Sobre a mesa da varanda havia um gato. E sob ela um cão.
Enfeitando a parede branca, duas casinhas de passarinho de cada lado da porta
de vidro colorido. Sempre que passava em frente à casa, fosse
na ida ou na volta da escola, parava por alguns segundos para admirá-la.
Gostava da aparente harmonia entre os bichos de cerâmica enfeitando a
varanda da velha senhora sentada olhando o nada. Nunca me esqueci dessa
paisagem.
Outras paisagens se eternizaram em minha alma. Como da mulher baixinha,
apelidada por nós, moleques da rua, de dona borboletinha Ela vendia as cocadas
mais gostosas do mundo. Nossa boca salivava todas as vezes que passava
por nós com o seu cesto de vime. Sabíamos do tesouro escondido sob aquele pano
branco. Como poderia esquecer-me do menino de olhos coloridos, um de cada
cor. Do outro que tinha os dedos anelar e mindinho unidos por uma
membrana. Arrepiava-me todas as vezes que ia brincar em sua casa e via
pendurada na parede da sala uma palmatória que de quando em vez, era usada. Do
carroceiro com sua égua chamada piranha. Quando eles passavam, era uma festa,
uma algazarra só, gritávamos em coro o nome da égua. O animal nos dava a
liberdade de transgredirmos, mesmo que inocentemente.
Algumas outras paisagens se tornaram referências de uma época. Como os
caminhões e jipes do exército trafegando pelo bairro e soldados verdes com seus
cassetetes em cada esquina. Éramos avisados o tempo todo pra não falar com
gente estranha e muito menos aceitar balas ou qualquer outra coisa de quem a
gente não conhecia. Mais tarde descubro o porquê de tantos avisos – era por
causa dos comunistas que podiam nos raptar. Santa ignorância! Não éramos alvos
e sim o motivo de tudo aquilo. Falar com estranhos era perigoso – mal
eles sabiam que o perigo rondava-nos há muito tempo, na falta de conhecimento,
na pouca esperança de uma linha invisível.
Tudo isso veio à tona hoje, décadas depois, por ter passado em frente a
uma casa com varanda onde sobre a mesinha branca de ferro tinha um gato malhado
sentado e ao seu lado um cão marrom dormindo sobre um tapete listrado.
Penduradas na parede de fora da varanda duas gaiolas com pássaros coloridos
dentro. Foram eles que me chamaram a atenção para dentro da casa. Lá estava uma
velha senhora sentada no meio da sala olhando para fora, olhando para o nada,
olhando para mim.
Agora, em minha varanda nua, termino este texto olhando para a tela
eletrônica, pensando nas velhas, pensando nos gatos, pensando nos cães,
pensando nos pássaros. E nessa epifania colorida, vejo os meninos com
heterocromia e sindactilia, geneticamente felizes.
Paulo Francisco