Incompleto


















(Eu fiz algo de errado). Não é uma pergunta não, é uma afirmativa. É simplesmente uma frase que eu ainda não coloquei o sinal final. Uma interrogação; uma exclamação; um ponto. Ainda não a completei, ainda não sei como terminá-la.

Tem tantas coisas que deixamos incompletas por pura distração ou por não saber como. Somos assim: complexos e ao mesmo tempo queremos que o outro seja simples aos nossos olhos. Como retirar o cílio grudado na maçã de seu rosto se a lágrima sempre o move de lugar?

Como esperar um sorriso de quem anda sempre coberta por um véu? Sempre haverá atitudes complexas em situações simples – não abrimos uma garrafa de vinho rodando a rolha, precisamos de um instrumento adequado para puxá-la.

Mas se não conseguimos tirar o cílio com os dedos, podemos secar as lágrimas com beijos e transferi-lo para os nossos lábios. O sorriso? Basta levantar o véu. E a rolha, caso não tenha o instrumento certo para puxá-la, empurramo-la para dentro da garrafa - o que importa é o liquido.

Coisas simples podem ser feitas para situações que pensamos ser tão complexas. Às vezes o inatingível não é o céu e sim o levantar voo.

Quando o outro faz algo que não gostamos, devemos ou não falar sobre o assunto?

Pois é... como terminar a frase se o cílio continua na face, o véu ainda lhe cobre por inteiro e o vinho continua intacto?

Como posso terminar algo que não sei como começou.

É sempre assim, ela sabe como me atingir. Deixa-me aflito e impossibilitado de argumentar. Porque não posso argumentar o que não sei.

O silêncio é o pior das atitudes. Sempre soube disso. Sempre provoquei as reações mais descontroladas nas pessoas – e eu era, ainda, um moleque.

Então o silêncio não terá em mim um descontrole. O silêncio me faz pensar.

Eu fico, aqui, amadurecendo a possibilidade de terminar o que comecei.

(Eu fiz algo de errado)

Quando o silêncio terminar eu volto a escrever.

Quem sabe eu descubra que além de final, a frase está faltando uma ou duas palavras.

Paulo Francisco

O sorriso de Cecília










Voltando pra casa, totalmente aéreo como sempre, lembrei-me de uma história que aconteceu comigo num passado distante. Sorri ao me lembrar do sorriso de Cecília.

Eu ficava ansioso até avistar o seu brilho. Assim que a via sorrindo ou não, meu coração acelerava – era um coração apaixonado. Ela era a moça do sorriso bonito que me fazia feliz. Sempre no mesmo horário, no mesmo dia, eu a procurava pela janela do ônibus. Ela fazia parte da paisagem do meu caminho de volta pra casa. Ela era o meu ponto de referência, a certeza que o dia existiu em céu iluminado.

Gostava de diversificar o meu itinerário e, também, o meio de transporte, às vezes de carro, outras de ônibus e muitas vezes a pé. Sempre gostei de caminhar em viagens solitárias, mas, às quartas-feiras, nada de andar a pé, nada de pegar carona, nada de companhia. Às quartas-feiras eu queria estar dentro de um ônibus sozinho e em sonhos. Era quando eu a via, parada, distraída em pensamentos secretos; ou alegre, sorrindo, quando acompanhada de amigas. As quartas-feiras, eu a namorava em segredo. Desejava o seu sorriso. Enxergava o meu futuro.

Por sorte era parada obrigatória do ônibus. Era o ponto em que o fiscal da linha ficava com a sua prancheta, anotando os horários de todos os ônibus e a numeração da roleta. Quando o fiscal resolvia conversar com o motorista ou simplesmente não deixar o ônibus prosseguir a viagem de imediato, por estar muito adiantado, eu ganhava o dia – podia, então, ficar mais tempo desenhando o seu rosto em mim. Tatuava-a em minhas retinas.

Ela era linda, cabelos negros compridos, olhos castanhos e, tinha o mais belo sorriso visto até então por mim.

