Éramos musicais. Cheguei em casa pensando no que Valéria Soares me disse,
no carro, quando saímos da casa da mãe dela.
- Paulo, estava com saudades de você. Essa semana, ouvi Álibi e
lembrei-me da gente na casa da Barra.
Casa da Barra era a casa de seus pais, onde eu pousava quase todos
os dias pra batermos papo e ouvir ou cantar as músicas preferidas. Era uma
farra saudável e cultural. Mais tarde Valéria e seu irmão Alfredo
tornaram- se locutores de uma rádio local.
Respondi sem muito entusiasmo que gostava de cantarolar algumas músicas,
mas que hoje eu já deixei de ser muita coisa na vida. O Manoel – marido dela -
que estava conosco no carro perguntou curioso:
- Ué, bichão! Como eu nunca ouvi você cantando?
Valéria e Manoel:
- Ele cantava direitinho, tinha uma voz...
- Camarada, você tem que ir lá pra casa...fazer uma farra... Tomar um
vinho, ouvir um violão...
Interrompi dizendo que hoje eu não cantava absolutamente nada.
Mas o que mais me deixou encafifado foi o fato de saber que Álibi
era do Djavan e Bethânia tinha gravado, mas não lembrava uma frase
sequer da letra da música. Cheguei à minha casa tentando me lembrar a
letra e nada, deitei tentando e não brotava uma frase, não queria ouvi-la do
disco, queria que ela surgisse na minha cabeça. Afinal, sou teimoso.
Mas em vez da música, imagens surgiram como fantasmas. E
junto com elas, outras músicas incidentais costuravam as minhas
lembranças. Rostos, gestos, lugares antigos em preto e branco pintavam meus
olhos, às vezes tristes, às vezes assustados; às vezes alegres.
Fiz uma linha do tempo musical e a danada da letra não surgia. Até
que um rosto já esquecido brotou como flor numa terra dura e batida.
Entremeando entre as rachaduras da vida como erva daninha. E conforme os traços
iam ficando mais nítidos, a tão esperada letra deixava a minha pele em carne
viva.
E eu cantarolava: Havia mais que um
desejo... Baixinho dizia: A força do beijo/Por mais que vadia/Não sacia mais... Agora eu queria parar de lembrar, queria parar de cantar, mas não
conseguia. Meus olhos lacrimejam teu corpo / Exposto à mentira do calor da ira... E quanto mais eu mergulhava a escuridão, mais brilhante a imagem se
tornava. E quanto mais brilho no fundo da minha retina, mais explosões de
sentimentos atingiam o meu peito. Rendi-me a imagem, a história e a música: Exposto à mentira do calor da ira/ No afã de um desejo
que não contraíra/ No amor, a tortura está por um triz/ Mas a gente atura e até
se mostra feliz/ Quando se tem o álibi/ De ter nascido ávido/ E convivido
inválido /Mesmo sem ter havido...
Éramos musicais: Valéria, Manoel, Márcia, Paulo
Henrique, Sandra e tantos outros jovens amigos daquela época. Menos
ela - o meu álibi de toda minha vida.