Arranhões

Não me julgues. Quando estou monossilábico é certo estar em outra dimensão. Quando estou assim, o melhor é não insistir. Guarde suas perguntas para mais tarde, porque não terás, não mais que um sim, um não ou um ok. Neste momento sou viajante de mim mesmo.

Se estou com sono, durmo. Então não critique o meu sono vespertino. Deixe o meu corpo recarregar, espere ele ficar pronto e minha mente sã.

Sou falante de natureza. Falo mais que devia, mas tem horas que papagaio precisa dormir.

Não tenho o poder de adivinhar – gostaria e muito ter este dom - mas se não falo o que quer ouvir na hora exata, sou insensível. Será que sou tão frio, ou estou fora de alcance? Possivelmente, estou num orbitador entre a Terra e o espaço. Espere eu descer.

Tenho algumas marcas adquiridas. Sim, marcas adquiridas na infância. Era um moleque que não andava – corria. Era extremamente feliz com as minhas pernas agitadas. Quando não estava correndo, estava no mundo da lua. Sim, eu vivia os extremos, ou muito agitado ou muito aluado. Quando aluado, pensador – mirim, era batata, algo iria acontecer, e acontecia, caso não fosse resgatado pelas minhas pernas felizes.

Tenho marcas por todo o meu corpo. Cortes em minha pele feitos pelo mais diversos dos acontecimentos. Cabeça rachada não era novidade. Pele cortada não era novidade. Minha derme era tingida por mercúrio-cromo e adornada por gazes e esparadrapos.

Não julgue o que não pode compreender. Se não falei o que queria ouvir é porque estava correndo em pensamentos ou estava viajando em sonhos. Se não respondi o que queria ouvir, ou se não falei o que queria sentir, é porque minha sensibilidade estava adornada por gazes e esparadrapos.

Hoje não enfeito minha pele de azul de metileno e nem de vermelho – mercúrio-cromo. Metileno só o meu céu e, vermelho, somente o meu coração.

Não me julgue. Se não tenho os seus olhos como posso compreender o seu coração?



Paulo Francisco

Às nove







Hoje, eu saí de minha rotina matinal. Geralmente não acordo cedo. Ninguém liga para mim antes das onze horas. Por outro lado, se um amigo tem insônia, recorre a mim – sabe que estarei aceso, cheio de gás.

Acordar cedo é verdadeiramente a morte. Arrasto-me durante todo o dia. Fico absolutamente grogue. Não produzo. Então, eu sempre me pergunto: ¨ Por que cismam de fazer reuniões aos sábados às nove horas da manhã?¨ Às nove da manhã... estou sonhando.

Às nove da manhã... meu céu ainda tem estrelas.

Às nove da manhã... ainda estou despindo a lua.

Aprendi num curso de pós- graduação – Cronobiologia – que eu não era o vagabundo que todos diziam. Eu-era-nor-mal! Ouviu gente!? Nor-mal!!!!!! Dormir de madrugada e acordar ao meio dia não dá titulo de vagabundagem - A cronobiologia explica.

Senti-me em casa, estava junto com vários profissionais, gente bacana do tipo: enfermeiros, pilotos de avião, aeromoças, professores de várias áreas, botânicos, zoólogos, farmacêuticos e muito mais. Era a glória, estar com tantos colegas que possivelmente eram também chamados, no mínimo, de preguiçosos.

Mas o que mais me chamou a atenção foi a história de um camarada que dizia estar ali na esperança de salvar o seu casamento. Ele estava em busca de uma solução para tanta discórdia em sua casa. Ouvi o seu relato e entendi, naquele momento, como era importante a sintonia, até mesmo no fato de dormir e acordar ao mesmo tempo com o seu par. Ele relatou que a qualidade do sexo estava inferior, que depois de um certo tempo, perceberam juntos que nunca estavam os dois realizados. Quando um ainda tinha fogo o outro já não tinha mais madeira pra queimar. Perceberam que tinham que achar um meio termo e acabaram conseguindo, mas não era a mesma coisa, segundo o relato do camarada para mim.

Fiquei com aquela conversa na cabeça e comecei a imaginar por que algumas pessoas mantêm relações extraconjugais mesmo gostando de seus cônjuges. Será que a cronobiologia explicaria também isto?