Eu me perguntava em silêncio: quantos anos ela teria? Onde ela morava? Seria num castelo? Estava muito longe dali? Qual seria o seu nome? Ainda não sabia o nome daquela que me fascinava com seu sorriso. Pensava em vários, mas nenhum deles combinava de verdade com o tom de sua pele, com a cor e o formato de seus olhos. De repente uma explosão de cores, e estrelas invisíveis desenharam, num céu azul, o seu nome: Cecília. Eu a batizei de Cecília.

Foram meses de amor platônico. Ela no ponto de ônibus e eu dentro dele.

Certo dia, ela me notou. Desviou os seus olhos e quando voltou com o seu lindo olhar, percebera que ainda estava vidrado nela e aí ela sorriu. Ela sorriu, e eu a retribuí com o meu sorriso tímido, amarelo de tanta vergonha por ter sido flagrado, como um bobo, olhando uma jóia. E ela era uma joia!

Não sei a cor que ficou o meu corpo, se roxo ou vermelho, mas, certamente não tinha a mesma coloração depois que todo o meu sangue parou em minha cara. Sempre que era apanhado por algo eu mudava de cor. Eu me denunciava, era o meu próprio delator.

Ela notou a minha admiração e a minha timidez estampada em minha cara de sorriso amarelo e foi gentil em sorrir novamente para mim. Cecília era, além de tudo, a delicadeza em minha vida.

Em outros dias, eu me distraia com outras coisas, mas às quartas-feiras não me concentrava em nada que não fosse o rosto de Cecília. Eu desejava aquele sorriso, achava que ela seria a minha namorada e, foi, por muito tempo, a namorada que me permitia sonhar.

Eu já tinha experimentado viajar naquele ônibus em outros dias, mas ela nunca estava no ponto desejado. Então, conformei-me em vê-la semanalmente. Era o que a felicidade tinha planejado pra mim, e eu aceitava de bom grado.

Mas um dia, tudo podia acontecer, como aconteceu: estava em minha quarta-feira rotineira, quando vejo a minha felicidade nos braços de outro homem. Ela tinha um amor; ela já era a princesa de outro. Ela não era minha; ela nunca fora minha. Empalideci, todo o sangue em mim escorreu para os meus pés, que se transformaram em pés-de-chumbo. Torci para o fiscal liberar o mais rápido possível aquele transporte maldito. Transporte de minha morte. Queria e precisava sair daquela paisagem cinza e desfocada. Paisagem afogada em decepção.

Ao chegar próximo ao meu ponto de parada, pedi a moça ao lado que puxasse a cordinha da cigarra, pois eu não a alcançava ainda, e segui para casa entristecido e com raiva. Uma mistura de sentimentos que ainda não tinha experimentado – um sentimento amargo como café sem açúcar; um sentimento pesado como o fardo que ainda iria, por muitas vezes, carregar. Ao chegar à casa de minha tia, ela vendo-me triste, perguntou o que estava acontecendo comigo e eu nada disse. Fui para o quarto fazer as minhas lições de casa. Não chorei porque não tinha o que chorar. Fiquei triste por ter deixado o meu sonho escapar. Fiquei mudo porque não sabia o que gritar.

Cecília foi a minha primeira aventura amorosa e por sua causa premeditei o meu primeiro crime passional. Mas como a vida é bela, mais tarde tirei o uniforme, peguei o meu pião e fui brincar com os meus amigos.

Sempre quando me lembro de Cecília, sorrio – ela fez parte, sem saber, de minha agitada infância.

Mas qual seria o seu verdadeiro nome? O que importa isso agora! Até há pouco tempo, algumas só me diziam os seus nomes verdadeiros quando já estavam em minha cama.

Mas nenhuma delas, certamente, teve o mesmo sorriso de Cecília.



Paulo Francisco


Transparência



Já amei em segredo. Hoje não mais. Meu amor é escancarado. Quando amo confesso. Estou mais sem vergonha, mais descarado para o amor. Sei que o não já existe em tudo e, o que tenho que fazer é vencê-lo com um sim. Nunca aceito um talvez. O talvez, pra mim é um não disfarçado. Não perco tempo com a incerteza. Prefiro o sim, mesmo que ele se transforme depois num não. Pelo menos tentei.

