Encontro

Encontro ( I )





Quando ela apareceu, dirigindo-se a mim, não acreditei. Era uma miragem, a pílula que tomei tinha algo a mais além da composição real. Fixei os meus olhos nos dela e pude notar a agitação em seus cílios. Eles abriam e fechavam como uma janela ao vento, mostrando aos poucos os seus olhos claros, claros? Agora já não sei mais a sua cor. Azul, verde, cinza? Talvez todas as cores. Sua pele sim; era branca e fez-me pensar em sua nudez em porcelana como a delicadeza de uma peça chinesa. Senti o desejo de sabê-la. Será que ela era moça?

Ela falando comigo como se já me conhecesse de muito e, eu ali, olhando seus dentes, sua boca carnuda, sua face e, pensando de onde ela saíra. Será que ela caiu do céu? Pouco falei, preferi ouvir dividindo minha audição com os meus olhos. Escuto melhor com eles. Minha retina ouvia sua voz; ouvia sua boca; ouvia sua pele; ouvia seu colo e parte de seus seios à mostra. Meus olhos ouviam os meus desejos – desejos em botões de rosas; rosas pálidas e delicadas. Será que ela é triste? – continuei me perguntando.

Pouco falei. Ela falou por nós. Sua espontaneidade em dizer-me coisas, agradava-me – não precisei perguntar, as respostas vinham antes das perguntas. Os meus pensamentos mais secretos ficaram em respostas gestuais, no balanço de suas mãos, dos cabelos claros que brilhavam com invasão dos raios do sol, dos seios graúdos e obedientes numa respiração palpitante.

Tudo começou quando os nossos olhos se encontraram numa manhã quente e brilhante. Certamente a minha timidez impediria qualquer movimento em sua direção. Não precisei – ela era uma visionária. Falando com o sorriso, comentou sobre aquela manhã abafada e, acrescentou dizendo de sua preferência em estar naquele local logo naquele momento. A culpa era do sol invernal que se tornava insuportavelmente forte à tarde. Eu concordei com um simples sim. A minha cara de exausto já dizia tudo. Por outro lado, concordaria com tudo que falasse naquele momento. Estava paralisado pela sua espontaneidade e seu gracejo. Estava totalmente atônito diante daquela mulher de pele branca; de pele de porcelana chinesa. Será que ela era uma pintura?

Muito raro alguém puxar conversa comigo – estou sempre com os olhos enterrados num livro. Mas nesta manhã solar, os anjos não me permitiram uma leitura isolada. Eles estavam de plantão e tocaram cornetas ao meu desejo - e ainda falta muito para o meu aniversário. Como desejei nestes meus momentos de pura distração ser acordado por uma visão como a dela. Será que ela caiu do céu?








Olhos de mulher ( II )




Traduzo o seu silêncio. Seus olhos sempre me dizem algo inédito. Sempre recorro a eles nas minhas dúvidas imediatas. Não preciso de nenhum som a não ser o suave toque de suas pestanas, para obter uma resposta desejada. Tenho-os por lua e o sol. Aqueço-me com os seus raios refletidos em cores novas. À noite, sou bronzeado pelas luzes lunares que eles radiam em meu corpo. Sou dependente dos seus olhos; sou dependente de suas meninas. Vejo-me em sua retina.

Quando encontro um cílio em sua face, sorrio de satisfação, guardo-o em minha coleção de cílios seus. Não tento correr o risco de disputar um pedido em nossos dedos. Prefiro guardá-los no meu silêncio. Tenho uma coleção de cílios seus. Não os guardo em meus seios porque não os tenho. Guardo-os na caixa de meu peito. Tenho uma coleção de cílios seus em mim.

Quando agitada, fico ali olhando para as batidas de suas pestanas, perco-me no ar. Fico silencioso, imóvel - como o gato desejando o passarinho - olhando-os na esperança de um deles cair ao vento.

Quando os seus olhos de atriz me dizem adeus. Quando refletem em outros corpos; quando banham outras peles. Quando seus olhos de atriz, por um triz, deixam-me aqui. Seguem em outros caminhos; quando estão em outra dimensão, quando fecham as venezianas e me deixam na penumbra, quando me deixam parado no tempo – em vertigem - quando eles me abandonam por um esquecimento. Eu, em absoluto desejo, vigio o seu sono, tentando neste momento, traduzir o seu silêncio.




