22 de agosto (Pressentimento)





Hoje, acordei e permaneci coberto de saudade. Não era uma saudade de tristeza. Mas também não era de alegria. Era uma sensação que de quando em vez bate e fica por um tempinho e depois se dispersa dentro do peito.  Mas hoje foi diferente, ela chegou e ficou por mais tempo em mim. Eu sempre digo que têm coisas que a gente não controla. A raiva a gente controla; a euforia a gente controla; mas a saudade é quase que impossível de se controlar.

Cecília escreveu:  De que são feitos os dias?/ De pequenos desejos/ Vagarosas saudades /Silenciosas lembranças. 

Pessoa escreveu: Eu amo tudo o que foi /Tudo o que já não é /A dor que já não me dói /A antiga e errônea fé /O ontem que a dor deixou /O que deixou alegria /Só porque foi e voou /E hoje é já outro dia.

Talvez eu tenha acordado com pequenos desejos porque hoje é um outro dia. Não sei. Não sei que sensação foi essa que acordou comigo e permaneceu por todo o meu dia.
Têm dias (e que são muitos) a saudade rasga a pele e crava a alma. É dor que acorrenta e escraviza. É dor que quer ficar.

Chico escreveu e cantou: Que saudade é o pior tormento/ É pior do que o esquecimento/ É pior do que se entrevar.

Eu sei que saudade é essa que fica guardada na penumbra do dia, que se esconde num suspiro disfarçado querendo escapar.  Eu sei que saudade é essa que o chão se desnivela querendo derrubar. Eu sei que saudade é essa que a paisagem fica num tom  acinzentando querendo enganar.

Hoje, acordei e fiquei como aquela poesia que um dia escrevi:

 Chove
- não muito
Chove intermitentemente
uma chuva fina e sem vento
Não estou com frio
Mas estou triste
Muito triste como Campos no século passado
Muito triste como Caetano em seu quarto
Chove intermitentemente
E eu, à janela, de repente esqueço-me do dia de hoje.
Porque estou me sentindo triste como Caetano e Álvaro de Campos.


Talvez essa sensação que não é saudade, que não é tristeza e tampouco euforia, seja apenas um vaticínio que sempre acontece na segunda metade de agosto.

Talvez toda essa coisa abstrata seja uma predição de como estará a minha alma daqui alguns dias. Porque sei que no dia vinte e seis estarei triste. Eu sei.

Paulo Francisco


Momentos

-1-

19/07

Manhã

Uma mulher, um menino, um filhote de gato, uma casa pequena e algumas imagens fragmentadas.  A mulher era triste, o menino solitário e certamente o filhote era mais um de tantos gatos  abandonados.  E de repente todos estavam no mesmo espaço. A sensação era de angustia e de indecisões. O gato estava magro, o menino com fome e a mulher cansada. Tudo era cinza. Não havia cores. Não havia não...

O menino foi levado em desespero por outra mulher num carro conversível preto, o gato cheio de pulgas andava pela casa miando baixinho e a mulher chorava apertado sentada numa cadeira de madeira próxima a cozinha.
Acordei assustado com uma única frase na mente: Amarre as minhas mãos e salve-me de mim mesmo.

O que nós quatro estávamos fazendo ali? E o que significava aquela frase? Acordei com as interrogações em meu peito. Fiquei por um bom tempo da manhã com a magreza do gato, a fraqueza do menino e a tristeza da mulher. Sabia que tudo era somente um sonho. Mas mesmo assim as imagens fragmentadas mexeram comigo. Talvez não fosse somente um sonho; talvez fosse algo que um dia existira na minha vida. Mas não iria pensar por muito tempo. Sonho é coisa que se desmancha pelas mãos da realidade. E agora deixo esse texto porque um churrasco me espera. Mas eu volto com certeza.

-2-

20/07

Manhã

O domingo fora perfeito. Sol ameno com um céu azul e gente amiga num churrasco de confraternização.  Uma coleção de samba de primeira, cerveja gelada e carne ao ponto. Tricolores e vascaínos torcendo pelos seus times e pela grana do bolão.

