícolas. Você é o mar – eu sou o ar. Meu vento te faz ondas – tuas ondas brincam comigo. Hoje acordei com vontade do mar. Com vontade de navegar em teu mar. Subir em tuas ondas e me deixar levar. Hoje, acordei com uma vontade de teu olhar; de mergulhar neste azul dos olhos teus. Tem dias que a gente acha que vai chover. Tomara, tomara que chova você.

Sempre há esperança.

O medo não se transforma em despedida. O adeus é só por hoje. A alma não é feita de éter. A canção tem o seu nome. E não é perigoso a gente ser feliz.




O seu nome ( IV )





Não sabíamos muito do outro, mas o que sabíamos era o suficiente para dizermos até amanhã.Cheguei a minha casa e, ainda sem acreditar no que acontecera, caí em minha cama que continuava desarrumada desde a noite passada. Dormi e quando abri os olhos, o relógio da mesa de cabeceira indicava dezessete horas. Perdi a hora. Peguei o telefone e liguei para dizer que me atrasaria.Levantei e fui direto tomar uma ducha quente. Deixei o vapor invadir todo o banheiro; deixei a água cair em meus ombros e em minhas costas que ardiam parcialmente.Com os olhos fechados e os braços apoiados no azulejo, escondendo o meu rosto, como se estivesse contando até vinte para depois procurar quem estivesse escondido, ali fiquei por um bom tempo, sentindo a água escorrer pelo meu corpo. Será que é perigoso a gente ser feliz?Vesti o roupão branco que comprara na última viagem em férias e fui para a cozinha fazer um café forte. Tomei-o sem açúcar. Peguei o primeiro jeans no armário, e a primeira camiseta branca na gaveta. Enfiei os pés no tênis e fui para o trabalho.Fiz o mínimo necessário. Dividi o tempo em duas metades: o antes e o depois


Antes de desligar o computador, procurei o meu pen drive na bagunça de minha mochila. Enfiei na entrada frontal da máquina e busquei uma música do Chico. Transferi-a para o aparelhinho, desliguei o computador, apaguei as luzes, tranquei a porta e segui.Já na calçada, peguei um cigarro no bolso e, a cada tragada, uma imagem, uma vontade, um sorriso. Aprendi a não andar com os pés no chão.

Tem gente que nos faz bem. Sabe nos ler em braile - nas pontas dos dedos.

Tem gente que não tem medo de ser feliz - acende a luz para ver os nossos olhos.

Tem gente que nos tatua na alma – difícil de esquecer.

Tem gente que nos obriga a pedir bis.

Cheguei a minha casa conectei o pen drive no aparelho e ouvi Beatriz.






Paulo Francisco







Teadoro, Teodora!





Quando ela ouviu a minha voz pela primeira vez, ela riu do meu esse e do meu erre. Disse que o meu esse tem som de Xís e que o meu erre é carregado. Ela riu de mim. E a sua risada de menina travessa me contagiou e rimos juntos destes meus esses e erres.

Ri. Há muito tempo que não soltava uma gargalhada de verdade – uma daquelas de virar a cabeça pra trás e de doer a barriga. Já não sorria tão facilmente. No começo do ano estava carrancudo, sombrio. Aí, ela chegou de mansinho e foi me conquistando e, acabei voltando a ficar leve. Não vou dizer que sou a leveza absoluta do ser, mas permito-me em ser, pelo menos, um pouco menos pesado.

O que adianta ficar o tempo todo remoendo passado? Passado já foi! Então, tento, agora, criar um presente mais suave - azul. Claro, que de quando em vez, surgem umas nuvens acinzentadas, mas logo vão embora – não deixo que elas se transformem em tempestade. O que eu quero dizer é que parei de resmungar. Chega de bancar o dono da verdade. Nunca me levou a nada este meu lado cri-cri. Até porque, não era tão ranzinza – fui me deixando contaminar por maus-humores alheios.

Agora quando vejo uma cara carregada digo: ¨Tá indo visitar o rio são Francisco?¨ e dano a rir. A pessoa pode não entender a piada naquele exato momento, mas que depois vai dar uma boa gargalhada, ah! isso vai!

Ontem, a minha Teodora (apelido carinhoso que dei a ela) estava carrancuda, culpa minha – provoquei! Ela ficou mau-humorada, e eu deixei que ficasse zangada por um bom tempo. Depois eu falei pra ela: ¨ Você sabia que eu escorreguei da escada e esfolei as minhas costas? ¨ Ela danou a rir. Rimos juntos.


Paulo Francisco