Dia-Sim ( III)






Sempre há esperança. Acordei no bode. Corpo pesado - devo ter guerreado a noite toda. Achei que ficaria em minha cama lamentando o dia de ontem; lamentando o dia de hoje; lamentando o dia de amanhã. Que nada! Recebi o telefonema carinhoso. A campanhinha tocou me trazendo uma surpresa, o telefone tocou de novo, de novo, a campainha soou mais uma vez, o telefone continuou a tocar.

Tem dias que a gente não sabe de nada. Olha lá pra fora e acha que vai chover, mas aí vem o vento amigo e carrega consigo as nuvens chumbadas. Permitindo o aparecimento do astro rei.

Tem dias que a fada deixa de ser fada, transforma-se em feiticeira; que o espelho plano fica côncavo; que o que dissemos é interpretado de maneira errada. Tem dia que tudo pode acontecer: o bode pode sentar em sua sala. Em vez de um beijo vem um tapa.

Mas sempre há esperança.

A feiticeira se transforma em fada; o espelho côncavo é necessário para enxergarmos melhor; o que foi dito foi bem interpretado e assimilado, o tapa parou no ar e o beijo que recebemos não é de adeus.

Sei que sua partida para o mar é uma opção de vida. Vou continuar aqui, por enquanto, em minhas montanhas – também é uma opção de vida.

Aí, tu tens as gaivotas nervosas – aqui, eu tenho as maritacas agitadas. Teu vento cheira a brisa – o meu, a margaridas. Teu sol adormece no oceano – o meu, por trás das montanhas. Banhas-te em águas marinhas – eu, em águas dulcícolas. Você é o mar – eu sou o ar. Meu vento te faz ondas – tuas ondas brincam comigo. Hoje acordei com vontade do mar. Com vontade de navegar em teu mar. Subir em tuas ondas e me deixar levar. Hoje, acordei com uma vontade de teu olhar; de mergulhar neste azul dos olhos teus. Tem dias que a gente acha que vai chover. Tomara, tomara que chova você.

Sempre há esperança.

O medo não se transforma em despedida. O adeus é só por hoje. A alma não é feita de éter. A canção tem o seu nome. E não é perigoso a gente ser feliz.




O seu nome ( IV )





Não sabíamos muito do outro, mas o que sabíamos era o suficiente para dizermos até amanhã.Cheguei a minha casa e, ainda sem acreditar no que acontecera, caí em minha cama que continuava desarrumada desde a noite passada. Dormi e quando abri os olhos, o relógio da mesa de cabeceira indicava dezessete horas. Perdi a hora. Peguei o telefone e liguei para dizer que me atrasaria.Levantei e fui direto tomar uma ducha quente. Deixei o vapor invadir todo o banheiro; deixei a água cair em meus ombros e em minhas costas que ardiam parcialmente.Com os olhos fechados e os braços apoiados no azulejo, escondendo o meu rosto, como se estivesse contando até vinte para depois procurar quem estivesse escondido, ali fiquei por um bom tempo, sentindo a água escorrer pelo meu corpo. Será que é perigoso a gente ser feliz?Vesti o roupão branco que comprara na última viagem em férias e fui para a cozinha fazer um café forte. Tomei-o sem açúcar. Peguei o primeiro jeans no armário, e a primeira camiseta branca na gaveta. Enfiei os pés no tênis e fui para o trabalho.Fiz o mínimo necessário. Dividi o tempo em duas metades: o antes e o depois


Antes de desligar o computador, procurei o meu pen drive na bagunça de minha mochila. Enfiei na entrada frontal da máquina e busquei uma música do Chico. Transferi-a para o aparelhinho, desliguei o computador, apaguei as luzes, tranquei a porta e segui.Já na calçada, peguei um cigarro no bolso e, a cada tragada, uma imagem, uma vontade, um sorriso. Aprendi a não andar com os pés no chão.

Tem gente que nos faz bem. Sabe nos ler em braile - nas pontas dos dedos.

Tem gente que não tem medo de ser feliz - acende a luz para ver os nossos olhos.

Tem gente que nos tatua na alma – difícil de esquecer.

Tem gente que nos obriga a pedir bis.

Cheguei a minha casa conectei o pen drive no aparelho e ouvi Beatriz.






Paulo Francisco







Teadoro, Teodora!