Se quero, digo. Não permito rodeios quando a questão é o amor. Não existe meio amor, meia paixão. Estes sentimentos quando vem, vem por inteiro, como chuva de verão, de uma única vez, sem promessas e pequenos avisos e nos deixa encharcados de felicidade.

Ele pode até estar embrulhado no papel de Sonho de valsas que desenrolamos com a delicadeza de um artefato sagrado. Sabemos com certeza da existência de um bombom redondo, com uma camada fina de chocolate e um biscoito crocante cheio de açúcar e aroma.

O amor é como um bombom desejado que derrete em nossa boca e envolve a nossa língua na mais pura calda de sentimento – quente, cheiroso e úmido. Comemos salivando, sentimos descer numa deglutição lenta, quase num slow motion.

Guardamos o papel brilhante, como prova que devoramos o mais gostoso dos sabores. Guardamo-los dentro de cadernos ou livros. Guardamo-los aberto como se quiséssemos preservá-los por inteiro. Papel brilhante de bombom entre páginas de um livro é registro de presente amado; é afeto em rosa e preto; é marcador de um capitulo sem fim.

Ontem ao pegar um livro na estante, datado de algumas décadas atrás, encontrei em cada capítulo um marcador em preto e rosa. Sorri. Foi um sorriso lento de passado. Deixei-os lá, nas mesmas páginas, intactos, brilhantes, vivos.

Já amei em segredo. Hoje não mais. E os livros que leio registram apenas minhas digitais. E os sonhos acompanhados com vinho são devorados em valsas de noivas, deixando no ar aromas derretidos em paixão.


Paulo Francisco

Pais e filhos





















Todos pensam que o bar é minha biblioteca. Confesso que botecos de quinta são bons sebos. Mas a minha sala de leitura é de céu aberto - não há silêncio; tem muita gente e cada um tem o seu jeito peculiar de ser. São exemplares únicos. Cada qual no seu formato. São raros e não tem fim. Adoro pontos de ônibus. Neles uso, muita vezes, a minha caneta e o meu bloco de anotações. É ali que consigo ter uma variedade de almas, pensamentos diversos e metas diferentes. Sou um abelhudo num ponto qualquer. Não me incomodo em esperar – nunca tenho pressa quando estou à espera de um ônibus e de uma história.

Hoje, em particular, fiquei um tempo enorme observando um garoto e seu pai. Pela quantidade de porquês, o moleque não passava de oito anos. Ele estava ávido por respostas. O menino, agitadíssimo, tentava tirar o máximo de proveito daquele interrogatório. O pai era a sua biblioteca; a sua internet.

Clica no pai e aparecerá uma resposta e a imaginação fluirá.

Parei a minha leitura e fiquei silencioso, atento às perguntas do menino:

- Pai, por que não temos mais dinossauros?

Fiquei esperando a resposta do camarada, que estava de cócoras, encostado ao muro, bem próximo ao filho.

- Bem...a tartaruga e o jacaré são dinossauros sobreviventes...

- Sããããão!?

- Sim, naquela época eles já existiam e eram enormes.

- Masss pai, o tiranossauro rex era um cachorro?

O pai ficou mudo. Não soube responder ou entender a piada do moleque.

O menino completa:

- Ele parece um cachorro com aquelas patinhas da frente (risos)

Mais perguntas:

- Pai, por que os dinossauros morreram? Eles eram tão grandes!.

Nenhuma resposta. O homem olhou pra o menino, mexeu em seu casaco, colocou a mão em seu queixo, como se quisesse dizer: ¨- Passo! Manda outra!¨

Estava ficando agoniado com as perguntas jogadas ao vento. O Google naquele momento estava fora do ar - a net estava lenta.

Mais outra, no mesmo assunto;

- Pai, se os animais pequenos conseguiram sobreviver, por que os dinossauros não? – o menino insistia. Ele queria que o seu herói respondesse ou, simplesmente confirmasse que a professora estava certa.

