Dependência




Não espere de mim mais do que eu tenho pra dar. Quando a professora, no final da aula, entregava o boletim, eu ficava tenso, angustiado, tornava-me pedra pra não revelar a minha aflição. Não queria um dez, não queria um nove, não queria nada além do possível, bastava-me um boletim azul, pra eu sair daquele transe mortificado. Vermelho respingado, azul manchado. Tinha, tínhamos, naquela época, vergonha de uma nota abaixo da média.

Na vida, tentei ter o meu boletim sempre com notas azuis, mas como a escola do mundo é pra sempre, é quase impossível não manchá-lo com alguns respingos vermelho e amarelo.

Como recebíamos o boletim fechado num envelope pardo, o suspense era maior, principalmente quando era entregue pelas mãos da Professora com um ar sério ou de reprovação. Um sorriso dela era o sinal de que não tínhamos ido mal.

Quando cheguei a minha casa e vi seu rosto fechado, seus olhos cabisbaixos, seu andar arrastado, percebi que estávamos abaixo da média.  Nossa relação estava no amarelo e há qualquer deslize chegaria ao vermelho. E chegou. Fui reprovado sem o direito de recuperação.

Não entendia a compreensão do amor. Era difícil pra mim, o doar, o aceitar, o resignar. Não entendia que tínhamos que caminhar numa via de mão dupla. Não decodificava; não abstraía. Tudo era erroneamente um todo. Não compreendia as etapas da vida, seguia numa linha reta, sem parada pra descanso, sem parada pra reabastecer a máquina, sem uma revisão de tempos em tempos. Não revisava a vida.

Ah, fui reprovado tantas vezes na disciplina do amor que quase desisti da matéria. Passei um bom tempo afastado da classe. Achava que não era possível acompanhar toda metodologia aplicada. Era complicado decorar todos aqueles termos, conceitos e definições no tempo exigido pelo sistema.

Mas como seguir sem a compreensão da base da vida? Como entendê-la se não vivê-la? E se vivê-la, como aceitá-la?

Tornei-me autodidata. Segui o caminho do construtivismo.

Sigo num aprendizado sem fim. Entre erros e acertos, defino-me, conceituo-me e não chego e nem devo concluir-me, pois a cada dia, há na vida, elementos novos, pra colocarmos a prova. Somos a nossa própria experiência.

Experimento-me.

Não exija de mim, o que eu não tenho para dar.

Se vermelho ou se azul, com ou sem segunda época, o boletim é da responsabilidade de cada um.




Paulo Francisco

Drama





Estou velho demais pra morrer de amor.  Mas caso eu venha morrer, por agora, que seja então de amor vivo. Que eu esteja recostado em seu ventre, sentindo a cadência de sua respiração, o calor de seu corpo, que as suas mãos estejam em minha nuca e seus lábios nos meus.

Não me conformava com o drama de alguns amigos quando a relação escorria pelo buraco negro da vida. Considerava tudo aquilo uma perda de tempo. O que adiantava o desespero da perda, a não ser pra perder totalmente a razão.  O amigo L entrava em desespero, quase enlouquecia por causa de um abandono.  Descobria tardiamente que aquela que o dispensara era a mulher de sua vida. Bebia e chorava o inevitável, chorava e bebia a triste descoberta, bebia, chorava e me alugava madrugada adentro com suas lamurias e desesperança.

Eu era tão bom ouvinte como um bom bebedor de cerveja.  Enquanto pra ele era desespero, pra mim era diversão.  Sabia que em menos de um mês o camarada me ligaria pra comemorarmos a sua nova paixão, a verdadeira mulher de sua vida surgira das cinzas de seu sofrimento. E saíamos pra comemorar o seu novo estado emocional.  Pelo menos ele não só dividia sua tristeza – as alegrias também eram comemoradas em copos gelados de cerveja.  Não sei como ele está agora. Perdemo-nos no meado dos anos oitenta.  Mas eu nunca esqueci suas esquisitices amorosas.  

Mas não era só ele que fazia drama por uma paixão mal acabada. Havia outros marmanjos com a mesma síndrome do abandono.  Eles me ensinaram a sofrer calado.

Eu também sabia sofrer de amor. Um bom abandono amoroso tem que ter sua dose de desespero, sua dose de sofrimento, sua dose de lágrimas e soluços. Um bom abandono amoroso tem que ter dia nublado, guarda-chuva preto e travesseiro.

Falava com o vento na esperança de obter respostas.  A saudade era tão imensa quanto o vazio no peito.  A dor da perda nunca foi branda – era dor de membro amputado. Tentava viver na normalidade, mas as noites se tornavam longas e os amanheceres frios. Era uma saudade doída, uma dor de alma, uma dor de nunca mais. Sentia-me abandonado pela sorte.  Um desafortunado temporário.

Achava que nunca iria esquecê-la. E como viver assim? Como viver sem a presença daquela que jamais pensei em perder? Não sabia.  E por não saber inventava-me; transformava a dor e sonhos em histórias terceirizadas.  Dramas grafitados em pedaços de papel ruim. A cada abandono, nascia uma tela abstrata e cinza. A cada abandono, uma morte esquisita. Eu também sabia ser dramático. Ouvia músicas tristes e bebia uísque.  Ah, eu também sabia morrer de amor.

Mas o tempo passa, ensina a virar a página.

Hoje, eu estou velho demais pra morrer de amor. Prefiro morrer de outra coisa e vivê-lo até o fim.