Hoje, eu saí de minha rotina matinal. Acordei com o telefone tocando para lembrar que eu tinha uma reunião. O telefone tocou justamente quando estava despindo a lua.




Paulo Francisco

Anjos da noite




A noite derramava estrelas. Caminhávamos sob a luz da lua. Éramos errantes noturnos viajando em calçadas que choravam sereno. Voltávamos pra casa, exaustos, com o corpo sofrido e a alma feliz. Eram assim nossas noites de finais de semana em bailes nos subúrbios do Rio.

Vivíamos em bando, vivíamos em sonhos, sonhávamos com futuros brilhantes, mesmo que fossem somente sonhos. Não sei o que aconteceu com o grupo que convivi num curto período de minha juventude, fui obrigado a me distanciar por motivos diversos. Também não sei se gostaria de saber o que aconteceu com cada um deles. Prefiro lembrá-los assim, como eu descrevi. Melhor sabê-los desse jeito a saber que cada dor existente em mim faz parte de suas vidas. O passado só é bom ser lembrado quando se vive o inesquecível.

Estava caminhando, numa das minhas madrugadas de insônia, pelas calçadas molhadas de minha cidade, quando avisto um grupo de meninos e meninas caminhado em algazarras vindo em minha direção. Nitidamente pude voltar ao tempo e lembrá-lo com satisfação das minhas noites molhadas de sereno. 

Éramos jovens sonhadores com os pés no chão. Mesmo que este chão fosse forrado de estrelas.


Paulo Francisco

Imagem imaginada







Estava atrasado. Estava muito atrasado. Acordei e nem pude ter a minha preguiça matutina de rolar de um lado pro outro – num susto, já estava pronto e ligando pra Mônica para informar que estava chegando. Mentira! Mas ela já sabe que sou o maior mentiroso pela manhã. Acho que não vou acostumar-me nunca em acordar cedo. Mas o que fazer quando tem gente a nossa espera? Irmos.

Lá fui eu em passos ligeiros, pelo caminho de sempre, quando me deparo com um casal de jandaias. Pensei: Perdão querida Mônica, eu não sei a que horas chegarei.

Apanhei a máquina na mochila e comecei a fotografar o colorido casal.

Gosto das oportunidades que a natureza me oferece. Na minha última viagem, que não foi há muito tempo, aproveitei pra fotografar gente e o que tinha ao meu redor – flores e muito verde.

Quando cheguei, atrasadíssimo, todos estavam me esperando, mas, acreditando na possibilidade de eu não chegar a tempo. Mas cheguei. Aprendi que uma vez atrasado, atrasado e meio.  Não disse o porquê do meu atraso – não era preciso.

Quando o fotógrafo chegava para tirar as fotos de minhas irmãs eu ficava puto. E, não escondia a minha insatisfação com a tamanha desconsideração com a minha pessoa. ¨ Pô!, qualé bacana! Eu também sou filho de Deus!¨  Pensava irritado com tudo aquilo.  Não entendia que as fotos tinham que ser delas e não de um moleque cascorento cheio de machucados nas pernas, braços e, de quando em quando, com um esparadrapo escondendo algum tipo de corte na testa.

 Eram fotos de meninas bonitas para a sua coleção – um tipo de apresentação (book) de seu trabalho. E as minhas irmãs eram lindas e incrivelmente opostas: uma loira de olhos azuis e a outra morena de olhos amendoados. Umas graças de criaturinhas que eu judiava de segunda a domingo. Uma judiação de irmão-capeta que gostava de vê-las chorando e assustadas. Atazanava os juízos delas e de minha mãe. Coitadas!

Não me dava por vencido, a cada foto tirada, uma travessura minha. Catava os galhos secos, pedaços de qualquer coisa que pudesse sujar o plano de fundo da imagem. Quando o camarada percebia, já era tarde - depois do clique, um Paulinho, lá longe, fazendo caretas, carregando um objeto estranho qualquer. Eu era odiado, e com muito gosto, fazia tudo para atrapalhar o tal ensaio.