A cada pergunta do curioso, eu respondia silenciosamente. Sabia tudo sobre aquele assunto. Mas sabia também que não podia responder àquele exercício entre pai e filho.

O ônibus chegou e eles partiram.

Sorri. Era um sorriso de satisfação e de recordações. Não me lembro dos meus porquês. Sabia que não tinha ninguém que me responderia sobre céu e estrelas. Acho que eu não era um menino perguntador e sim um pequeno observador.

O meu filho nunca se interessou por dinossauros; nunca teve interesse pelo mundo animal ou vegetal e nem tampouco olhou para o céu. Ele é eletrônico. Enfeita-se de telas, joysticks, pendrives e botões com start, play e pause. E as nossas conversas de iguais, só acontecem após uma peça, um cinema ou um show.

E eu agora estou aprendendo sobre futebol.

Um dia desses, ele estava atrás de mim, lendo o que escrevia em meu laptop e disse:

- Sabe, tô até gostando de poesia!.

Olhei para trás e respondi:

- Que bom, bacana! Que bom... quer fazer uma comigo?

Ele respondeu:

- Ainda não, não estou preparado ainda.

Voltou para o puff e começou a apertar aquele objeto cheio de botões coloridos.

Apertei o meu play e viajei num texto.


Paulo Francisco

Descoberta


Estávamos numa conversa um tanto quanto, ou seja, numa conversa quase fiada. Era uma conversa melosa, como se tivéssemos os dedos lambuzados de mel. Quando por cargas d´água ela me saiu com essa: ¨Eu não! Eu, eu te aturo!¨ Fiquei tonto, enquanto ela , ria do outro lado. Eu sabia que aquela frase era também um chamego, era a confirmação que há estrelas no céu, sabia que foi um jeito de dizer: ¨Eu te amo apesar de tudo¨. Mas quando tentei entrar no jogo, veio mais uma porrada misturada a gargalhadas: ¨vou contar pra todo mundo a sua ranzinzice.¨ Nem argumentei, mudei de assunto e, depois de algum tempo de conversa cheia de dengos e desejos, nos despedimos.

Fui pra cama e lá comecei a pensar naquelas duas frases. Eu sou, realmente, muito difícil de ser aturado. Posso estar tranquilamente na categoria dos ranzinzas. Sim posso. Ela, mesmo brincando, se é que estava brincando – vai saber!- acertou na mosca – e por duas vezes.

Sim, ela me atura. Atura minhas manias; atura os meus caprichos; atura meu jeito de ficar isolado no escuro. Sou quase um ermitão. Sou um ranzinza.

Ela me atura. Atura este meu lado vacilão que a deixa preocupada por dias sem dá um telefonema para dizer que a dor já passou. Eu sou um insensível. Porque sou um ranzinza.

Ela me atura. Atura as minhas piadas sem graças que eu insisto em contar, como se fossem inéditas. E ela sorri. Porque se não sorri vai ficar ranzinza. E isto ela não quer.

Ela me atura. Atura a minha mania de dizer sempre adeus na hora que tudo esta ficando tão bom. Sou um chato, ou melhor, ranzinza nato.

Ela me atura. Atura as minhas indecisões, as minhas oscilações de humor – uma hora alegre demais, outra hora sério demais. Ranzinza? Acho que sim

Ela me atura.

Elas me aturam.

- Menino! Você reclama de tudo. Parece velho! Eu hein! Era a minha mãe me repreendendo das minhas ranzinzices – e eu só tinha dez anos de idade. Eu sou um ranzinza. Acho que nasci ranzinza, vou morrer ranzinza.

Que droga! É por isso que o meu filho faz caras e bocas na hora em que estou tentando mostrar alguma coisa que ele tenha feito de errado. Ele deve me achar o cara mais ranzinza do mundo.

Ontem eu fui à casa de minha amiga Valéria – era aniversário dela – e, ao voltarmos pra casa, meu afilhado Rogério me disse:

- Dindo, deixe de ser ranzinza, entre no carro e vamos embora!¨

Putz! Ferrou!



Paulo Francisco