Transgressão

Mesmo sabendo que contar estrelas eu poderia ficar com os dedos cheios de verrugas, não resistia e contava-as até o meu infinito.

Sempre fui assim, adorava transgredir. E transgredindo descobri que os adultos adoravam mentir para nós – as crianças. E, como toda criança, eu adorava imitá-los. Então, mentia desavergonhadamente. Eu era um inventor, contava as mais absurdas histórias e acreditava nelas.

Não sei se mudei tanto assim, acho que estou mais mentiroso que nunca e mais contador de estrelas que antes. Hoje não só conto, crio minhas próprias estrelas. Faço delas meu céu.

Neste exato momento, mais uma constelação surge em meu mundo celeste, Ela surge com um formato singular; tem rosto redondo, cabelos ondulados e medianos, carrega em seu ombro não um vaso, e sim um cesto de rosas, rosas vermelhas; a minha mais nova constelação está envolta por um coração, seu sorriso é a mistura do sorriso do gato de Alice com o sorriso de Monalisa de Leonardo da Vinci, depende de qual hemisfério você a observa.

Neste exato momento invento, crio uma história – só me resta encontrar a protagonista que se encaixe nela.
Quem se habilita?


Paulo Francisco



Vida selvagem

O inseto verde entrou como um raio atraído pela luz daquele ambiente – era uma esperança. Com suas asas em forma de folha, ele permaneceu estático, contrário a sua natureza, ficou em evidência na parede de cor pêssego.

O que ele faria ali, num ambiente tão diferente do seu? Não seria um suicídio se expor?

Aquele pequeno ser foi atraído pela luz artificial. Não conseguiu diferenciar a luz do dia e, no desespero da noite sem lua, voou para o primeiro clarão que viu.

Ainda é noite e há perigo lá fora.

O inseto permaneceu inutilmente em sua posição de camuflagem – estático como uma folha – naquela amplidão cor de pêssego.

Confiante, resolveu investigar aquele lugar tão novo e acolhedor. Não voou, andou. Caminhou pela superfície frisada, mexia com as suas pernas dianteiras, como estivesse se limpando.

Seu canto agudo anunciava sua felicidade em poder estar fora de perigo.

A alegre cantante passou a voar de uma parede a outra. Seu canto era claro e forte. Sua confiança era absoluta.

E num destes vôos dançantes de felicidade, a surpresa: ZAPT! A esperança foi morta por um calado réptil que a observava atentamente.

Foi engolida por uma lagartixa.


Paulo Francisco

Outro céu

Não estamos no mesmo céu. Não sei até quando o meu céu permanecerá neste azul. Talvez eu queira transformá-lo em outra cor. Quando adulto, passei um bom tempo de minha vida sem olhar para o alto. Não tinha perspectiva de mudança do tempo. Estava tudo sempre muito cinza, carregado de demência.


Às vezes, passamos uma boa parte de nossas vidas presos ao chão e, é necessário um furacão para nos tirar de tamanha adesão.

Já estava achando que a aderência existente na sola de meus pés era do tipo não sai mais. Mas que bom que era de má qualidade e pude descolar-me deste piso frio com sopros alísios, sem muito esforço. Então, pude viajar em ventos fortes. Já permaneci em calmaria; já suportei o controvento em minha cara. E nestes ventos variados conheci alguns céus.

Quando em cárcere, o céu não passa de uma pequena tela em movimento – nos deixam estáticos. Quando livre-cigano, ele é multicolorido, tem ritmo, tem dança – faz-nos viajar em outros ares. Sou, neste momento, um caçador de ventos. Guardo-os em lembranças.

Com o vento viajei por aí, sem destino, rindo, apaixonando-me por pessoas e coisas. Hoje estou menos à deriva, mas não estou fixo. Posso ir em busca de outros céus; de outros mares; de outras montanhas. Deram-me asas.

Não estamos no mesmo céu. Minhas nuvens estão sempre por aqui, em véus, posso pegá-las com as mãos. Brinco de faz-de-conta neste meu mundo particular. Posso transformá-lo num azul mais anil, acinzento quando preciso, faço chover, desenho um sol, ele pode ficar denso ou posso deixá-lo mais transparente, salpicados com pequenas nuvens de algodão.

Não, definitivamente o meu céu não é igual ao seu. Este seu céu é único, verdadeiro.Tem ritmo de tango. É faceiro. É Buenos Aires. É desejo. É vontade.