O domingo fora perfeito. Alegre e tranquilo. Tem dias que são somente dias que passam em horas e rotinas. Tem outros que são de pura alegria. Ou o contrário de tudo isso. Mas ainda são dias. Hoje, a segunda nasceu preguiçosa e de céu escuro.  E adivinha? Farei companhia a ela. Dias assim me convidam pra uma leitura descompromissada e silenciosa. Nem todo dia cinza é dia de poesia triste. Nem todo céu cinzento é sinal de chuva. E caso seja, que venha lavar-me a alma pra que ela possa se vestir de mais alegria.

Porque foi num dia cinza com promessa de chuva que a encontrei parada na esquina.

Porque foi dentro da chuva de um dia cinzento que nos abraçamos mais ainda.

Tarde

Contrariando a manhã, a tarde chegou clara e azul. Repetindo o cenário de ontem, afirmando que nada é pra sempre.

Pessoa escreveu:

¨Cai chuva do céu cinzento
Que não tem razão de ser
Até o meu pensamento
Tem chuva nele a escorrer.¨

Contrário ao poema de Pessoa corre em meus pensamentos a certeza do sol. Mas o poema é lindo e continua assim:

¨Tenho uma grande tristeza
Acrescenta à que sinto
Quero dizer-ma mas pesa
O quanto comigo minto.¨

Hoje eu não estou triste. Estou tranquilo. Deixando o dia passar. Ora lendo, ora escrevendo. Ou simplesmente de papo pro ar.  Olhando revoada de passarinho. Esperando a noite chegar.

E antes de terminar o texto tenho por respeito que terminar o poema de Pessoa:

¨Porque verdadeiramente
Não sei se estou triste ou não
E a chuva cai levemente
(porque Verlaine consente)
Dentro do meu coração.¨

Gosto desses meus dias de poemas e de canções. Da falta de compromisso. Da certeza do dia. Contrário ao do poeta há alegria no meu coração.

Paulo Francisco



Leave me alone





Deixe-me em paz!
É bom acordar com a brisa segredando na orelha. É muito bom acordar com a felicidade iluminando o quarto e desejando bom dia. Acordei com a esperança vestida de flores. Por mim, ficaria aninhado no colo do dia e jogaria os compromissos para o alto e deixaria o vento encarregado de levá-los para bem longe. Mas como no meu jardim não há somente flores, e as daninhas existem e têm seus significados, levantei para mais um dia.
Às vezes temos que driblar o inimigo, usando a sua própria arma:
- Bom dia, Paulo!
- Booom diiiiia!
Gosto de quebrá-lo na incerteza.
Deixe-me em paz!
Não é uma regra, mas há dias em que prefiro ficar sozinho. Nada de gente, nada de conversas fiadas. Quem me conhece de verdade sabe.  O silêncio me basta. Mas como entender o outro não é para qualquer um; ela acha que vivo isolado demais, que não dou oportunidade de conhecer alguém legal e que o meu castelo é cercado por um fosso cheio de crocodilos. Talvez ela esteja certa. A ponte levadiça está, na maioria das vezes, levemente erguida. Mas de quando em vez o salão nobre é aberto e as festas são demoradas e o meu Burg se transforma num autêntico schloss, enfeitado de flores e cortinas vermelhas.
 Já gostei mais dessas semanas guardadas em convites e vinhos. Às vezes era melhor mentir pra não ferir.
- Onde é que você estava?
- Aqui!
- Liguei pra ti e nada.
- Estava naqueles meus dias de reclusão
- Entendi...
Deixe-me em paz!
Mas nem tudo é literal nessa frase. O desassossego está na sua falta. E que o meu deixar em paz é estar aconchegado em seu ventre. É respirar perfume de flor. É sentir a leveza aromática de suas pétalas. É saber que o tempo é regido pelo batimento cardíaco em seu peito. Que a brisa que vem da janela nos entrelaça com fita dourada. Que o sol é coadjuvante na quentura de nossos corpos. Que o infinito é o nosso teto de madeira. E que é necessário esse silêncio de nós dois. E nessa calmaria repentina, digo:
Sim, deixe-me em paz, ficando aqui comigo.
Sim, deixe-me em paz, abraçando-me em dias frios e quentes também.
Sim, deixe-me em paz, ouvindo suas gargalhadas divertidas.
Sim, deixe-me em paz, com a certeza de sua existência.
Deixe-me, deixe-me em paz, dizendo baixinho, na ponta da minha orelha, que você já sabe o meu caminho.