Paulo Francisco


Empatado







Não quero mais brincar. Estava sentado num banco do parquinho observando o nada. Estava ali para não fazer e nem pensar em coisa alguma. Descompromissado comigo mesmo, ali fiquei, olhando sem ver. Mas uma frase aguda me despertou daquele transe provocado: ¨- Não quero mais brincar! Não quero mais brincar!¨ Todos cercaram o menino que de braços cruzados insistia na frase. Ele estava irredutível, era árvore que não envergava, e seu comportamento, fez o grupo se espalhar – eram folhas soltas em redemoinho. E ele, ali, no centro, cabisbaixo de braços cruzados. O que estava fazendo? Pensei. A brincadeira vai acabar por causa dele? Me perguntei.

Mas na vida tudo se resolve. Os meninos voltaram para o menor e tentaram convencê-lo de que não deveria fazer aquilo, porque senão eles iriam brincar de outra coisa e ele não entraria. O menino resmungou algo e balançou a cabeça numa positiva, entregou a bola que estava sendo esmagada pelo seu pé esquerdo. Ele era o capitalista – dono do capital.

Quase que instantâneo todos gritaram de felicidade e correram para as extremidades daquele campo improvisado. Soltando palavras de ordens:

- Aí, ¨cavera¨! Fica na direita... Não! Não! Gigante ( o menor da turma)fica aqui mais próximo da área. Vamos lá! Tava quanto o jogo?

Alguém grita:

- Quatro a três!

A discussão agora começa por causa do placar:

- Não mesmo! Tava empatado quando o verruga parou o jogo. Ri com o apelido do moleque e pude perceber que seus dedos tinham umas três verrugas grandes.

- ¨Cavera¨! ¨cavera¨! O menino magro e comprido corre em direção de quem lhe chama, gritando: falai aí meleca! Cai na gargalhada: meleca!? Pensei.

Eram os apelidos dos mais engraçados que já ouvira: tatuí, barata (estes eu ri e muito, eram dois artrópodes das classes crustácea e insecta, respectivamente), caroço, e muitos outros,mas dos tantos apelidos o mais engraçado foi quando olhei para o moleque com o calção laranja e que correspondia ao singelo nome de guerra: ¨Cheroso¨. O suor escorria em bicas de sua cabeça, as placas grossas acinzentadas em seus cotovelos e joelhos indicavam banho uma vez por semana, não vou comentar das unhas - impraticáveis. Tive que rir.

Todos felizes jogando depois de chegarem a conclusão de que era um outro jogo. Começariam do zero a zero. Sai dali, rindo, com a democracia afetiva entre eles.

Pensei: Não quero mais brincar! Ou começamos do zero a zero ou não jogo mais.


Paulo Francisco

Disfarce





















E por de trás dos óculos escuros meus olhos sorriem. A minha timidez me confunde. Sim, sou tímido. Dizem que meus olhos falam por mim. Talvez, seja verdade. Falo com eles o que não tenho coragem de expressar com palavras.

Apelo para os meus braços e minhas pernas. Abraço apertado. Mãos que afagam. Olhos que dizem. Meu corpo trabalha em dobro quando o assunto é o amor. Não digo em palavras – sou tímido demais para expressar o que sinto. E nesta aventura me desnudo em poemas, suspiros e muito calor dermal.

Sou assim:

Uso óculos escuros para me esconder de mim.


Paulo Francisco

Dueto




Os raios invadem minha casa. Não sei acordar de outra maneira. Não vedo meus olhos pra dormir. Não fecho minhas cortinas. Gosto de ir dormir olhando pro céu. Cochicho com a lua em noites claras e sou acordado pelo sol. Penumbra só em momentos de puro tédio ou em uma grande enxaqueca.

O meu acordar é lento, minha alma me chama e acaricia-me em massagem chinesa. O meu espreguiçar é demorado, pernas e braços são movimentados num vocabulário próprio do balé. Dizem por aí que tudo isto é preguiça. Pode ser, mas só abro os olhos depois de meu concerto coreografado ser todo executado e o coral de anjos terminarem sua canção.

Não tenho pressa ao acorda. Sei que depois tudo vai ser diferente. Tempo pra tudo, horas pra tudo. Não, não me venha dizer que o meu despertar é de preguiçoso – ele é necessário.

Tenho algumas necessidades que vão à contramão do dia-a-dia. Necessito por exemplo de músicas, não músicas enfiadas nos ouvidos como vejo por aí. Necessito dela em minha casa, em meu trabalho, em meu viver. Os meus amigos são canções. Canções das mais variadas. Tenho do Rock ao Fado; do Forró a canções francesas. Os meus amigos são diversificados.

O gostoso é quando a discoteca está em minha sala. Concerto de primeira. Festival de repertório.

Engraçado, tem gente que mal conhecemos e já se torna música aos nossos ouvidos. Conheci por um tempo desses uma mulher que aparentemente me pareceu ser uma música francesa, mas depois, ela foi se mostrando que também podia ser uma bela canção de musica popular brasileira. Gostei dela.

Ela gosta de dormir na penumbra, mas deixa uma frestazinha na cortina para ser anunciada pelo dia que está na hora de acordar. Os raios invadem seu quarto de maneira sorrateira. Seu espreguiçar é menos coreografado, mas as suas poses são dignas de quadros sensuais.

E nestas noites, certamente, abandono a lua, esqueço o sol. E a penumbra é minha amiga.

Num duo, alguém tem que ser a primeira voz.



Paulo Francisco