Quando ela ouviu a minha voz pela primeira vez, ela riu do meu esse e do meu erre. Disse que o meu esse tem som de Xís e que o meu erre é carregado. Ela riu de mim. E a sua risada de menina travessa me contagiou e rimos juntos destes meus esses e erres.

Ri. Há muito tempo que não soltava uma gargalhada de verdade – uma daquelas de virar a cabeça pra trás e de doer a barriga. Já não sorria tão facilmente. No começo do ano estava carrancudo, sombrio. Aí, ela chegou de mansinho e foi me conquistando e, acabei voltando a ficar leve. Não vou dizer que sou a leveza absoluta do ser, mas permito-me em ser, pelo menos, um pouco menos pesado.

O que adianta ficar o tempo todo remoendo passado? Passado já foi! Então, tento, agora, criar um presente mais suave - azul. Claro, que de quando em vez, surgem umas nuvens acinzentadas, mas logo vão embora – não deixo que elas se transformem em tempestade. O que eu quero dizer é que parei de resmungar. Chega de bancar o dono da verdade. Nunca me levou a nada este meu lado cri-cri. Até porque, não era tão ranzinza – fui me deixando contaminar por maus-humores alheios.

Agora quando vejo uma cara carregada digo: ¨Tá indo visitar o rio são Francisco?¨ e dano a rir. A pessoa pode não entender a piada naquele exato momento, mas que depois vai dar uma boa gargalhada, ah! isso vai!

Ontem, a minha Teodora (apelido carinhoso que dei a ela) estava carrancuda, culpa minha – provoquei! Ela ficou mau-humorada, e eu deixei que ficasse zangada por um bom tempo. Depois eu falei pra ela: ¨ Você sabia que eu escorreguei da escada e esfolei as minhas costas? ¨ Ela danou a rir. Rimos juntos.


Paulo Francisco

Um dia após o outro



Nada melhor que um dia após o outro. E depois de uma semana aguada, de cárcere privado, de apertos no coração, o sol chegou clareando as montanhas, esquentando a pele, pintando a alma, banhando de azul a prata esquecida num dos cantos da vida.

Tudo era tão inocente, tão infante, tão absolutamente doce, que eu não podia imaginar a minha vida de outra forma que não fosse de sol intenso e luas vermelhas, vermelhas como as frutas doces roubadas das feiras-livres por onde passei. Ah, eu fui ladrão de ilusões, roubei estrelas de céus alheios, enganei o sol ao meio dia, distraí a lua em canções doces e infantis. Fui sim, fui moleque arteiro de pular muros e correr o dia inteiro, como se o mundo só pudesse girar com as forças dos meus pés ligeiros.

Eu era vento que corria pelos terreiros de chão batido assustando as aves e manchando os lençóis brancos pendurados no varal de corda.  Não gostava da chuva, não gostava de lugares fechados. A madrugada ainda não tinha se apresentado em minha vida.  Não sabia o que era solidão até então.

Levantei com o sol sorrindo. Depois de uma semana de dias escuros, de ventos molhados, de noites sem lua, de frios inesperados, de janelas encostadas e de ruas vazias, o sol chegou pra restaurar a paz.  Não gosto de dias nublados, chuvosos, e principalmente de noites sem lua.

E depois da solidão insistente, do sofrimento masoquista, da palidez fria, das lágrimas ácidas, da boca rachada, das mãos acinzentadas, do crime frustrado, do suicídio incompetente... ela chegou trazendo cheiro de flor, a brisa trouxe consigo o aroma da vida, a certeza que nada é pra sempre e  que dias melhores sempre estarão por vir.

Nada melhor que um dia após o outro.  Lá estavam as casas de olhos abertos espiando tudo; a moça debruçada na janela, a velha sentada na cadeira, o gato deitado no muro, as crianças indo para a escola e o cachorro latindo para o mundo.

E como amanhã é outro dia, caminho cantando as cores da vida, porque ela certamente continua.

Paulo Francisco


Um dia qualquer



Levantei como eu gosto. Não tinha nada previsto. Nada agendado. Estava para o que der e vier. Manhã de sol. Muito sol. Mochila nas costas e caminhei para o meu parque preferido. Subi a trilha e lá de cima avistei minha cidade. Abri os braços e gritei. Gritei como um louco; gritei como um menino; gritei para o infinito o nome dela; fiz declarações de amor que foram levadas ao vento e espalhadas entre nuvens. E a cada grito meu, as árvores tremiam de emoção. E a cada vento soprado, seu nome era carregado para o céu.

