Banquete

Alimento-me de poemas. Não como uma refeição completa, mas como complemento alimentar. Tenho-os em minhas refeições diárias como o tempero necessário para garantir o sabor do meu dia.
Preciso do poema como o sol do dia, como a lua da noite. Necessito deles em meu corpo por dentro, navegando em minhas veias e artérias, atingindo todas as células de meu corpo.
Que seja Camões, Leminski ou Sant´anna - não importa de quem seja, desde que seja um poema bom, bom para o meu viver.
Respiro Neruda, Oswald, Drummond, Gullar, Vinicius. Preciso hidratar meu corpo com os sais encontrados nos versos de Cora, Cecília e Florbela.
Sim, alimento-me de versos construídos, trituro-os com os meus molares, e enzimas encontrados à minha saliva, degrado-os, amasso-os, degusto-os, transformo-os num bolo poético e degluto-os lenta e suavemente, sinto-os invadindo minhas entranhas, chegando como manto e cobrindo minha alma.
Alimento-me de poemas, sinto-os na ponta de minha língua.
[E quando estou te amando, te faço poesia.]


Paulo Francisco



No fundo da gaveta




Menos é mais. Liguei para uma amiga e ela estava arrumando o seu guarda-roupa. Quando falei que organizo a minha mente quando arrumo o meu quarto, ela me respondeu que só estava dando um jeito na bagunça provocada, pois já tinha doado e trocado muita coisa durante a semana e que estava tudo bem com ela e com ele – o quarto.

 Descobrimos que não nos apegamos a roupas ou a qualquer outra coisa material. Doamos muito. Constatei também que é normal as mulheres trocarem roupas e bijuterias entre elas. Homem não troca nada, ou ele doa ou ele joga fora.  Homens que vivem sozinhos aproveitam as camisetas velhas para pano de chão, mas só depois, é claro, de usarem as surradinhas como pijama.

Sou minimalista. Atento-me para detalhes, mas odeio excesso. Talvez não quando escrevo, mas na vida certamente. Olhei ao redor e percebi que à minha casa é diferente daquelas que visito, tem poucas peças, sem frescura, é quase básica. Há algumas obras nas paredes ou no canto da sala, mas não encontrei nenhuma referência de minha infância agitada ou de minha família distante. Nenhuma lembrançinha de viagem, nada que me remetesse a algo em particular. Guardo as lembranças boas dentro - no coração. Visto minha alma com cartões postais da vida. Sou retalhos de lembranças costuradas à mão. Minha saudade é de aeroporto, minha esperança é de quem chega e a tristeza é de quem parte sem saber se um dia voltará. Sigo sem olhar para trás, caso contrário, acabo não indo. Lágrima me paralisa. Lágrima me enfraquece - ela é a minha Kriptonita. Torno-me fraco e incapaz. Então não chore, sorria sempre.

Retorno a minha história em passos lentos, em viagens finitas, com olhares calmos, sem brilhos lacrimejantes, sem suspiros de arrependimentos, sem vontade de ficar. Sigo em frente naturalmente.  Viajo nu e, nu, permaneço até o ponto de chegada.

Faz parte de minha natureza ter o mínimo necessário. Sou feliz com o que tenho.  Não me imagino um acumulador de coisas. Jogo fora antes mesmo de obtê-las. Olho para algo e penso num segundo em comprá-lo, mas no segundo seguinte já o descarto de minha vontade. Desse jeito vou ficando leve, dando passos largos, chegando mais rápido, levando a vida.

Estava doido de vontade de vê-la, queria tê-la logo. Estava ansioso, um adolescente na sua primeira transa: as pernas tremiam, os músculos  de meu corpo todo estavam enrijecidos, o suor frio escorria pela camisa e a boca seca gritava por saliva.

Não a descartaria jamais, guardá-la-ia por todo o sempre. De certo, faria um poema todas as manhãs antes do café e deixá-lo-ia na bandeja, debaixo do guardanapo de linho. Gosto, gosto muito de provocar surpresas boas. Mas não foi assim que aconteceu. A banda destoou, desafinou no coreto da praça. A tuba engasgou e o surdo rompeu. Oposto a mim, ela era uma acumuladora. Acumulava desesperanças, acumulava desgostos, acumulava brigas, acumulava desconfianças. Ela se excedia nos movimentos, não percebia os detalhes. Causou-me estranheza tamanha disritmia.

Tentei seguir em frente, numa tentativa inútil e teimosa. Mas quando disse que na minha vida, menos é mais, ela não entendeu a frase ou, possivelmente, não era o que queria ouvir e acabei tornando-me mais um em sua coleção de coisas descartáveis.