Este teu céu em ouro, cega-me, de tanto olhá-lo.

Definitivamente, Paula Barros, este teu céu é melhor que o meu.

Céu

Disseram-me que adoro o céu e que haja infinito azul para minha inspiração. Sim, eu gosto do céu e o azul me traz paz. Mas o meu céu é de várias cores. Às vezes ele se encontra clarinho, tão clarinho e reluzente, que doem os olhos e a alma daquele que fica, por muito tempo, tentando decifrá-lo.

Os meus céus são vários. Em minha infância ele era mais distante, as pipas coloridas sumiam numa imensidão azul. Os pássaros, sempre em bando, fugiam em franco desespero, em cantos anunciados em tempestades, e o que estava a brilhar se apagava.

No meu céu de todas as cores, tem querubins e serafins, instrumentistas cantantes, moleques arteiros e arpistas.

Os amarelados anunciam a chegada do sol, traz consigo o calor que agasalha.

Os avermelhados se despedem como cavalheiros, permitindo que a dama lua ocupe seu lugar no espaço.

Os magentas são os mais felizes – é mistura de dois céus – reluz o que mais importa – o amor em plena ebulição.

É..., o meu céu traveste-se de cores. Cores absolutas. Ele é generoso, abriga a lua, o sol, as estrelas e as musas de minhas poesias; permite, também, que outros evidenciem suas cores.

O meu céu é mágico, transforma o nada em imagens aneladas, permite amores ansiados.

O meu céu também fica zangado, e se revela chumbado. Mas quando tranquilo o azul outonal aparece e transmite esperança. Quando assustado, coitado, esconde-se no pretume de uma coberta.

Quando ele está anilado, bordado por estrelas felizes, acredita-se que está sonhando com um amor distante.

Mas hoje, exatamente hoje, ele se prateia e chora chuva.



Paulo Francisco

Arrumação

As minhas gavetas continuam desarrumadas. No desespero da dor - à procura de meu antiácido - percebo que as minhas gavetas nunca ficam arrumadas. Definitivamente não sou metódico, vivo e sobrevivo no caos.
Não sei se conseguiria ter uma vida certinha, com café da manhã em mesas arrumadas com jarros de flores e jantares na hora certa e música ambiente ao fundo.
Não tenho hora pra quase nada. Sou totalmente desorganizado e confuso.
Então, olhando para a bagunça existente, decido, num rompante, arrumar as gavetas - quem sabe esta dor danada, em meu estômago, não passe depois de uma faxina completa nestas gavetas abarrotadas de passado?

[Decisão em ebulição]

Faço isto. Começo pelas gavetas de baixo, lá estão as mais pesadas lembranças. Retiro peça por peça. Analiso cada uma delas. Não entendo como pude guardar tanta coisa inútil.
Num saco plástico preto começo, num ritual fúnebre, a depositar as peças obsoletas: um estilingue, algumas bolas de gudes, um boletim registrando a minha mediocridade intelectual, uma foto apagada em que tento descobrir o que havia e, depois de certo tempo, arrependo-me de tal esforço – era uma fotografia amarelada, apagada. Restaurá-la era perda de tempo, continuaria lá num passado distante.
Gaveta limpa. Sigo para a seguinte. São peças tão velhas e inúteis quanto à primeira. Sigo o mesmo ritual, e antes de terminá-la, preciso de outro saco. Nesta, sobrou tão pouco que resolvo guardá-las numa caixa de madeira. Esforço inútil de recordações pálidas e ressequidas.
Faço deste dia, o dia nacional de minha independência emocional, ou quase.
Sinto-me aliviado, mas não o suficiente para exterminar de vez a aguda e teimosa dor.
Enquanto as gavetas se tornam livres de um passado sombrio, meu corpo reclama de dores musculares – ele pesa, fica curvado, travado.
Chego à última, que na verdade é a primeira de cima para baixo. Olho para aquela confusão e não sei por onde começar. Tudo está tão recente. Como desfazer de algo, ainda, tão presente.

[Surge em mim um silêncio branco]

Fico indeciso, tinha resolvido limpar tudo, não deixar nada que possa aumentar ou manter esta dor desgraçada aqui dentro de mim.

[medo do vazio]

Mas como jogar fora momentos tão recentes? Como posso achar que esta dor pode ser provocada por causa desta gaveta bagunçada?. Não, não pode ser por aí.

[decisão em ebulição]

Não vou jogar nada fora. A dor que se dane.
Eu aguento!


Paulo Francisco