Adoro estes dias ensolarados. Gosto de ler ao ar livre, deitado na grama embaixo de uma árvore centenária. Não tem leitura melhor.

Ali permaneci, por algumas horas. Volta e outra tirava meus olhos das letras e corria com eles numa visão panorâmica. Nada daquilo me era estranho. Crianças soltas, mães despreocupadas, nativos e estrangeiros num mesmo nicho - Sem divisão, sem território. Cabelos encaracolados, lisos, encarapinhados, loiros, negros; todas as cores de pele num mesmo abraço, num mesmo sorriso.

Gosto da mistura. Gosto dos sotaques misturados, transformando o som da voz numa sinfonia em ondulações variadas.

Saí do parque e caminhei até a feirinha de artesãos da cidade. Lá, tráfego de gente, vozes se misturam num barulho abafado e sem significado. Vozes desencontradas, frenéticas e sem uma frequência modular.

Saí sem comprar nada. Entrei para olhar; para sentir; para espiar e ser espiado. Gosto de observar gente.

Continuei com o meu dia improvisado. Continuei caminhando. Parei em frente à escola que fez parte de minha pré-adolescência. Olhei por uns instantes aquela arquitetura dos anos setenta projetado pelo Oscar Niemayer. Uma escola doada ao Município pelo Adolpho Bloch e localizada nada mais, nada menos que numa praça projetada por Burle Marx. Sorri. Sorri por lembrar minha ingenuidade em achar que o mundo era sempre de sol. Ali eu fui um moleque feliz.

Outras paradas necessárias.

Passei pelo teatro e comprei dois ingressos para a peça em cartaz. Conferi o que estava passando nos cinemas – nada me agradou. Parei diante de uma loja, gostei mais não comprei o sapato azul.

Parei no bar do João. Bebi cerveja; jogamos conversa fora e prossegui a minha caminhada itinerante.

Já em casa, uma ducha, um café, um som, um colchão.

O telefone tocou. Era um amigo convidando-me para sair. Eu disse: hoje não.

Mais tarde a campainha toca. Desço e no meio da escada volto para apanhar os bilhetes que comprara.

Adoro estes dias improvisados.



Paulo Francisco

Mitos






Os urubus planavam pacientemente nas correntes termais. Gritávamos:"Urubu vai chover?" E eles respondiam que sim com o bater das asas. Corríamos para o chão batido e com caco de telha desenhávamos o mais belo Sol, com face, olhos e sorriso.


Acreditávamos, piamente, que o nosso Sol desmancharia a certeza dos urubus. Gritávamos novamente:"Urubu vai chover?" E os danados em pleno voo aquecido, em total economia de energia, tornavam-se preguiçosos e não batiam as suas asas – passeavam absolutos no céu. Motivo para euforia. Gritávamos como índios em volta da fogueira em dia de festa.

Éramos crianças. Vivíamos num mundo de faz-de-conta e tínhamos a certeza de que tudo era verdade. Acreditávamos em fantasmas, bruxas e duendes.

Cresci acreditando que jogar pão fora era pecado. Até hoje, não consigo tal ato. Depois, descobri que o pecado não nos levaria ao inferno e, sim, à desvalorização da vida.

Custei pra entender, chinelo virado não faz ninguém morrer, e cortar o rabo da lagartixa, mesmo sem querer, não fará sua mãe ser praguejada pela cotó.

Atirei muito o pau no gato. Morria de sede toda vez que ia ao tororó e, possivelmente, revoltado deixava a morena sempre por lá. E a todas as frutas preferia salada mista.

Cresci e não mais corri dos ciganos, pelo contrário, fui seduzido pelas suas sedas e cores. Tive a certeza de que o Gentileza não era Cristo e muito menos Profeta. Comunista não comia criancinhas. Que o padre não tinha mulher se não quisesse. A beata não é mulher de Cristo e sim uma adoradora. Que o trem azul era menos que o prateado. Que entre todas as zonas: sul, norte e oeste, tinha aquela que não estava no mapa.

Não pergunto mais para os urubus, em correntes termais ou não, se vai chover. Agora eles têm outro significado: são importantes e fazem parte da natureza.

Cresci...

Mas quando vou para o mar, ainda acredito que uma daquelas gaivotas, tem em seu bico uma mensagem sua.

Fazer o quê se não cresci de todo?


Paulo Francisco