Juntei-a com as outras más lembranças guardadas numa gaveta obscura escondida num quarto sombrio e frio. Mas a qualquer hora terei que esvaziá-la. Afinal, eu insisto em dizer:

 - Menos é sempre mais em minha vida.


Paulo Francisco





Idas e vindas





Eu não tinha certeza da vida. Não sabia o que viria no amanhã, tentava esquecer o ontem e lutava contra o hoje. O que  tinha feito pra viver daquele jeito,  não sabia e se sabia, não queria pensar nem tampouco voltar atrás de uma decisão que achava certa. Eu tinha a idade da teimosia.
Minha vida era comum, como a vida de qualquer outra pessoa naquele meio – eu era só mais um diante do cinza. Mas tinha fome, tinha sede, tinha medo e os outros não.  Não entendia. Gritava pra Deus como se Ele fosse culpado da mazela invadida – a culpa não era Dele, era somente minha.
O menino parou-me quando estava pra entrar no mercado pra comprar vinhos.
- Moço, paga um salgadinho?
- Pode ser um biscoito?
- O senhor compra também um iogurte?
- Claro! Qual?
O moleque entrou conosco (Valéria Soares estava comigo) e escolheu o biscoito e o iogurte sabor morango.
O menino não estava com fome de comida, ele estava com fome daquilo que não podia ter no seu dia-a-dia.
Ao sair do mercado, ele esperava ansioso. Com ele, estava outro moleque; pareciam irmãos.  Repartiriam, com certeza, o desejo adquirido.
Eu andava pelo Centro do Rio e tremia quando meus olhos invadiam aqueles pratos expostos na mesa de quem podia comê-los. Eu tinha fome e ninguém sabia.
O vendedor de flores que caminhava na madrugada de restaurante em restaurante, sempre parava na minha mesa:
- Moço, uma rosa pra namorada?
Olhava pra minha mulher e sorria:
- Tudo bem, eu quero essa!
A rosa ficava ali em nossa companhia e seguia conosco até a nossa cama.
Quando percebeu que eu não tinha o que comer, o camarada passou a dar-me a sua comida, e comer na rua, com a desculpa de que não gostava muito do que tinha ali, e preferia um hambúrguer com refrigerante. Ele alimentava o meu orgulho faminto. Ele sabia que a minha fome era por teimosia de um moleque bicudo que não queria voltar pra casa – Eu fugira de todos e de tudo. Rebeldia necessária como lição de vida.
Anos depois, eu caminhava em São Cristóvão, indo trabalhar, quando escuto uma buzina. Era ele, em seu carro:
- Lembra de mim?
- Como eu poderia te esquecer!
- O que faz por aqui, camarada?
- Trabalho aqui, eu faço ...
- Bacana!
-  Sempre me lembro daqueles dias...
- Eu também!
O sinal abriu, ele partiu sorrindo e, eu, ali paralisado, não disse a ele: obrigado.
Eu não tenho certeza da vida. Não sei o que virá amanhã, tento lembrar-me do ontem e vivo o hoje na intensidade permitida. O que fiz pra viver desse jeito? Talvez tenha sido o orvalho em minha cabeça nas noites frias, a dor na sola de meus pés em caminhos pedregosos, a acidez na garganta de um estômago vazio, a cegueira temporária numa adolescência agitada, as pernas paralisadas de um medo existente. Ou talvez tenham sido as mãos amigas por aí afora ou, quem sabe, tudo isto junto e um pouquinho mais.
Minha vida é comum como a de qualquer mortal e tenho ainda a fome, a sede e o medo. Tenho a fome de vida, a sede de amar e o medo de não conseguir.
Hoje falo com Ele, com a certeza de uma vida vivida – Só com Deus eu falo, nunca com o diabo... Por mais que ele insista.