Paulo Francisco







Esconderijo


Tempestades






Era quase um evento quando as manhãs acordavam densas. Era como se estivesse num outro mundo. Agarrava a mão da minha mãe com medo de me perder no desconhecido. Ainda não sabia que iria morar num lugar que evento mesmo era ter o começo das manhãs douradas. Assim que cheguei à Teresópolis, fiquei maravilhado, mesmo sem saber na época desse sentimento. Era tudo tão grande, tão ainda mais colorido. Tinha mais flores e mais cores. As montanhas estavam próximas e mais verdes. O verão era agradável; a primavera se realizava aos nossos olhos; o inverno assinava o céu com a fumaça saída das chaminés - tinha a impressão que todos jantavam as sete. Mas fora o céu do outono que me fez a cabeça. O céu era mais azul, as estrelas se apresentavam mais brilhantes e em noite de lua era sempre uma surpresa.

Ainda não tive nesse outono, em minha cabeça, o sol do meio dia num céu azul típico da estação.  Adoro essa meia-estação de temperatura amena e surpresas durante o dia. Ora frio quase inverno, ora quente quase verão.

Na adolescência:

- Vai sair sem um casaco?
- Vou!
- Mas está frio lá fora...
- Mas depois esquenta e não gosto de ficar carregando casaco no braço.

Basta uma neblinazinha pra está todo mundo coberto. Depois o tempo abre e a elegância em tons de cinza e preto passa para o incomodo ensolarado.  O amarelo rei não perdoa.

Na semana passada:

- O que foi fulana? Está passando mal?
- Não estou aguentando de calor. Achei que hoje ficaria frio e coloquei essa blusa fechada.

Mentira! Ela não estava aguentando ver sua blusa nova pendurada no cabide. Aproveitou a primeira bruma no horizonte para saciar sua ansiedade.

No inverno passado:

- Paulo, tá frio por aí?
- Sim, abaixo dos dez graus...
- Ótimo, vou aproveitar para estrear o meu casaco novo que comprei mês passado.

Pronto! Lá estava eu passeando com ela e seu casaco novo pela cidade.  Sabia que não aguentaria vê-lo pendurado no closet.  E também não entendo comprar um casaco pesado quando se mora no Rio de Janeiro.

- Por que você comprou esse casaco?
- Ué, esqueceu-se que vou para o Chile e...
- Putz! Você vai mesmo viajar de novo? Acabou de chegar do Sul.

Risos

- E foi lá que comprei o casaco...

Hoje, a manhã acordou preguiçosa. Brumadinha. Desesperançosa de sol durante todo o dia. Não gosto de dias monocromáticos. Não gosto da certeza da inexistência da diversidade. No momento, a monocromia  é certeza de tédio.  Mas às vezes é necessário recolher o arco-íris dos olhos e retirar do armário o guarda-chuva.

Achei que teria um dia tranquilo. Um dia de paz. Mesmo com a presença de nuvens e vento molhado pela manhã.  Acreditei que o meu silêncio comporia a melodia do dia.  Esqueci, por completo, que estava num outono atípico. Esqueci que a adversidade existe; que determinadas bruxas gostam de trovões e raios; que elas não gostam de flores - preferem as ervas daninha; que o bem-estar é calo num sapato apertado.

Quando me vi no nevoeiro, sem casaco e com frio, não tive nenhuma mão amiga para me guiar. Senti-me uma presa no caldeirão, numa convenção de bruxas más.

Quando cheguei nessa cidade tudo era maior e mais colorido. Mas também, ainda não tinha totalmente crescido.

Paulo Francisco