Minha mãe, coitada, ficava doida pra me pegar, mas, eu corria mais que todos eles. Estava sempre com um olho no padre e outro na missa. Só me sossegava quando resolviam, depois de muito relutarem, tirar algumas fotos minhas, mesmo machucado e revoltado. * ¨ Pouco me importa. Pouco me importa o que? Não sei: pouco me importa.¨   - Era assim que eu me sentia.

Hoje, ando com a minha máquina na mochila e estou sempre clicando algo. Registro tudo. Adoro alguns flagrantes humanos e de coisas estranhas. A galera do trabalho que não gosta muito, mas como tenho que entregar no final do ano um clipe com o povo todo em plena atividade, não perco a oportunidade de me divertir.

Como as pessoas têm medo que registrem o seu lado mais secreto – uma fotografia é um plano, somente um plano de sua existência.

Quando as cópias das fotos chegavam, naqueles objetos estranhos, chamados monóculos, todos nós ficávamos a admirar as imagens de minhas irmãs, sempre, sempre arrumadinhas de cabelos cacheados e vestidos novos. De vez em quando, eu surgia numa foto junto delas – mas já era o bastante pra me deixar feliz. Pois bem, o que eu queria mesmo era sair na foto.

Hoje eu acordei atrasado, e por causa desse atraso, voltei ao tempo de criança quando nunca perdia o tempo do clique do fotógrafo. Coitado!

*Alberto Caeiro






Paulo Francisco

Penumbra




Levantei-me rapidamente para fechar as cortinas. Os raios solares tinham invadido o meu quarto num momento em que eu ainda precisava da penumbra. Não queria enfrentar o dia; não queria ver as cores que brilhavam, certamente, nos olhos de quem já estava de pé. Queria continuar deitado fingindo-me de morto ou de quase vivo. Eu estava triste.

Guardo a minha tristeza comigo e a cubro de carinho. Dou-lhe mimo, acalanto-a, alimento-a com lágrimas e silêncio. Torno-me o seu guardião ou ela de mim. Não a deixo sozinha por um minuto sequer. Preservo o seu egoísmo e não permito que ninguém se aproxime. Tenho medo que a tire de mim antes do fim.

 Quando a tristeza chega, entrego-me sem lutar. Tornamos-nos simbióticos temporários.  Ela usa o meu corpo cansado, enquanto eu a uso para esquecer o mundo. Nutrimos-nos de nós mesmos até a última gota da taça.

Às vezes a danada chega sem avisar e não tem alegria que a afaste de mim. O poeta já dizia que ela não tem fim. Talvez estivesse certo. E por isso, eu a alimento com tudo que há em minha alma, satisfazendo as suas vontades até se cansar de tudo. E ela se cansa – eu sei.

Tem tristeza que é pra sempre. Essa de hoje, já é uma senhora que me visita há anos. Ela se instala, acaricia os meus cabelos, as minhas costas, assopra em meus ouvidos até me deixar com frio. Ela gosta de me ver encolhido – frágil e perdido. Não luto contra. Torno-me passivo e silencioso. Sei que ela vai embora logo. É uma tristeza que vem com o vento e, com ele, vai-se.

Não sei dividir dor quando a sinto. Gosto de dividir flores e alegrias. As minhas dores eu as curo no escuro.
Dizem por aí que a minha tristeza tem nome de saudade. Uma saudade triste. Talvez seja mesmo saudade de algo que foge as minhas mãos, que os meus olhos não a alcançam. Talvez seja uma saudade triste de um tempo que não mais existe. Não sei bem ao certo o que me faz, de quando em vez, cair nessa melancolia de dormir, dormir, dormir. Durmo sem sono – Não sonho. Simplesmente finjo que durmo. Finjo pra enganar o escuro.

Os mais perversos, e são muitos, falam que me escondo da vida em sonos profundos. Não os contesto. Deixo-os pensarem que estão certos. Mas, o que sei mesmo, é que a tristeza chega sem aviso prévio. E da mesma forma vai embora.

Não sou um homem triste. Sou um homem que fica triste. Um homem que chora a tristeza. Mas como aprendi que homem não deve chorar e muito menos ficar triste, choro e fico triste no escuro do meu quarto. Lá fora, só alegria.

Hoje, deixei as janelas e cortinas abertas. Deixei os raios solares invadirem o meu quarto na esperança dela ir embora.

Hoje, eu acordei com medo do vazio.

Paulo Francisco