Paulo Francisco

Na beira do mar



O mar gritava poesia, estava agitado como um poema apaixonado. Eu estava ali deitado na areia, olhando as estrelas, curtindo a lua cheia. A brisa se jogava ao mar, empurrando as jangadas em direção ao infinito. Lembrei-me de minha casa, não a da praia, mas a da montanha, onde namoro o céu de minha rede. Gosto de estar assim, jogado, largado, longe das amarras do dia-a-dia.  Gosto desta vida vagabunda temporária em que não tenho hora pra nada, que não tem futuro nem passado, somente o imediato.
- O que você vai ser quando crescer? Sempre me perguntavam e eu nunca soube responder de verdade.
- O que você está pensando? Sempre respondia que não estava pensando em nada e, verdadeiramente, não estava pensando em nada que pudesse interessar a quem estava perguntando.
- O que você vai fazer amanhã? Não sei, dizia, ainda não dormi.
Sempre achei chato responder pergunta investigativa. Nunca gostei de falar sobre o que pretendia fazer. Até porque nunca soube o que realmente faria no dia seguinte.
Ela veio me fazendo tantas perguntas que acabou perdendo o encanto. Sempre achei que devíamos nos descobrir aos poucos, devagarzinho, sem pressa, como a água descobrindo um novo caminho e fazendo um novo rio.
Lá estava eu sendo obrigado a responder pra não ser grosseiro. A cada resposta, menos um ponto. Nem mesmo a minha recusa fez com que ela parasse de perguntar. Ela interessada em saber, eu desinteressado em dizer.
A brisa nos levou pra casa - ela para a cidade, eu, para as montanhas.
 Já era de manhãzinha quando resolvo voltar. Estava só, ninguém me vira saindo. Também, ninguém me viu voltando. Dormi com o cheiro do mar.





Paulo Francisco

A intrusa




Ela era feia, muito feia. Tinha as bochechas caídas, boca grande, pernas finas e, para completar, era amarela.  Apesar de sua feiúra, não me assustei. Mas confesso que foi difícil encará-la de imediato.

Ao voltar pra cama fiquei pensando o que fazer com aquela visita indesejada. Não sabia se a pegava com as mãos e, delicadamente, colocava-a pra fora, ou, simplesmente, deixava a bochechuda invasora parada, olhando o nada, até se cansar da monotonia daquele ambiente.

Resolvi, então, dividir o meu espaço com a feiosa por mais um dia, desde que não invadisse a minha cama, tudo bem.

Impossível compartilhar os meus sonhos com uma pecilotérmica – tenho sangue quente e gosto de dormir encolhido e agarradinho. Confesso: já dormi com algumas cachorras em minha vida, mas, elas eram fofinhas e quentinhas.

Geralmente, não tenho repulsa a nada, mas era impossível não sentir nojo daquela olhuda de boca larga. Ela era grande, esquisita e quase albina.

Ao amanhecer, antes mesmo de ir à cozinha preparar o meu café, fui verificar se a invasora continuava  dormindo ou se tinha resolvido voltar de onde veio. Tristeza... ela não moveu um milímetro sequer da posição que eu deixara à noite anterior.

Após uma boa caneca de café preto e quente, deitado em minha rede, tive a brilhante ideia de transferi-la daquele lugar para a varanda da minha casa. Deixei-a num vaso de planta. Ela aceitou a nova moradia sem mover um músculo – além de feia, era preguiçosa.

Tudo em paz; estávamos felizes: eu na rede, lendo sobre ela, tentando descobrir seu nome e, a feia, na planta, olhando-me sem entender nada.

Sou assim mesmo, não gosto de visitas repentinas, mas também, não sei dizer não para aquelas que me pedem abrigo.

No meio da leitura sobre aquele ser gelado que invadiu o meu espaço, a campainha tocou:

-Surpresa!!!!

- Não acredito, por que não me ligou?

- Estava passando de carro e tentei arriscar...

- Que bom! Estava lendo um livro cientifico.. e ...

- Passei para um saber como tá tudo... você não atende as minhas ligações...

- Eu estava viajando, retornei ontem.

Ela chegou sorrindo, transformando minha manhã de inverno em primavera.

Gosto de sua alegria e de seu jeito solto de invadir a minha casa.

Em meu espaço, reservo sempre um cantinho em minha rede. Ela pode se balançar e até sonhar.  ¨Mi casa, su casa.¨

Depois de incensar toda a casa, deixando-a com cheiro de pomar, resolvemos ouvir umas músicas indianas, que ela encontrou em minha coleção de CD; viajamos um bocado, cada um na sua – ela na rede e eu no sofá da sala tentando continuar com aquela leitura científica. Acabei cochilando de tão agradável estava àquele ambiente incensado por ela.

De repente um grito e um susto. Pulei do sofá e a vi, parada, amarela, com os olhos arregalados, a boca esticada, os braços duros e abertos para baixo, totalmente paralisada. Cai na gargalhada da barriga doer. Ela ali, sem mover um milímetro sequer e a perereca albina encarando-a agarrada às cordas da rede. A bicha era grande e feia.

Apresentei-a a minha mais nova visitante e, claro, fui obrigado transportá-la além de meu portão.

Não gosto disso: - ¨Ou ela ou eu? ¨ Mas, fazer o quê, quando quem diz é quem sabe melhor mandar.
Certamente, não terei mais aquela de boca grande em minha varanda. Como já disse, tenho o sangue quente e adoro dormir agarradinho. Mas, com a visitante certa, é claro!




Paulo Francisco